A DESPENALIZAÇÃO DO ABORTO NO URUGUAI: O PIONEIRISMO NA AMERICANA DO SUL
O objetivo geral da pesquisa é analisar os fatores históricos e sociais que culminaram na descriminalização do aborto no Uruguai, por meio da aprovação da Lei nº 18. Como desdobramento deste, os objetivos específicos são os seguintes: Contextualizar historicamente o surgimento dos direitos humanos no sistema internacional, de modo a explicitar os principais eventos (conferências e convenções) atinentes aos direitos humanos das mulheres; discorrer sobre a introdução da categoria “gênero” no âmbito das Relações Internacionais (RI), explicitando as teorias feministas das RI e os direitos sexuais e reprodutivo das mulheres no sistema internacional, e discutir o processo que culminou na legalização do aborto no Uruguai, evidenciando as principais lutas das mulheres em prol da obtenção desse direito. No trabalho, defende-se a perspectiva teórica feminista das RI de base pós-moderna, em razão da constante dinamicidade protagonizada pela sociedade e com base no entendimento de que as relações desiguais entre homens e mulheres se tornam mais agudas em países de economia periférica.
Destarte, compactua-se com uma teoria feminista antirracista e anti-imperialista. Palavras-chave: Aborto. In the paper, the feminist theoretical perspective of the postmodern IR is defended because of the constant dynamicity of society and based on the understanding that unequal relations between men and women become more acute in peripheral economies. Thus, it is combined with a feminist anti-racist and anti-imperialist theory. Keywords: Abortion. Uruguay. Human rights. TEORIAS FEMINISTAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 19 2. DIREITO À SAÚDE REPRODUTIVA E AO ABORTO NO SISTEMA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS 25 2. Direito reprodutivo e saúde reprodutiva 25 2. Prática do aborto: considerações de natureza internacional 30 3. DESPENALIZAÇÃO DO ABORTO NO URUGUAI 39 3. Como consequência deste tratamento secundário à categoria gênero, a condição das mulheres até a década de 1980, permanecia oculta das análises das relações internacionais.
O registro de tais considerações estão acompanhados pela exposição das principais teorias feministas das RI. Ainda no segundo capítulo, são retratadas as questões atinentes aos direitos sexuais e reprodutivos, com ênfase nas considerações de natureza internacional acerca do aborto. Para tanto, foi preciso recorrer às experiências de alguns países, com a finalidade de discutir suas perspectivas acerca da interrupção voluntária da gravidez. O terceito capítulo é iniciado a partir da experiência de fortalecimento do movimento feminista no Uruguai, durante o regime ditatorial (1973 – 1985). Logo, de acordo com Sorto (2008), a história da construção de direitos da sociedade política universal passou pelo genocídio de milhões de pessoas e pela intolerância religiosa, econômica e cultural. Pode-se afirmar que os direitos humanos consagram o reconhecimento internacional da pessoa humana como portadora de direitos inalienáveis e que, principalmente nos países periféricos, a atuação e efetividade desses direitos são de suma importância para minimizar e denunciar o seu descumprimento.
Dessa forma, no tocante ao desenvolvimento dos direitos sociais, chega-se a uma Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) – DUDH. Os direitos humanos estabelecem diretrizes para o cumprimento do ordenamento jurídico voltado à proteção social e para a garantia dos direitos fundamentais, fornecendo viabilidade ao princípio da igualdade formal. Esta igualdade formal representa a base do Estado democrático de direito. O sistema normativo é integrado por instrumentos de pautas gerais (Pactos internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966) e por instrumentos de pautas específicas, a exemplo das Convenções internacionais que buscam respostas a discriminação racial, discriminação e violência contra a mulher, violação de direitos da criança e outras formas de violação (PIOVESAN, 2002). A DUDH é composta por trinta artigos que versam sobre os direitos individuais e coletivos, além dos deveres dos cidadãos, e é iniciada com o seguinte preâmbulo: O desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do homem2.
Seguindo o raciocínio marxiano, tendo como referência “A questão judaica”, constata-se que Marx reconhece a “Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão” (1789) enquanto clara expressão dos direitos humanos como direitos concernentes aos membros da sociedade burguesa, ou seja, do homem egoísta centrado em seus próprios interesses, separado dos outros homens e da comunidade. Além disso, há uma clara contradição presente no princípio da igualdade, A situação explosiva dos bairros e das periferias oferece, hoje, um exemplo claro da contradição entre igualdade republicana formal entre cidadãos e a desigualdade real inerente a uma quádrupla segregação: social, escolar, territorial, racial (MARX, 2005, p. Além da igualdade, na obra em estudo, Marx estabelece mais quatro direitos humanos: liberdade, propriedade e segurança.
Dessa forma, o direito à propriedade privada, nos limites da sociedade burguesa, é considerado o direito mais fundamental (MARX, 2005). A segurança representa o direito humano supremo. Representa o conceito da polícia, envolvendo o conjunto da sociedade na garantia da conservação dos direitos e da propriedade dos seus membros. A segurança é, antes, a asseguração do egoísmo da sociedade burguesa (MARX, 2005). Nas palavras de Hannah Arendt (1988), os direitos humanos partem de uma construção humana. Os direitos humanos, assim como os demais direitos, apresentam matriz essencialmente limitada, estando postos em uma estrutura social que não permite a plena realização do indivíduo. De acordo com Tonet (2012), a luta em torno dos direitos humanos apresenta dois vieses: o reformista e o revolucionário. O primeiro viés está a alicerçado à redução dos tratamentos degradantes dispensados aos sujeitos sociais, à ampliação da democracia e da cidadania, sem, contudo, romper com as bases estruturais do sistema capitalista.
O viés revolucionário manifesta o compromisso com as lutas em prol da superação da ordem social capitalista, reconhecendo que num estágio social superior, os direitos humanos não seriam mais necessários. Prevalece na atualidade, a luta pelos direitos humanos de caráter reformista, que encontra respaldo na obtenção de garantias imediatistas. Embora persistam os desafios para a sua efetivação, a responsabilidade pela garantia dos direitos humanos pertence à sociedade e às lideranças políticas de cada nação. A concepção contemporânea de direitos humanos é caracterizada pelos processos de universalização e internacionalização dos direitos consagrados. Destarte, a Declaração de Viena de 1993 reitera a concepção proferida pela Declaração de 1988, ao afirmar a universalidade e a interdependência dos direitos humanos.
A Declaração de Viena reforça também o compromisso com uma agenda global dos direitos humanos, que devem ser tratados com justiça e equidade, sem distinção de raça, credo, gênero, etc. Evidencia-se, ainda, que a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, afirma em seu parágrafo 18: Os Direitos Humanos das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos Direitos Humanos universais. É firmado, no âmbito do sistema global, o respeito à diferença e à diversidade. A Convenção de 1979 consagra a vertente repressiva-punitiva e a vertente punitiva-promocional. A primeira está ligada à proibição da discriminação e a segunda relaciona-se com a promoção da igualdade. O objetivo da Convenção não é apenas promover a erradicação da discriminação contra as mulheres e suas inúmeras causas, mas também compor estratégias de promoção da igualdade, por meio da combinação da proibição da discriminação com políticas públicas afirmativas que possam progressivamente promover a igualdade entre homens e mulheres (PIOVESAN, 2002).
A promoção da igualdade não ocorre somente via repressão legislativa, sendo fundamental a promoção de iniciativas estratégicas capazes de promover a inclusão de grupos historicamente vulneráveis. A partir da Convenção de Belém do Pará são desencadadas estratégias para a proteção universal dos direitos humanos das mulheres. Considerando que a proteção às mulheres e a garantia de direitos para o público feminino adquirem fortalecimento global quando ultrapassam as barreiras nacionais, lançar-se-á na próxima abordagem contribuições relacionadas às teorias feministas das relações internacionais. É necessário corroborar com tal discussão, tendo em consideração o entendimento de que a violação à integridade da mulher não é um acontecimento de natureza local, alastra-se por toda a superfície do globo.
Para ilustrar essa assertiva, faz-se oportuno mencionar a constatação de Tickner (1992) para quem as mulheres ocupam espaço marginal no cenário internacional, o que faz com que as relações de desigualdade e opressão entre gêneros ocupem espaço na política internacional. A INTRODUÇÃO DA CATEGORIA “GÊNERO” NO CAMPO DE ESTUDOS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS É a partir da década de 1980, no período conhecido como” terceira onda de debate das Relações Internacionais”3, que se cria espaço para a entrada de perspectivas feministas no campo das Relações Internacionais. Utilizar o gênero como categoria de análise para os estudos das relações internacionais significa buscar nas normas e instituições internacionais, explicações para a existência das desigualdades entre os gêneros.
Desta forma, as abordagens feministas concentram-se em uma dimensão de caráter político, não visando apenas a superação da opressão de gênero. Busca-se a construção de uma ordem social justa, com a supressão das relações assimétricas presente entre as classes sociais, raças e gêneros. Peterson e Runyian (1999) identificam duas possibilidades de utilizar a categoria gênero dentro do campo de análise das relações internacionais. A primeira, chamada posição das mulheres, é própria das feministas que se debruçaram na reflexão sobre a posição marginal das mulheres nas RI. Percebemos claramente que o poder de gênero está intrinsecamente vinculado à posição das mulheres. A exclusão das mulheres da alta política, espaço entendido como lócus das relações internacionais, ilustra bem essa vinculação.
A construção da esfera política como espaço de elevado prestígio estaria ligada à sua construção como esfera tipicamente masculina (MONTE, 2013). Nos anos 60, a ocupação de mulheres em posições de liderança, quer seja no mercado de trabalho ou na política, era considerada uma anormalidade. Neste momento, as mulheres começaram a questionar as limitações sociais que lhes eram impostas e, consequentemente, iniciaram ataques ao patriarcado, organizando movimentos femininos de contestação (LIPMAN-BLUMEN, 2000). Logo, através da promulação de leis, o Estado é interpretado como a principal esfera capaz de garantir a promoção da igualdade entre homens e mulheres (PETTMAN, 2001). Como principal garantidor dos direitos civis e políticos ao público feminino, o Estado, mesmo que exercendo práticas discriminatórias, seria o agente mais apropriado para garantir a eliminação das assimetrias entre homens e mulheres.
Ainda seguindo a análise de Pettiman (2001), pode-se salientar que o feminismo liberal, também conhecido como “feminismo da igualdade”, debruça-se na exclusão política das mulheres, refletindo sua sub-representação em cargos públicos. Neste caso, explicita-se a desigualdade de acesso ao serviço militar, por exemplo. A reivindicação para o acesso a esse tipo de espaço constituiria-se como essencial para a obtenção de cidadania em todos os domínios, dos quais o serviço militar faz parte. Para a autora, os assuntos de natureza externa são escritos sobre um total desrespeito às revelações femininas, sendo preciso tornar visíveis e questionar as hierarquias e desigualdades de gênero. As feministas radicais argumentam em favor das “formas femininas de conhecer”. Enquanto o pensamento patriarcal é permeado por divisões e oposições, as formas femininas de conhecer procuram construir uma visão de mundo baseada em visões e conexões (TICKNER, 2001, p.
Desta forma, deparamo-nos com um paradigma sociológico pós-positivista. Assim, o projeto político das radicais busca transformar a própria sociedade. Como consequência, a teoria passa a considerar que não existe uma identidade feminina universal (MONTE, 2003). De acordo com Peterson e Runyan (1999), para essa corrente de pensamento, delimitar as nossas experiências por meio do gênero significa simplificar a indentidade de indivíduos complexos. Essa simplificação é útil para a produção de interpretações utilizadas para organizar a sociedade hierarquicamente. Segundo Peterson e Runyan (1999), as feministas pós-modernas, como outros analistas de Relações Internacionais, concentram-se no uso de métodos desconstrutivistas, para estudar as formas pelas quais são construídas as ligações entre gênero e os fenômenos internacionais. Para Sylvester (1984), o feminismo pós-moderno permite, através da análise de discurso histórico, científico e político, pensar a multiplicidade de formas pelas quais a realidade se esconde nas supostas verdades das histórias e sobre a maneira como a própria história pode promover o conformismo com a opressão e desencorajar as ações para a mudança.
Assim, as feministas pós-estruturalistas, segundo Devetak (1996), defendem que o conhecimento é produzido conforme determinados interesses elitistas e masculinos e questionam a separação positivista entre conhecimento e poder, conhecimento e valores, conhecimento e realidade. O pós-positivismo veio contestar o determinismo científico inerente às análises das Relações Internacionais, que se apropriam das ferramentas das ciências naturais para aplicá-las nos estudos das ciências sociais e se baseia na neutralidade dos fatores. Para as feministas, esta neutralidade representa também a neutralidade de gênero, que silencia a desigualdade entre os sexos e que se reflete nas produções dominantes das RI (YOUNGS, 2004). Conforme preconiza a autora, O feminismo identificou a teoria malestream das Relações Internacionais como um dos discursos que ajuda a perpetuar uma visão do mundo distorcida e parcial, que reflete o poder desproporcional de controlo e influência que os homens detêm, em vez da realidade social plena das vidas das mulheres, crianças e homens (YOUNGS, 2004, p.
Sylvester (1994) afirma que o conhecimento feminista sempre encontrou barreiras para se infiltrar no meio acadêmico, entretanto, no que concerne às Relações Internacionais, as teorias feministas encontraram uma resistência ainda maior em uma disciplina estabelecida como expoente máximo da política masculina. É a invisibilização das mulheres e das feministas que continua caracterizando os estudos de RI, o que demonstra a necessidade e urgência no desenvolvimento de estudos capazes de penetrar nas estruturas que perpetuam as desigualdades entre homens e mulheres. Para Moreira (2012), é necessário rever as propostas feministas primordiais aos estudos em RI. É necessário combater a masculinidade hegemônica, que de acordo com Tickner (1992), se sobrepôs as outras diversas formas de existência (incluindo a homossexualidade, a transexualidade e as diversas feminilidades desvalorizadas). Destaca-se que atualmente, os feminismos utilizam uma gama de métodos, reivindicando a interdisciplinaridade e a multiplicidade como ferramentas teóricas capazes de proporcionar análises mais eficazes da complexa realidade social e política, abrangendo a multiplicidade de cada disciplina (MOREIRA, 2002).
Por esta razão, de acordo com a autora, os feminismos acadêmicos têm sido constantemente confundidos com os feminismos dos movimentos sociais. A não observância da posição secundária destinada às mulheres no âmbito internacional, contribui massivamente para a perpetuação da violência contra a mulher. Direito reprodutivo e saúde reprodutiva Em sua complexidade, os direitos reprodutivos compreendem a concepção, o parto, a contracepção e o aborto, havendo interligação entre os quatro elementos. A impossibilidade de acesso a qualquer um dos elementos abre caminho para a brutal submissão da mulher (PIOVESAN, 2002). O exercício efetivo dos direitos reprodutivos requer a implantação de políticas públicas garantidoras da saúde sexual e reprodutiva. Nesta perspectiva, devem ser assegurados os meios e recursos necessários para o acesso satisfatório e acessível à saúde sexual e reprodutiva, com a inclusão do acesso à informação e ao progresso científico.
seria formada por uma série de elementos fundamentais. Pressuporia a possibilidade de as pessoas reproduzirem e regularem sua fecundidade; pressuporia também que as mulheres tenham uma gestação e parto seguros; e que aquele processo reprodutivo resultasse em bebês e crianças com expectativa de sobrevivência e bem-estar. A isso se poderia acrescentar a possibilidade de as pessoas manterem relações sexuais seguras e prazerosas. Posteriormente, esta definição foi ampliada no Programa de Ação elaborado na CIPD, no Cairo (1994) e na Conferência Internacional sobre as Mulheres, realizada em Pequim (1995): A saúde reprodutiva é um estado de bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade, em todas as matérias relacionadas com o sistema reprodutivo, suas funções e processos.
A saúde reprodutiva implica, portanto, que as pessoas estejam aptas a ter uma vida sexual satisfatória e segura, que tenham a capacidade de reproduzir-se e a liberdade de decidir fazê-lo se, quando e quantas vezes desejarem. ou por meio de omissão, negligência ou discriminação protagonizadas por autoridades políticas nacionais ou internacionais. O princípio acerca da integridade corporal está na base da noção de liberdade sexual e reprodutiva. Trata-se de um princípio que transcende qualquer cultura e qualquer região, na medida em que passa a denunciar qualquer forma de escravidão, tortura e violência de forma geral. Afirmar o princípio da integridade corporal significa afirmar o direito à segurança e ao controle sobre o próprio corpo, o que denota a ideia de corpo como parte integral do eu, em que a saúde e o bem-estar constituem a base necessária para a participação ativa na vida social (CORRÊA; PETCHESKY, 1996).
Segundo Isaacs (1993), integridade corporal não é apenas um direito individual, mas social, considerando que sem ela as mulheres não podem atuar como membros responsáveis da comunidade. No que tange ao princípio da igualdade, este se aplica em duas condições: nas relações entre homens e mulheres e entre as próprias mulheres (condições como classe social, idade, nacionalidade, dentre outras). A responsabilidade sobre a contracepção não é distribuída de forma equitativa entre os gêneros, e ainda que estivesse em vigor a utilização de métodos contraceptivos por parte do público masculino, na ausência de mudanças estruturais de base socioeconômica e cultural, a igualdade entre homens e mulheres no tocante à igualdade sexual ainda seria inexistente. Destarte, segundo Corrêa e Petchesky (1996), os sistemas sociais não fornecem incentivos econômicos ou educacionais para que homens possam se envolver na criação dos filhos, reforçando a responsabilização feminina sobre o controle da fecundidade.
Garantir o princípio de igualdade na implementação dos direitos sexuais e reprodutivos requer também a atenção às diferenças entre as mulheres. As mulheres devem ser respeitadas em suas decisões, independentemente de sua etnia, religião, classe social, idade, estado civil, orientação sexual e nacionalidade. Prática do aborto: considerações de natureza internacional Sob o prisma internacional, a vedação à prática do aborto seguro constitui violação dos direitos humanos, na acepção dos direitos sexuais e reprodutivos. No entanto, cada nação possui sua legislação com as devidas disposições concernentes ao entendimento sobre o aborto. Para destacar alguns dos conteúdos internacionais que versam sobre o entendimento do aborto enquanto questão de saúde pública, salienta-se o Plano de Ação da Conferência sobre População e Desenvolvimento do Cairo, de 1994 e a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, de 1995.
Estes instrumentos internacionais, de acordo com Piovesan (2002), encorajam os Estados a revisar as legislações que tratam o aborto sob a ótica punitivista. De acordo com a OMS, a cada dia são feitos cerca de 55. O Comitê constatou que as restrições presentes na lei criminal submetiam as mulheres a tratamentos desumanos e que esse aspecto da lei criminal não é compatível com os direitos humanos das mulheres (MONTEIRO, 2006). A recomendação para que um país se associe aos padrões de garantia de direitos humanos demonstra que se espera dos governos a adequação aos compromissos assumidos por seus países para a proteção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Um Estado deve ser responsabilizado pelos serviços de saúde destinados à sua população, é responsável pelo acesso da população feminina a serviços de saúde humanizado.
Considerando os lugares nos quais as leis restritivas provocam morte massiva de mulheres por abortos ilegais, há que se reconhecer a necessidade de desencadear reformas legislativas, para que as leis alcancem os padrões de respeito aos direitos humanos, preservando a saúde e a dignidade das mulheres. No contexto internacional, o debate que suscita em torno do aborto apresenta relação direta com o âmbito dos direitos de liberdade sexual e reprodutiva. As mulheres são impedidas de recorrer aos cuidados de saúde quando sabem que policiais podem acessar as suas informações de saúde (CRENSHAW, 2002). O efeito da privação das mulheres que abortam de acessar os serviços de saúde mostra-se intenso principalmente quando a mulher sofre discriminação por parte de terceiros, que arriscam expô-la publicamente.
A possibilidade de uma mulher exercer o direito à prática do aborto seguro depende da legislação em vigor no país em que habita e da forma que a legislação é interpretada e aplicada. É oportuno destacar que em muitos países, mesmo naqueles que criminalizam o aborto, podem apresentar exceções na legislação permitindo-o em determinadas circunstâncias. No entanto, de acordo com Linhares (1998), as exceções estabelecidas pela própria lei, em geral, não constam com clareza nas leis ou estão redigidas de forma ambígua, não sendo compreendidas com propriedade pelos profissionais de saúde e pelas mulheres que desejam recorrer ao aborto. Trata-se de uma concepção defendida pelo movimento feminista, para o qual autonomia sobre o corpo e sobre o exercício da sexualidade não pode ocorrer se a vivência dessa sexualidade estiver relacionada à reprodução (MAYORGA, 2008).
De acordo com as feministas, a separação entre a sexualidade e a reprodução autoriza que a mulher tenha o poder para escolher viver suas relações afetivas e sexuais sem o imperativo da reprodução (MAYORGA, 2008). O Brasil optou por criminalizar a prática do aborto, estando em vigor a matéria no Código Penal de 1940, nos artigos 124 e 128 (BRASIL, 1940). Entretanto, o governo brasileiro instituiu uma comissão formada por representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e da sociedade civil com a finalidade de repensar o posicionamento do país em relação ao aborto. Essa comissão foi constituída na primeira Conferência Nacional de Políticas para as mulheres, realizada em 2004; o governo recomendou a criação de uma comissão tripartite para que fosse revista a legislação punitiva sobre o aborto, mas em função da interferência dos fundamentalistas religiosos, o projeto da comissão tripartite não foi entregue ao Congresso oficialmente por intermédio da Secretaria de Políticas para as Mulheres.
A lei tornou-se definitiva em 1979, e em 1982 foi editada outra lei prevendo a obrigação da seguridade social francesa de arcar com 70% dos gastos médicos e hospitalares decorrentes da interrupção da gravidez (SARMENTO, 2007). Em 2011, a França promulgou uma nova legislação sobre o aborto, ampliando o prazo geral de possibilidade de interrupção da gravidez de 10 para 12 semanas e tornou facultativa para as mulheres adultas a consulta prévia em estabelecimentos e instituições de aconselhamento e informações, que antes era obrigatória (SARMENTO, 2007). Portugal legalizou o aborto em 2007. O país registrava cerca 100 mil abortos, 2% resultava em mortes de mulheres. Após a legalização, houve um significativo quadro de redução no registro de abortos e nenhuma morte de mulheres submetidas ao procedimento, segundo levantamento realizado pela ONG Associação para o Planejamento da Família (VILAR, 2009).
A reforma da lei de aborto foi conquistada em vários países durante a década de 1990. Na Conferência das Nações Unidas realizada em Cairo, no ano de 1994, sobre população e desenvolvimento, os governos que estavam presentes demonstraram apoio às seguintes propostas: (. fortalecer o compromisso para com a saúde das mulheres, abordar a questão do impacto do aborto inseguro na saúde, considerando-o como uma preocupação em termos de saúde pública e reduzir o recurso ao aborto, ampliando e aprimorando os serviços de planejamento familiar. A prevenção da gravidez indesejada deve sempre merecer a mais alta prioridade, sendo que devem ser empreendidos todos os esforços para eliminar a necessidade de aborto. As mulheres com uma gestação indesejada devem ter acesso a informações confiáveis e à orientação solidária.
Os órgãos responsáveis por monitorar as convenções internacionais de direitos humanos criticam frequentemente os países que apresentam legislações restritivas, que culminam na morte de mulheres em razão da prática de abortos inseguros. A interpretação desses órgãos sobre a interrupção de uma gestação arriscada ou indesejada está associada a defesa da liberdade que a mulher deve dispor sobre o seu próprio corpo, não devendo ser tratada como uma criminosa por tomar uma decisão que diz respeito à sua vida e saúde. Além disso, o direito da mulher à privacidade também deve ser assegurado, levando-se em consideração os danos que podem ser causados pelo tratamento discriminatório exercido por parte do Estado e dos profissionais de saúde em relação às mulheres que abortam.
A garantia dos direitos humanos não deve estar associada à propósitos morais e religiosos. Os direitos humanos fundamentam a ideia de que as pessoas devem exercer a liberdade para tomar decisões, mesmo em se tratando de decisões críticas. As experiências ditatoriais assolavam o contexto latino-americano, duramente penalizado pela restrição de direitos civis e políticos. De acordo com Costa (2016), durante os períodos de repressão política surgem novos atores, reinterpretando a realidade na qual estavam inseridos e buscando formas alternativas ao exercício da cidadania em um momento histórico de reduzida participação política. Estudantes, sindicalistas, acadêmicos, operários, movimentos de mulheres, dentre outros, passaram a articular pautas que apresentavam pontos de articulação em comum: o combate à repressão política e o resgate dos direitos negados durante a ditadura civil-militar.
O fortalecimento do movimento feminista neste momento, ocorreu em consonância com os debates sobre direitos humanos, assunto cada vez mais em voga no país naquele período. As mulheres, neste sentido, buscavam inserção no diálogo relacionado aos direitos humanos, de modo a impor suas demandas nas propostas de políticas públicas dos governos (COSTA, 2016). A militância feminista uruguaia reivindicava o protagonismo e a representatividade das mulheres, ao mesmo tempo em que lutava em favor da redemocratização do país e defendia a garantia dos direitos humanos. Com o enfraquecimento do regime militar e o retorno das feministas exiladas, a atuação feminista uruguaia passa a se dedicar exclusivamente às pautas voltadas para as mulheres. A possibilidade dessa ocorrência pode ser explicada pela forma peculiar assumida pela transição democrática.
A abertura democrática gradual foi negociada entre os partidos políticos e os militares, experiência iniciada na década de 1980 com a proposta dos militares de reabrir espaço no Estado para a participação popular e dos partidos políticos (CORBO, 2007). É neste momento de redemocratização e de debates sobre o reestabelecimento dos direitos sociais e políticos que a discussão sobre a representatividade feminina e os direitos das mulheres adquire espaço. Entretanto, o partido colorado8, caracterizado por representar tendências conservadoras e nacionalistas, saiu vitorioso, com Julio Maria Sanguinetti. Já em 1989, a Frente Ampla também sofreu derrota e o presidente eleito foi Lacalle, da ala mais conservadora do Partido Nacional. E em 1994, o Partido Colorado venceu com 32,3% dos votos (FERREIRA, 2017). O aborto era criminalizado no Uruguai desde o ano de 1938, quando foi estabelecida uma lei que determina pena de 3 a 9 meses de prisão para as mulheres que o praticassem.
Mesmo com o processo de redemocratização do país, a partir dos anos 1980, pouco se discutia sobre o tema, apenas no âmbito dos movimentos sociais e associações de mulheres. Os outros partidos políticos, percebendo a dificuldade de incorporar o debate na agenda eleitoral e em seus programas, decidiram estagnar a discussão atinente ao aborto. A preocupação central dos partidos, naquele momento, apresentava relação com as eleições (JOHNSON; ROCHA; SCHENCK, 2015). Como consequência do travamento dos debates acerca da temática, o projeto de lei do deputado Sanseviero9, que assegurava a liberação do aborto, foi arquivado. O projeto apresentado por Sanseviero estabelecia que a prática do aborto poderia ser realizada até as 12 primeiras semanas de gestação da mulher, e assegurava a prestação de todos os serviços públicos e privados, com a garantia de todas as condições necessárias para as mulheres que optassem pelo procedimento.
Ao passar pela Comissão de Bioética, o projeto sofreu modificações, flexibilizando o prazo para a realização do procedimento de aborto (até a 20ª semana de gestação, a depender de determinadas circunstâncias), e a realização do procedimento fora das condições previstas em lei, incorreria em punições (JOHNSON, 2006). Mesmo sendo aprovado pelo Senado em 2008, o presidente vetou o projeto que descriminalizava a interrupção da gravidez, inaugurando um grande passo atrás que se dava em direção à garantia dos direitos reprodutivos das mulheres. O tema seria retomado com a eleição do Pepe Mujica, em 2009. A vitória de Mujica trouxe os ares da esperança na aprovação do projeto que regulamenta a descriminalização do aborto. A obtenção da maioria parlamentar e o fim da possibilidade do veto presidencial contribuíram para que o tema entrasse em cena desde o início da gestão de Mujica (FERREIRA, 2017).
Conforme aponta Ferreira (2017), o início do processo ocorreu com a tentativa de regulamentar a Lei nº 18. Dentre as condições estabelecidas por Posada estava a inclusão de uma cláusula no projeto que condicionasse a prática do aborto mediante a apresentação da mulher a uma equipe de profissionais de saúda (GREEN, 2012). Esse conato da gestante com o profissional de saúde seria feito para que fossem apresentadas a mulher todas as alternativas existentes para que a gestação prosseguisse. Por tal razão, a aprovação do projeto, que resultou no sancionamento da lei nº 18. não foi amplamente comemorada pelo movimento feminista. A Lei nº 18. No Caribe e na América do Sul, somente Cuba, Guiana Francesa, Guiana, Porto Rico e Uruguai permitem a interrupção da gestação de forma ampla e em todo território10.
A descriminalização do aborto no Uruguai representou um importante avanço na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, revelando um expressivo ataque ao núcleo duro de cerceamento destes direitos, realidade que vigorava no país desde a década de 1930. Em concordância com as expoentes do pensamento feminista pós-moderno das RI, essa trajetória do Uruguai de busca por direitos sexuais e reprodutivos, jamais poderia se equiparar às experiências do universo eurocêntrico ocidental, considerando a particularidade de um país situado em uma região onde as mulheres convivem com formas mais agudas de opressão (HARDING, 1990; TICKNER, 2001). De acordo com o relatório da MSU (2014), a taxa de mortalidade materna por aborto clandestino caiu significativamente entre os anos 2000 e 2013. No início dos anos 2000 foi registrada uma taxa de 29% de mortes maternas oriundas de abortos inseguros, e em 2013, esse número foi reduzido para 9%.
Trata-se de uma realidade que não encontra correspondência nos países desenvolvidos, onde as liberdades individuais recebem maiores garantias. As desigualdades entre as nações são gritantes, e os documentos internacionais relacionados aos direitos humanos devem conter considerações sobre essas assimetrias. A introdução do gênero enquanto categoria de estudo nas Relações Internacionais possibilita a análise das desigualdades de gênero em nível global e concede-se espaço para a introdução das mulheres no campo das RI. Assim, para lançar estudos relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, tornou-se indispensável abordar as teorias feministas das RI. O uso do termo gênero constitui um dos aspectos que se poderia chamar de busca de legitimidade acadêmica para os estudos feministas durante os anos 80, difundidos amplamente e de complexa conceituação (SCOTT, 1995).
Entretanto, as discussões e debates políticos que rondam o continente apontam para a manutenção das legislações que penalizam o aborto, a exemplo das sucessivas derrotas de projetos de lei favorável à prática, na Argentina e no Brasil. Mantendo-se, portanto, a restrição dos direitos humanos e das liberdades individuais nestes países. REFERÊNCIAS ALVAREZ, Gustavo Alberto Cabrera. Movimentos Sociais e Ditadura Militar no Uruguai. Em: Anais do IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina – Imperialismo, nacionalismo e militarismo no século XXI. p. jan-dez, 2009. BRASIL. Código Penal. Lei n° 2. Ano VII, N. COOK, R. J. DICKENS, B. M. Em: Anais do II Simpósio Internacional Pensar e Repensar a América Latina. USP: 2016. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero.
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