VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: ANÁLISE COMPARATIVA DOS ASPECTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS NOS SISTEMAS JURÍDICOS PORTUGUÊS E BRASILEIRO

Tipo de documento:Dissertação de Mestrado

Área de estudo:Direito

Documento 1

De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto». Rui Barbosa Resumo: Palavras-chave: Abstract Key-words: Outra língua estrangeira Siglas e Abreviaturas APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima CICS. NOVA - Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova DEAM - Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher DUDH - Declaração Universal dos Direitos do Homem EU - União Europeia GREVIO - Grupo de peritos para o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica HC - Habeas Corpus HIV - Vírus da imunodeficiência humana IPEA - Instituto de Pesquisa Económica Aplicada NOVA. FCSH - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova OMS - Organização Mundial de Saúde ONG - Girls Not Brides ONU - Organização das nações Unidas ONVG - Observatório Nacional de Violência e Género UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância UNODC - Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime MODO DE CITAR As referências bibliográficas (sejam elas monografias, manuais, comentários, artigos em publicações periódicas ou contributos para obras colectivas) serão descritas com a indicação do autor, título da obra, local de publicação, editora, ano e página.

Serão utilizadas as abreviações latinas Op. Insegurança na esfera familiar CAPÍTULO II - Panorama Internacional 5. Acordos e Convenções internacionais 6. Estatísticas Internacionais CAPÍTULO III - O ilícito-típico de violência doméstica em Portugal Aspectos Materiais 7. Sujeito e objeto do crime 8. Tipicidade 9. Ligue 180 21. Casa da Mulher Brasileira 21. Atendimento móvel de unidades CAPÍTULO V. Análise comparativa Considerações Finais Referências Bibliográficas Introdução A análise dos aspectos materiais e processuais do tipo ilícito violência doméstica nos sistemas jurídicos da República Portuguesa e da República Federativa do Brasil visa verificar as políticas e mecanismos legais existentes em ambos os países e, como a experiência de um pode ser benéfica para o outro, considerando as suas práticas históricas e culturais.

Para tanto, é importante verificar a relevância da experiência de um Estado de Direito na realidade de outro Estado, de modo a encontrar políticas de sensibilização e consciencialização social que se aproveite noutro país apesar das diferenças históricas e culturais. Por conseguinte, mediante uma análise minuciosa da legislação e mecanismos existentes em ambos os Estado de Direito aqui em questão, aspiramos com a presente investigação, identificar os aspectos positivos de cada país, assim como aquilo que houver de omisso ou insuficiente e, numa escala comparativa, promover essa troca enriquecedora de práticas e políticas positivas de combate ao fenómeno em apreço. Visando promover este debate levantamos algumas questões as quais nos propomos a responder ao longo desta dissertação.

ª Questão: O primeiro aspecto a ser analisado ao investigar o crime de violência doméstica é a sua tipificação e previsão legal em ambos os ordenamentos jurídicos a serem avaliados. Este tipo ilícito tem previsão em ambas constituições e em leis infraconstitucionais? 2ª Questão: Pretendemos identificar a construção histórica da legislação sobre este ato ilícito. Quando foi positivada pela primeira vez? Qual a evolução da pena a ser aplicada? 3ª Questão: Quais as políticas de sensibilização e consciencialização social empregadas por Portugal e pelo Brasil no sentido de evitar este crime? 4ª Questão: Por último, pretendemos enquadrar comparativamente este típico ilícito em ambos ordenamentos e verificar se existe um sistema mais eficiente que o outro.

As ciências jurídicas se entorpecem numa especificidade fraudulenta que encastela o ambiente acadêmico jurídico proporcionando restrição e pouca interdisciplinaridade. A maior dificuldade na análise reside na constatação de que o campo jurídico consubstancia-se num fenómeno pouco acessível, que não se deixa verificar na condição de objecto, conservando-se enrijecido em privilégios reflexos da condição decisória. Além disso, o Direito mostra-se possuidor de uma resistência perene a mudanças significativas e, mais grave, pouco preparado para enfrentar as novas demandas e categorias dos novos direitos, típicos da sociedade contemporânea5». Esta pesquisa será bibliográfica e documental. A pesquisa bibliográfica refere-se à implicação de um «conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento ao objectivo de estudo, e que, por isso, não pode ser aleatório6».

A instrumentalização deste método permite-nos avaliar como é a lei, neste facto particular, numa vertente puramente teórica da pesquisa. Por outro lado, os factos deste princípio, poderão encaminhar para novas decisões e para termos uma válida pesquisa, identificámos as semelhanças e as diferenças dos factos dos diferentes casos, sendo capazes de apreciar o impacto dos factos neste princípio, aplicado nos tribunais chegando até às particulares decisões. O terceiro formato da nossa pesquisa será a pesquisa jurídica comparativa, ou seja, procedendo ao estudo de um Direito Comparado. Usamos textos legislativos, jurisprudência e doutrinas legais, facilitando uma melhor compreensão das funções das regras e princípios de leis que envolvem a exploração do conhecimento detalhado da lei de outros países para compreendê-los, preservá-los e para traçar a sua evolução deste instituto, em cada país.

A pesquisa jurídica comparativa é benéfica para apontar as alterações e mudanças na lei, dos diferentes sistemas jurídicos, examinando a Jurisprudência de Portugal e do Brasil. A violência mais inquietante e devastadora é a doméstica, porque a família deveria ser o espaço mais amoroso, pela sua função formadora, e responsável pela transmissão de modelos socialmente corretos. As consequências da violência doméstica são desastrosas, porque atingem o celeiro humano de novas personalidades, desvirtuando-as, impedindo o seu desenvolvimento e sendo multiplicadora de violência10. Para Dias, o ciclo da violência pode ser explicitado, de uma forma genérica, do seguinte modo: Primeiro vem o silêncio seguido da indiferença. Depois reclamações, reprimendas, reprovações. Em seguida, começam os castigos e as punições.

É claro que cada caso reflete as peculiaridades da vida íntima da família e de seus conflitos, inerentes a qualquer relação humana, sendo a narrativa acima descrita apenas para exemplificar, grosso modo, as inúmeras violações sofridas pelas mulheres no âmbito doméstico e a importância do efetivo combate àquelas agressões tidas como de menor potencial ofensivo. Zehr12 rejeita a ideia de que a violência doméstica é resultado apenas da intensificação do conflito familiar. Rechaça, também, a percepção de que a culpabilidade do agressor seja, de algum modo, compensada pelo comportamento da vítima. Essas ideias são comumente repassadas como verdadeiras e prejudicam o reconhecimento das reais causas dos conflitos e da responsabilidade conjunta dos envolvidos para a adequada resolução.

Nesse sentido, a prevenção à violência doméstica, nos diferentes níveis dos poderes constituídos, mostra-se fundamental para encerrar o ciclo da violência e impede que a situação da vítima se agrave, passando de um empurrão ou ofensa verbal para uma lesão corporal ou, até mesmo, para um crime contra a vida. Ambos os universos, ativo e passivo, criam polos de dominação e submissão”16. Esse modelo patriarcal justificava a submissão da mulher nas relações familiares, que toleram, inclusive, atos de violência praticados no âmbito doméstico, como questão de natureza privada, a ser resolvida apenas pelos membros da entidade familiar, sem que houvesse qualquer interferência de terceiros, muito menos das autoridades públicas, tanto que há o ditado popular no sentido de que: “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.

Dessa forma, a violência doméstica contra a mulher é apenas uma das consequências dessa cultura de gênero discriminatória, além da postura conciliadora de algumas mulheres dentro das famílias. Não se pode olvidar, ainda, que o movimento de luta das mulheres por igualdade alterou drasticamente o modelo familiar tradicional e acentuou os conflitos dentro dos lares, em decorrência da redefinição das funções antes atribuídas apenas às mulheres. Contexto A violência praticada contra as mulheres tem como objetivo mantê-las em uma posição inferior em relação aos homens, enquanto os homens geralmente sentem que eles têm o dever de "educar" as mulheres sobre seus direitos e a sua posição17. Existem, em torno dessa violência, numerosas discussões acerca de seus aspectos sociais, econômicos, psicológicos e jurídicos.

Uma das questões levantadas durante muito tempo se referia aos termos utili-zados para designar a violência e a abrangência que implicavam, ou seja, quem seriam os sujeitos envolvidos nela a partir da denominação que lhe era dada. Sob uma prespectiva abrangente, a violência doméstica consiste em dois fenômenos diferentes: a violência conjugal, que se refere à coação de parceiros, no âmbito do casamento ou nos relacionamentos íntimos de afeto; e no abuso, que, por sua vez, compreende a exploração violenta, maus-tratos ou negligência de alguém que está sob a dependên-cia de outra pessoa22. As transformações cronológicas dos termos utilizados para designar a violência nos revelam uma evolução das formas de abordar o fenômeno, nomeadamente passando a tratá-lo não mais como um acontecimento banal da vida em comum dos envolvidos na violência, mas simcomo o delito que é.

As primeiras denominações do fenômeno foram “violência familiar”, depois chegou-se à “violência doméstica” a que nos referimos hoje, depois passou a chamar-se por “maus-tratos conjugais”, e, maisrecentemente, em 2002, um relatório da Organização Mundial de Saúde apontou para o uso da expressão “maus-tratos inflingidos por um parceiro íntimo”, o que alarga bastante o âmbito em que pode vir a acontecer a violência porque não se refere apenas aos cônjuges, como faz a expressão “maus-tratos conjugais”, passando a envolver os parceiros, sem que se verifique, obrigatoriamente, uma vida em comum entre eles23. Todavia, nas situações de violência doméstica, este ambiente que deveria ser a referência de paz e segurança, torna-se num ambiente de sofrimento e dor, local de um crime capaz de deixar consequências nefastas às vítimas diretas e colaterais desta prática.

«Na família moderna, o amor romântico constitui a base e o fundamento do casamento. Este é praticamente impensável sem amor. Todavia, o amor também pode ser fonte de instabilidade e de conflito»27. Pensamos na família como uma unidade, esquecendo a multiplicidade de situações e de dimensões que a atravessam. Intimidação, coação e ameaça é «intrinsecamente associada à violência emocional-psicológica, consiste em manter a mulher vítima sempre com medo daquilo que o agressor possa fazer contra si e/ou contra os seus familiares (sobretudo filhos) e amigos, a animais de estimação ou bens»31. iii. Violência física «consiste no uso da força física com o objetivo de ferir/causar dano físico ou orgânico, deixando ou não marcas evidentes - engloba comportamentos que podem ir de formas menos severas de violência física até formas extremamente severas, das quais resultam lesões graves, incapacidade permanente ou mesmo a morte da vítima»32.

iv. Isolamento social «resulta das estratégias implementadas pelo agressor para afastar a vítima da sua rede social e familiar, dado que uma vítima isolada é mais facilmente manipulável e controlável do que uma vítima com uma boa rede de apoio familiar e social. Ou, que todas estas formas de violência ocorram linearmente em todas as situações de violência doméstica. Ou, ainda, que estas dinâmicas violentas não possam começar diretamente com actos de violência física e/ou sexual graves. Apesar das mulheres serem em larga escala as mais afetadas por este fenómeno, também as crianças, idosos e os homens são vítimas do crime de violência doméstica. «A violência doméstica é um modo de afirmação de poder que instaura uma luta desigual ao escolher como alvos elementos debilitados da cadeia de solidariedade que constitui a humanidade como um todo.

Em situações obviamente diferenciadas, as mulheres, as crianças, os idosos e os deficientes são as maiores vítimas da violência que intervém sobretudo nos interstícios não regulados do jogo entrecruzado da vida humana»36. A tipificação do ilícito da violência doméstica «protege um bem jurídico de largo espectro e compreensivo que inclui, não só a pessoa individual - a sua saúde física e mental, a dignidade pessoal, o desenvolvimento harmonioso, etc - como também a dignidade humana, pelo que o seu âmbito inclui os comportamentos que lesam essa mesma dignidade»42. No que respeita ao tipo subjetivo, revela-se imprescindível o conhecimento e vontade de praticar o facto por parte do agente do crime, pelo que o crime de violência doméstica só pode ser cometido dolosamente.

Exige-se que o agente tenha uma relação com a vítima, que tenha plena consciência da qualidade e identidade da vítima e, ainda assim, não se demova da prática dos factos criminosos. A realidade deste fenómeno da violência doméstica é muito dura e, para além de uma grave violação dos direitos humanos (Declaração Universal dos Direitos do Homem, DUDH, 1945), é também um grave problema de saúde pública (Organização Mundial de Saúde, OMS, 2003). Por ser um crime complexo, com inúmeros desafios de âmbito jurídico, social e psicológico, existe dentro desta realidade multidisciplinar, a necessidade de se apresentar uma concertação de esforços e de entidades para a sinalização e tratamento desta matéria.

A mulher não tinha direitos ou vontades, não tinha “voz” na sociedade. Havia uma dominação dos homens que sempre ocupavam os cargos mais elevados, económica e politicamente e ainda perante a família, uma discriminação sociocultural envolta ao machismo exacerbado, criando assim pólos de dominação e submissão47. Com a evolução da sociedade e sua complexidade, o direito como efeito das mudanças também evoluiu, porém em relação a mulher, o desenvolvimento dá-se em passos muito lentos. É a partir dos anos 80 que a violência doméstica adquire uma força nos debates políticos e sociais, bem como no planeamento da saúde pública48. Hoje é patente uma nova sensibilidade a tão dramática questão, a qual se consubstancia numa séria e generalizada preocupação da opinião pública com o combate a esse estigma social.

Acordos e Convenções internacionais 5. Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, conhecida como Convenção de Istambul, por ter sido aberta em Istambul em 11 de maio de 2011. Trata-se de uma convenção do Conselho da Europa destinada a combater a violência contra mulheres e a violência doméstica através da prevenção da violência, proteção das vítimas e eliminação da impunidade dos agressores. A Turquia foi o primeiro país a ratificar a Convenção, em 12 de março de 2012. A convenção entrou em vigor em 1 de agosto de 2014.

Estudos revelaram que certos papéis e comportamentos podem contribuir para tornar a violência contra as mulheres aceitável. • A convenção estabelece infrações penais, tais como a mutilação genital feminina, o casamento forçado, a perseguição, o aborto forçado e a esterilização forçada. Os Estados serão, portanto, obrigados, pela primeira vez, a introduzir estes graves crimes nos seus sistemas jurídicos. • Ela apela ainda ao envolvimento de todas as agências e serviços estatais relevantes, para que a violência contra as mulheres e a violência doméstica sejam combatidas de uma forma coordenada. Isto significa que as agências e as ONG não devem agir isoladamente, mas sim criar protocolos de cooperação. Pelo contrário: para realçar o efeito particularmente traumatizante dos crimes contra a família, pode ser imposta uma pena mais pesada ao agressor quando a vítima é o cônjuge, o parceiro ou um familiar.

A Convenção estabelece um mecanismo de monitorização para determinar em que medida estas disposições são aplicadas. O mecanismo de monitorização assenta em dois pilares: O Grupo de peritos sobre o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica (GREVIO), um órgão de peritos independentes, e o Comité das Partes, um órgão político composto por representantes oficiais dos Estados partes da Convenção. As suas conclusões e recomendações ajudarão a assegurar o respeito da Convenção pelos Estados, a fim de garantir a sua eficácia a longo prazo. Na Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica53, esta é definida como “abrangendo todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex- cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima54”.

O casamento infantil não apenas acaba com os projetos de educação e de vida de milhões de mulheres menores de idade, mas também aumenta a chance de que sofram violência por parte de seus maridos, segundo a ONU Mulheres. Em termos relativos, a África Central e Meridional é a região onde mais prevalece essa prática: 40% das jovens se casam antes dos 18 anos e 14% antes dos 15, segundo dados deste ano do Unicef. Em termos absolutos, contudo, os superpopulosos, Bangladesh (18 milhões) e Índia (26 milhões) lideram o ranking dos casamentos de meninas e mulheres menores de idade, segundo a ONG Girls Not Brides. Em muitos casos, a lei pouco adianta. Embora a imensa maioria dos países determina que os 18 anos são a idade legal para casar, a proporção de meninas-esposas - inclusive antes dos 15 anos - é muito alta: em Cabo Verde e no Burundi, por exemplo, ronda os 30%.

Sujeito e objeto do crime Em Portugal a violência doméstica engloba todas as situações de conduta ou omissão que infrinjam sofrimento de natureza física, sexual, psicológica ou económica de forma direta ou indireta a pessoas que coabitem o mesmo agregado doméstico, ou não coabitando, que sejam parceiros íntimos ou ex-parceiros ou que possuam parentesco civil (como casamento e adoção) ou natural (como filhos, netos e avós biológicos)57. Tipicidade De acordo com a Lei nº 112, de 16 de setembro de 2009, que aprovou o Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e a Proteção e Assistência das suas Vítimas, o estatuto de vítima é concedido pela autoridade judiciária ou pelo órgão de polícia criminal, sempre que exista uma denúncia e desde que não haja indícios fortes de que a mesma é infundada, tal como elenca o Artigo 14º «Atribuição do estatuto de vítima.

Apresentada a denúncia da prática do crime de violência doméstica, não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima, para todos os efeitos legais, o estatuto de vítima. Sempre que existam filhos menores, o regime de visitas do agressor deve ser avaliado, podendo ser suspenso ou condicionado, nos termos da lei aplicável. No mesmo ato é entregue à vítima documento comprovativo do referido estatuto, que compreende os direitos e deveres estabelecidos na presente lei, além da cópia do respetivo auto de notícia, ou da apresentação de queixa. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos»63, cuidando-se, em último ratio, da dignidade da pessoa humana.

Neste sentido, o douto Tribunal da Relação de Coimbra tipifica a violência doméstica da seguinte forma: «I. O preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige uma relação de proximidade afetiva entre o agente e a vítima, mormente análoga à da conjugalidade, actual ou, entretanto terminada, e falando a norma em maus tratos físicos ou psíquicos, castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais. II. Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano»64. Em causa estão condutas violentas – física, psicológica, verbal, sexual ou economicamente – que sejam dirigidas a uma pessoa especialmente vulnerável em razão da relação que mantenha com o agressor69, com frequente sujeição a um poder, domínio ou controlo sobre a vida, integridade ou liberdade da vítima.

Desta forma, a ofensa tem que ser de tal modo intensa que atinja um dos bens jurídicos protegidos70, na certeza de que existem situações normais da vida corrente em que os cônjuges, pais, filhos ou trabalhadores dependentes discutem e se agridem, sem que pratiquem um crime. Revela-se, então, de importância fundamental a qualificação do tipo de relação entre os agentes envolvidos, bem como dos comportamentos que mutuamente adoptam. O que ocorre com mais frequência são maus tratos físicos, podendo resultar em ofensas corporais simples ou graves (conforme previsão autónoma nos artigos 143º e 144º do Código Penal), consoante a intensidade com que são infligidas, os meios utilizados, o local da agressão, o estado físico ou anímico dos intervenientes, os meios de recurso/socorro ou a facilidade de ocultação do acto agressivo bem como de suas consequências.

Os maus tratos psíquicos71 são normalmente associados a conflitos interiores e mentais das vítimas, com sofrimento, aflição, medo, receio constante de sofrer agressões ou morrer, podendo conduzir, a final, a episódios de depressão, doença equivalente do foro psicológico ou a tentativas de suicídio/homicídio do agressor/vítima. Estas relações, quando assumem uma natureza idêntica à do casamento, são também tuteladas no que respeita à violência conjugal, uma vez que o tipo de relacionamento e de intimidade entre os pares é a mesma em ambas as situações, excetuando-se as relações esporádicas78. Mais se abrange o progenitor de descendente comum de 1º grau, conforme a alínea c) do n. º 1 do mesmo artigo. Neste caso, deverá compreender-se que o progenitor de descendente comum não deve manter com o agente do crime uma relação análoga à dos cônjuges, pois, se assim fosse, ficaria abrangido pela primeira categoria elencada.

No entanto, são invocadas também as pessoas vulneráveis e indefesas, como sendo aquelas que se encontram numa situação de especial fragilidade ou vulnerabilidade, por serem menores79, idosos, padecerem de deficiência, doença física ou psíquica, mulheres grávidas ou dependentes economicamente do agente. Segundo Albuquerque82, este concurso é aparente, tendo em vista que a regra da subsidiariedade dita qual o artigo que deverá ser aplicado. A seu turno, Taipa de Carvalho entende que a relação aqui assumida é de consumpção, uma vez que o crime de violência doméstica abrange todas as incriminações acima referidas. A jurisprudência83 recepciona a qualificação como concurso aparente, marcado por uma relação de subsidiariedade que o crime de violência doméstica apresenta frente aos outros crime.

Os factos praticados deixam de ter uma relevância jurídico-penal enquanto eventos separados, sendo sim valorados conjuntamente no crime familiar. Existem casos em que a jurisprudência caracteriza a relação como sendo de especialidade84, no que se prende com os crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça, em que a punição do artigo 152º consiste numa manifestação especial dos referidos crimes. º 1 do Código Penal. Em sentido contrário, Taipa de Carvalho faz operar a excepção prevista no final do referido n. º 1, pelo que o autor ou cúmplice da prática do crime só poderá ser quem estiver para com o sujeito passivo – a vítima – numa das relações previstas no artigo 152º do Código Penal. Para tanto, não se está a falar de comparticipante qualquer, mas somente de alguém que consiga reunir as mesmas qualidades que o autor, não sendo, nestes termos, as qualidades de cada autor comunicáveis a outro sujeito activo.

Este último posicionamento parece ser o mais conforme com o espírito do legislador ao longo do desenvolvimento histórico do tipo de crime, uma vez que demonstra inequivocamente a essencialidade da relação existente entre o agente e a vítima, deixando de fora do tipo legal todos os que não detenham essas mesmas qualidades. Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos86. A aplicação das normas penais depende, como é natural, das normas processuais. Em se tratando do crime de violência doméstica essa dependência assume particular importância, dada a sensibilidade e atualidade da matéria.

Neste sentido, o ordenamento jurídico português conta hoje com medidas de promoção processual e proteção da vítima de violência doméstica, tal como o direito à audição e apresentação de provas, direito à proteção especial, direito ao recurso à teleassistência e aos meios técnicos de controlo à distância, direito à indemnização, direito a prestar declarações para memória futura, sem olvidar a punição e reintegração do agente criminoso na sociedade. Processo Crime O Ordenamento Jurídico Português não requer queixa (artigo 113º do Código Penal) para que tenha início o procedimento criminal, por se tratar de um crime público, basta a mera denúncia apresentada por qualquer pessoa que tenha conhecimento da notícia do crime.

º, nº 3 do Código de Processo Penal87. O legislador português consagrou no artigo 20. º, nos 4 e 5 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, a possibilidade de recurso à teleassistência, sempre que tal se mostre imprescindível à proteção da vítima. A vítima de violência doméstica tem direito a obter uma indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável, ainda que não tenha sido solicitada pela vítima. Sobre este tema, o Tribunal da Relação de Coimbra (2016) afirma o seguinte: I. Nesta análise, é importante destacar que, apesar da rigidez da norma, nos termos do artigo 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, parece alargar o âmbito de aplicação das declarações para memória futura. Neste sentido, na «medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e realização da justiça»91 pode o juiz decidir pelo afastamento do princípio da imediação já referido.

Neste mesmo sentido, foi o entendimento do Tribunal da Relação do Porto: «É justificada a tomada de declarações para memória futura a vítima de violência doméstica que se encontra retida no domicílio comum e impedida de se deslocar - art. º 1 Lei 112/2009 de 16/9, art. º da Lei 93/99 de 14/7 e 271º do CPP»92. A Políciade Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana registraram, no período compreendido entre 2000 e 2006, cerca de 110 mil ocorrências de violência doméstica. Com exceção do ano de 2004, essas ocorrências aumentaram todos os anos, tendo passado de 11. mil em 2000 para 20. mil em 2006, o que representa um crescimento anual de 11,2%95. Em 2007, essas Forças de Segurança registraram diminuição do número de casos de violência doméstica em relação ao ano anterior, foram 17.

Em 2011 os números da violência doméstica no país chegaram a mais de seis mil (nomeadamente 6. mil), ocorrendo 19 casos de violência por dia. Ainda segundo dados da APAV, cerca de 8% dessas vítimas são estrangeiras100. Em 2012 os números de violência doméstica no país aumentaram para mais de sete mil casos (nomeadamente 7. mil), sendo os maus tratos físicos e psiquícos as formas de violência predominantes101. Neste período, a APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima - registou um total de 36. processos de apoio a pessoas vítimas de violência doméstica. Estes valores traduziram-se num total de 87. factos criminosos. A vitimação continuada representa cerca de 80% das situações, com uma duração média entre os 2 e os 6 anos (15,1%).

Em 2016, foram registradas 23. denúncias de violência doméstica entre parceiros íntimos ou cônjuges às autoridades policiais portuguesas, destas, 20388 (85,32%) dos suspeitos identificados como perpetradores eram homens e 3508 (14,78%) eram mulheres. No entanto este número pode ser ainda maior, em decorrência da sub-notificação, já que muitos homens e mulheres deixam de denunciar por diversos motivos. Um estudo realizado pela Universidade do Minho concluiu com base em estimativas que apenas 10% dos homens e 23% das mulheres vítimas de violência doméstica relatam à polícia o ocorrido. O número de vítimas que procuram ajuda em organizações de apoio a vítimas também é menor entre os homens, apenas 23% deles contra 43% delas recorrem a algum serviço de apoio a vítimas. Segundo dados da UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta - há anualmente uma média de 27 mil denúncias por violência doméstica, sendo que 80 por cento delas são de mulheres e chega a julgamento cerca de sete por cento.

Ações Governamentais A Lei nº 112, de 16 de setembro de 2009, que aprovou o Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e a Proteção e Assistência das suas Vítimas determina que o Governo Português deve promover um «Plano Nacional Contra a Violência Doméstica», nos termos do Artigo 4ª da lei supracitada: «1 - Ao Governo compete elaborar e aprovar um Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (PNCVD), cuja aplicação deve ser prosseguida em coordenação com as demais políticas sectoriais e com a sociedade civil. A dinamização, o acompanhamento e a execução das medidas constantes do PNCVD competem ao organismo da Administração Pública responsável pela área da cidadania e da igualdade de género»105.

Pulseira Eletrónica O monitoramento de casos de violência doméstica através da pulseira eletrónica permite saber quando o agressor se aproxima da vítima, o que lança um alerta nas autoridades. A Lei 33, de 02 de setembro de 2010, que trata sobre a vigilância eletrônica de condenados ou réus em processos criminais, permitiu o uso de pulseiras eletrônicas em agressores para fins de controle de contato do mesmo com a vítima de violência doméstica. A APAV, reconhecendo que os utentes que recorrem aos seus serviços têm necessidades específicas, que reclamam, por isso, intervenções especializadas, promove três tipos de apoio: Jurídico, Psicológico e Social. Este apoio é prestado por um conjunto de Técnicos de Apoio à Vítima devidamente formados e preparados para poderem prestar um apoio de qualidade e que responda adequadamente às diferentes necessidades das vítimas de crime.

A confidencialidade e a escuta activa à/ao utente são essenciais num atendimento e apoio adequado a estas vítimas. Importa, acima de tudo, que a vítima se sinta ouvida e compreendida, num espaço onde não sejam tecidos quaisquer juízos de valor e onde a sua vontade e decisões são sempre respeitadas. Qualquer atendimento é estritamente confidencial, pelo que quaisquer dados sobre a vítima e a sua situação de vitimação não serão transmitidos a terceiros. Dentre elas estão a possibilidade de as vítimas de crimes de violência conjugal obterem indenização por parte do Estado (Decreto-Lei 423/91; Lei 10, de 23 de março de 1996; e Lei 136, de 28 de agosto de 1999), a possibilidade de, comprovando que não dispõe de recursos financeiros suficientes, ser representada por advogado oficioso nomeado pela Seguraça Social (Lei 30-E,de 20 de dezembro de 2000), e a possibilidade de serem acolhidas na rede pública de Casas de Abrigo.

Direito à audição e apresentação de provas Aliados aos direitos de informação inerentes à atribuição do Estatuto de vítima, são reservados às vítimas de violência doméstica outros direitos, entre os quais o direito de audição e de apresentação de provas quando se constitua assistente (artigos 68º e 69º, n. º 2, alínea a) do Código de Processo Penal e ponto 2 do Anexo I da Portaria n. º 229-A/2010, de 23 de Abril da Presidência do Conselho de Ministros e Ministérios da Administração Interna e da Justiça) e enquanto colaborara do Ministério Público (artigo 16º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, artigo 69º, n. º 1 e artigo 346º do Código do Processo Penal). Neste regime, toma lugar relevante o artigo 134º, n. os 1 e 2, segundo o qual, o depoente pode recusar-se a depor quando seja descendente, ascendente, irmão, afim até ao 2º grau, adoptante, adoptado, cônjuge ou ex-cônjuge do arguido ou com ele conviva ou tenha convivido em relação análoga.

Ora, estas pessoas correspondem quase totalmente àqueles que são susceptíveis de serem as vítimas do crime de violência doméstica, pelo que podem sentir-se constrangidas ou reticentes em prestar depoimento, independentemente da sua qualidade processual. Direito à protecção (Artigo 20º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro) Este direito é garantido a todos aqueles que sejam testemunhas, definindo-se como tais “qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto face à lei processual, disponha de informações ou conhecimentos necessários à revelação, percepção ou apreciação de factos que constituam objecto do processo, de cuja utilização represente um perigo para si ou para outrem” (conforme definição na alínea a) do artigo 2º da Lei de Protecção de Testemunhas, Lei nº 93/99, de 14 de Julho, por remissão pelo nº.

do artigo 139º do Código de Processo Penal). Complementarmente, podem existir medidas e programas especiais de segurança, sempre que especiais razões o justifiquem, estando em causa crime que deva ser julgado por Tribunal colectivo ou Tribunal de júri. O recurso à teleassistência e os meios técnicos de controlo à distância No artigo 20º, especialmente nos n. os 4 e 5 da Lei n. º 112/2009, de 16 de Setembro, o legislador consagrou a possibilidade de recurso à teleassistência, sempre que tal se mostre imprescindível à protecção da vítima e obtido o seu consentimento, por período não superior a 6 meses. A teleassistência consiste numa forma específica de protecção organizada em torno de um sistema tecnológico que integra um leque de respostas e intervenções através de apoio psicossocial e protecção policial, promovendo-se uma intervenção imediata e eficaz em situações de emergência, de forma permanente e gratuita, 24 horas por dia (artigo 2º, n.

A concessão desta indemnização é obrigatória, resultando a sua imposição do artigo 21º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, presumindo-se a existência de particulares exigências da sua protecção, só assim não sendo quando a ele se oponha a vítima expressamente (assim no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02. proc. n. TBFIG. C1). Ao mesmo órgão cabe o exercício da acção penal, orientado pelo princípio da legalidade democrática, nos termos da Constituição e outros instrumentos110. Assim, “o Ministério Público deve dirigir o inquérito, investigar os factos, norteado pelos princípios da legalidade e de estrita objectividade e imparcialidade (…)”111. O Ministério Público, para além do respeito pela legalidade, deve promover todos os esforços e diligências para que a sociedade veja restabelecida a sua paz social após a prática do crime, tomando em consideração os interesses das vítimas, ofendidos e testemunhas, através da adopção de medidas que visem a protecção da vida, segurança e privacidade112, estabelecendo uma “ligação” entre a vítima e o sistema penal de controlo.

O Ministério Público goza, ainda, de poderes especiais de protecção da vítima, o que permite o contacto com instituições públicas, associações particulares e organizações não-governamentais, criando espaços de detecção, acompanhamento e tratamentos desses mesmos casos. Quando o Ministério Público não tiver a percepção ou conhecimento directo da prática do crime, a função fica atribuída aos órgãos de polícia criminal, especificamente à Guarda Nacional Republicana ou à Polícia de Segurança Pública – entidades estas que têm demonstrado um notório esforço e preocupação na formação dos seus membros, para melhor responder às solicitações das vítimas de violência doméstica, promovendo a prevenção, investigação e acompanhamento das situações.

No encerramento, e uma vez recolhidos os indícios suficientes da prática de crime e de quem foi o seu agente, pode o Ministério Público optar pela aplicação de um dos institutos previstos no Código de Processo Penal, entre os quais a suspensão provisória do processo, conforme previsão do artigo 281º do diploma. No Ordenamento Jurídico Português predomina o princípio da legalidade, consistente com um processo de estrutura inquisitória, com base no qual se reserva à entidade titular da acção penal a obrigação de promover o processo sempre que tiver adquirido a notícia de um crime, submetendo o acusado a julgamento quando verificada existência de indícios suficientes da prática do crime117. O regime da suspensão provisória do processo pode ser aplicado em casos de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente de prisão, estando na disponibilidade do Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, mediante concordância do Juiz de Instrução118.

Para tanto, é necessário que estejam presentes os seguintes requisitos: (1) o arguido e o assistente têm que manifestar a sua concordância pela opção; (2) não pode o arguido ter sido condenado anteriormente por crime da mesma natureza nem beneficiado de suspensão provisória do processo por crime também da mesma natureza; (3) não haver lugar a medida de segurança de internamento; (4) ausência de culpa grave na prática dos factos criminosos e (5) ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir119. As manifestações de prevenção geral e especial são conditio sine qua non para o decretamento da suspensão, tornando-se possível atingir os fins que presidiram à criminalização da conduta por meios mais benignos do que uma pena de prisão.

 Em 7 de agosto de 2006 foi publicada a Lei Federal nº 11. Lei de Prevenção à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher), conhecida como Lei Maria da Penha. A problemática da violência doméstica é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como violação de direitos humanos e de saúde pública. Na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, em 1993, a Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou que a violência doméstica contra a mulher é um obstáculo ao desenvolvimento, à paz e aos ideais de igualdade entre os seres humanos. O Brasil e a ONU firmaram Pacto Comunitário contra a violência intrafamiliar, em 25 de novembro de 1988. Por essa razão, a referida lei ficou popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha”, tendo em vista que Maria da Penha foi a vítima que se notabilizou no combate a tal tipo de violência, chegando a protagonizar um processo internacional no qual a OEA recomendou ao Brasil a adoção de várias medidas para combater a violência contra a mulher, dentre as quais: a simplificação dos procedimentos judiciais para reduzir o tempo do processo.

Maria da Penha Maia Fernandes é farmacêutica bioquímica pela Universidade Federal do Ceará, com Mestrado em Parasitologia, pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas, da Universidade de São Paulo, onde conheceu seu esposo, o colombiano Marcos Antonio Heredia Viveros. Segundo Maria da Penha, após a naturalização, o marido mudou seu comportamento, passando a ser uma pessoa “agressiva, intolerante, grosseira”124. Em 29. ela sofreu um disparo de arma de fogo efetuado pelo próprio marido, em simulação de assalto, enquanto dormia, que a deixou paraplégica. Não obstante, a maior parte da violência doméstica no Brasil é cometida contra mulheres por seus parceiros ou ex-parceiros íntimos127. Tipificação No Brasil, a violência doméstica é legalmente definida na Lei 11. de 7 de agosto de 2006, nominada Lei de Violência Doméstica e Familiar e conhecida como Lei Maria da Penha, no seu Artigo 5º.

«Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único.

Lei 11. Art. º  - Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Art. º  Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Lei Maria da Penha. Art. Parágrafo único.   Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação 17.

Legislações Conexas Em 2009, o Código Penal Brasileiro foi atualizado, pela Lei 12. LMP). Retirou-se, ainda, a possibilidade de a vítima desistir da ação penal em caso de crime de lesão corporal leve, um dos delitos mais comuns nessa espécie de violência, com a exclusão do procedimento da Lei n. aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independente da pena prevista (art. LMP). A Lei n. Além disso, mesmo com o oferecimento da denúncia, ainda seria cabível a suspensão condicional do processo, para aquelas infrações cuja pena mínima fosse inferior ou igual a 1 (um) ano e desde que atendidos os demais requisitos legais, como direito subjetivo do réu. Desse modo, os casos mais comuns de violência contra a mulher eram processados nos Juizados Especiais Criminais.

Logo, dispensava-se o flagrante, caso o agressor se comprometesse a comparecer em juízo. Na audiência preliminar, a vítima decidia quanto à representação na presença do agressor, sem qualquer preparação para aquele momento, em situação de pressão e constrangimento. Caso mantivesse a representação, havia a possibilidade de transação penal, com aplicação de prestação pecuniária ou prestação de serviços à comunidade, ou ainda de suspensão condicional do processo, sem gerar antecedentes criminais, nem efeitos civis134. inc. II, “f”, CP); e alterou a Lei de Execução Penal - LEP para facultar ao juiz que determine o comparecimento obrigatório do agressor em programas de recuperação e reeducação, importante ferramenta para prevenir a reiteração delitiva (art. Lei n.

O STF foi instado a se manifestar sobre o tema em duas ações de controle concentrado de constitucionalidade: na Ação Direta de Constitucionalidade (ADC 19), proposta pela Presidência da República, e na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4. ajuizada pela Procuradoria-Geral da República. a) Antônio Carlos Cruvinel, 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 06/11/2007, publicação da súmula em 09/01/2008). PENAL - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - LEI Nº 11. LEI MARIA DA PENHA) - MEDIDAS PROTETIVAS - INCONSTITUCIONALIDADE SUSCITADA - VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA - INOCORRÊNCIA – ÓBICE CONSTITUCIONAL AFASTADO. A Lei Maria da Penha não discrimina o homem em benefício da mulher, dado que, se, por um lado, norma constitucional garante a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. º, I), por outro cria a necessidade de o Estado coibir a violência no âmbito de relações familiares (art.

O STF admitiu a constitucionalidade do art. da LMP, o qual prevê a cumulação de competência das varas criminais, para conhecer e julgar as causas cíveis e criminais, enquanto não estiverem instalados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Não há desrespeito à norma do art. inc. I, e do art. – JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. O artigo 33 da Lei nº 11. no que revela a conveniência de criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, não implica usurpação da competência normativa dos estados quanto à própria organização judiciária. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER – REGÊNCIA – LEI Nº 9. – AFASTAMENTO. Implica relevar os graves impactos emocionais impostos pela violência de gênero a vítima, o que a impede de romper com o estado de submissão.

Entendeu-se que a necessidade de representação da vítima seria um obstáculo à punição do agressor e importaria em inobservância ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. , inc. III, da CF/88); ao direito fundamental de igualdade (art. , inc. Em razão do tratamento diferenciado que dá às mulheres e de algumas disposições nela previstas, questionou-se a sua constitucionalidade, sob o fundamento principal de que violaria o princípio da igualdade, consagrado no caput do art. º da CF/88. De forma similar, acredita-se que as recentes alterações introduzidas pela Lei do Feminicídio abrirão espaço ao ressurgimento desta e de outras discussões relativas à constitucionalidade136. O princípio constitucional da igualdade estabelece que todos têm direito a que a Lei os trate por igual, proibindo a discriminação.

No entanto, não é qualquer tratamento desigual que é discriminatório: somente o é aquele que não se baseia em causas objetivas ou razoáveis. Verificou-se, desta forma, a necessidade de uma atitude positiva, por meio de políticas públicas e da publicação de normas que assegurassem igualdade de oportunidades e de resultados na divisão social dos bens escassos: a chamada discriminação positiva138. Neste quadro, haveria dois tipos de políticas públicas destinadas a combater a discriminação e seus efeitos: a) políticas governamentais de feição clássica, comumente traduzidas em normas constitucionais e infraconstitucionais de conteúdo proibitivo ou inibitório da discriminação; b) normas que, ao invés de se restringirem a proibir o tratamento discriminatório, combatem-no por meio de medidas de promoção, afirmação ou de restauração, cujos efeitos institucionalizam, na sociedade, a compreensão sobre a necessidade e a utilidade da efetiva implementação do princípio universal da igualdade entre as pessoas.

Tendo por base esta argumentação, a lei foi considerada constitucional, porque, ao invés de afrontar o princípio da igualdade entre homens e mulheres, teria buscado estabelecer mecanismos de equiparação entre os sexos, em autêntica discriminação positiva que objetiva, em última análise, corrigir o grave problema social da violência doméstica ou familiar contra as mulheres. Para o cumprimento deste mister, baseia-se em parâmetros razoáveis, não desbordando do estritamente necessário à promoção da igualdade de fato139. O tratamento diferenciado que a LMP confere à mulher fundamenta-se no reconhecimento de que há todo um conjunto de poder simbólico, interiorizado por homens e mulheres desde a infância, que as coloca numa postura de dependência e acaba por fragilizá-las nas relações, mormente no âmbito doméstico.

A alegação não prosperou. Não se verificou inconstitucionalidade no fato de lei federal definir competência. A LMP prevê a criação dos JVDFMs, estabelecendo que, enquanto não instalados, compete às Varas Criminais julgar as causas cíveis e criminais envolvendo violência doméstica contra as mulheres. Ou seja, estabelece uma competência transitória até que os tribunais instalem os JVDFMs. Em relação ao art. da Lei justifica-se pelo receio de banalização da resposta penal operada via JECrim. Não raro, a agressão à mulher “valia” apenas uma cesta básica: o homem agredia, pagava, e não sofria nenhuma outra consequência mais grave. Este proceder gerava sensação de impunidade e desmerecia a importância do grave problema que é a violência doméstica contra a mulher.

Neste quadro, julga-se acertada a vedação legal à composição civil dos danos entre as partes e à concessão do benefício da transação penal. Em abono a esta interpretação, militam outros argumentos. Medidas Protetivas de urgência Como forma de assegurar a segurança pessoal da vítima e de sua família, em caso de violência doméstica contra a mulher, a LMP instituiu as medidas protetivas de urgência (arts. a 24, LMP). As medidas protetivas são importantes meios processuais para prevenir agressões e fazer cessar a situação de violência sofrida pela mulher no âmbito familiar e, desse modo, romper o ciclo da violência exposto acima144. O artigo 22 da LMP trata sobre as medidas que obrigam o agressor, tais como: suspensão da posse ou restrição do porte de armas; afastamento do lar de convivência do casal; proibição de aproximação, contato e de frequentar determinados lugares; restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores; prestação de alimentos provisórios ou provisionais.

Os artigos 23 e 24 disciplinam as medidas que protegem a vítima e seu patrimônio145. Pela redação do dispositivo, observa-se que não há obrigatoriedade de oitiva prévia do MP para que o magistrado decida sobre o pedido que verse sobre medidas protetivas de urgência, mas obrigatoriamente deverá comunicar o MP sobre o expediente. O caput do dispositivo estabelece três modalidades de concessão das medidas protetivas de urgência: de ofício, pelo magistrado competente; a requerimento do MP ou mediante pedido da própria ofendida. Tendo a legislação o objetivo de garantir maior proteção à vítima de violência doméstica ou familiar, é razoável que tenha maior possibilidade de concessão da medida, sem dificultar a concessão, exigindo-se, por exemplo, o requerimento do MP.

Não se exige da ofendida, a capacidade postulatória. Nesse sentido: A ressalva feita na norma em estudo ao art. Então, seguindo a linha de entendimento destas decisões, o STJ concedeu provimento ao RE interposto pelo MP-BA e a sentença que sustentava a medida protetiva e vigor, foi restabelecida. Do exposto depreende-se que a aplicação das medidas protetivas de urgência teve sua natureza autônoma e satisfativa reconhecida pelo STJ dirimindo possíveis dúvidas que ainda pudessem surgir sobre o instituto. Então, tanto a ofendida quanto o MP e até mesmo o juiz, de ofício, poderão viabilizar a concessão da medida protetiva. Na mesma esteira, o §1º dispõe que as medidas protetivas de urgência podem ser concedidas de imediato, sem necessidade de oitiva das partes ou de manifestação do MP, reiterando e esclarecendo o que está disposto no caput.

Assim, resta claro que a medida protetiva pode ser determinada de ofício, não havendo qualquer exigência prévia à sua concessão, nem oitiva do MP e nem das partes. População jovem e adulta, em mais de 50%, são ofendidos por atuais ou ex-parceiros. Para a população idosa, o principal agressor foi um descendente (34,9%). Um estudo realizado pelo IPEA, em 2013, conclui que aproximadamente 30% das mortes de mulheres classificadas como feminicídios aconteceu na própria casa da vítima. Ações Governamentais 21. Delegacia da Mulher Em cada Secretaria de Estado de Segurança Pública do Brasil opera as chamadas Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (DEAM), popularmente conhecidas como Delegacias da Mulher, que são delegacias de polícia dedicadas exclusivamente para tratar de crimes de violência doméstica.

Em 2015, a linha registrou 749. chamadas, uma média de 2. chamadas por dia. Desde sua implantação até 2015, o Ligue 180 registrou 4. chamadas. º do Código Penal de Portugal.   O artigo, que foi alterado várias vezes ao longo dos anos, diz: Quem quer que seja de forma repetitiva ou não, inflija maus-tratos físicos ou mentais, incluindo punições corporais, privação de liberdade e abusos sexuais: a) cônjuge ou ex-cônjuge; b) Em uma pessoa do mesmo ou de outro gênero com quem o agressor mantém ou manteve uma união, mesmo que sem coabitação; c) Em um progenitor de um descendente comum em primeiro grau; ou d) Em uma pessoa particularmente desamparada em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência econômica, que coabita com o agressor; será punida (.

  Portugal também ratificou a Convenção sobre Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica.   Referente aos programas de referência, em Portugal151, foi no final dos anos 90 que se desenvolveram os primeiros programas de intervenção com agressores, nas Universidades do Porto e de Minho. Com a compreensão mais generalizada da validade e da utilidade dos programas de intervenção, a legislação e os planos nacionais contra a violência doméstica (PNCVD) passaram a realçar a premência de intervenção junto ao agressor, de modo a ter-se atuação mais ampla e eficaz152. A primeira, denominada de “estabilização”, inclui atendimento individual, encaminhamento para a rede (consoante os fatores de risco identificados) e entrevista motivacional – visando a conscientização do crime e das modificações necessárias à não recidiva160.

A intervenção individual ocorre não só na primeira fase, como ao longo do programa, almejando, nas diferentes etapas, objetivos distintos. Na fase inicial, tem por alvo aferir o estágio da mudança (pré-contemplação, contemplação, preparação, ação ou manutenção) no qual o agressor se encontra no momento em que ingressa no PADV. Adotam-se abordagens motivacionais intentando despertar o agressor para a mudança, fazendo-o atingir (se isso ainda não ocorreu) os estágios da preparação ou da ação, tornando-o apto para a intervenção em grupo (programa psicoeducacional) e potencializando os efeitos desta intervenção. Em qualquer hipótese, o agressor não deve iniciar a intervenção grupal sem que esteja, ao menos, no estágio da contemplação da mudança (quando reconhece a existência do problema e consegue identificar vantagens – ainda que parciais – na mudança do comportamento agressivo).

Além do PAVD, registramos que a DGRSP mantém o programa CONTIGO, na Região Autônoma dos Açores e no Concelho de Cascais165. Fundamenta-se numa resposta comunitária, na qual estão envolvidas diver-sas instituições166 que trabalham em rede, objetivando resposta mais abrangente ao problema. Foi desenvolvido com base no pressuposto teórico que serviu de modelo ao PAVD, e enseja trabalho simultâneo com vítimas e agressores, independentemente da manutenção ou não do relacionamento. A participação das vítimas é voluntária, enquanto a dos agressores depende de ordem judicial, restando excluídas pessoas com déficit cognitivo severo, graves perturbações de personalidade ou perturbações psicóticas167. A intervenção inicia-se com a fase de diagnóstico e abordagem motivacional, à qual se submetem vítimas e agressores.

Essas condições restam justificadas pelo fato de que, se assim não fosse, o terapeuta encontrar-se-ia numa posição de cumplicidade ou até mesmo de legitimação de práticas criminosas171. São disponibilizados dois tipos fundamentais de programas: um predominante psicoeducacional e outro de cariz psicoterapêutico. O primeiro atém-se às perspectivas psicoeducativas, que entendem que o comportamento violento é socialmente apreendido e reforçado, razão pela qual a sua mudança requer mais reeducação que psicoterapia. Objetiva, assim, a educação para a não violência e para a igualdade de gênero, com a análise dos fatores, dinâmicas e processos associados à violência conjugal, das estratégias de poder e controle utilizadas pelo agressor (com recurso à roda do poder e controle) e das consequências da violência doméstica.

Visa, também, a tomada de consciência e a assunção de responsabilidades por parte do agressor em relação aos atos de violência; a modificação de crenças e estereótipos em relação à violência; e a consequente mudança de comportamentos agressivos e/ou abusivos. Nas fases finais da intervenção, comumente são tratadas questões ligadas à prevenção da recaída, e pode-se recorrer a familiares ou à rede de suporte social alargado, como auxiliares no controle do comportamento do agressor177. A prevenção da recaída decorre de teorias integradoras que sustentam que sua probabilidade depende da interação de vários fatores individuais e situacionais, sendo que determinados padrões de pensamentos, atitudes e comportamentos podem conduzir mais facilmente à recidiva na violência178.

Assim, para evitá-la, é preciso que os agressores aprendam a identificar os fatores que desencadeiam ou potencializam o risco ou a efetiva ocorrência dos atos violentos e a desenvolver estratégias de autocontrole capazes de evitar os comportamentos agressivos. Ainda no âmbito português, já antecipamos, merece destaque o PPRIAC, desenvolvido pela UCPJUM. Este programa destina-se a indivíduos autorreferenciados, ou encaminhados por entidades judiciais ou por instituições de apoio, podendo estar ou não respondendo a processos criminais por violência doméstica. Há medidas e programas que podem servir de inspiração ao nosso sistema judicial, como, p. ex. a suspensão provisória do processo a pedido da vítima, com a fixação da condição de frequência, pelo agressor, a programa de intervenção e a formatação de um programa estatal de intervenção com agressores, que possibilitaria a padronização da intervenção, ou, ao menos, um norte a ser seguido.

No tratamento da eficácia e do impacto das Leis Maria da Penha no enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres, faremos referência a algumas pesquisas realizadas no cenário brasileiro. Relativamente à LMP, pesquisa do DataSenado revelou que 66%187 das brasileiras declararam que se sentiram mais protegidas com sua vigência. E estes níveis de interpenetração são indissociáveis. O terceiro é de que a lei carece de efetividade em vários pontos, e enfrenta resistências quanto à aplicação de alguns de seus dispositivos por parte de certos operadores jurídicos, como veremos em item sequencial. Ou seja, embora importantes avanços tenham sido previstos pela lei, eles não foram (e não são) concretizados na prática. Assim, passado o impacto da publicação da lei, os índices voltaram aos patamares anteriores.

E o quarto – e talvez o principal fator – é que o reforço da resposta penal, de forma isolada, não é capaz de reduzir – ao menos não de forma contínua – os índices de violência contra as mulheres190. Neste viés, identificam-se, na sequência, os principais pontos em que a lei não está sendo aplicada ou, eventualmente, apresenta lacunas de regulação. Noutras palavras, verificam-se as principais falhas de efetividade da Lei 11. Um dos principais fatores para o reduzido impacto da LMP sobre os índices de violência doméstica contra as mulheres reside em déficits de implementação e de regulação. A percepção de que a lei não está tendo total efetividade decorre, exatamente, da permanência dos alarmantes índices de violência194.

Como foi visto pelos dados dos estudos de abrangência nacional, a criminalidade contra mulheres na sociedade brasileira é endêmica, revelando a ineficácia das políticas públicas e/ou deficiências na regulação ou na implementação da lei reguladora da matéria. Destaca-se, ainda, que seria importante a formatação de protocolos de atuação policial e avaliação de riscos199 (hoje inexistentes); bem como que a vítima receba o acompanhamento policial previsto na lei, o que raramente ocorre. No sistema judicial, os problemas começam pela escassez de JVDFMs instalados200, considerada uma das principais deficiências à implementação da lei. Estima-se que menos de 1% dos Municípios brasileiros contam com a estrutura do JVDFM e com Núcleos Especializados do MP e da Defensoria Pública.

Dos juizados operantes, quase a totalidade carece de estrutura apropriada à aplicação dos procedimentos da lei, seja pela inadequação das instalações físicas, seja pelas deficiências materiais ou de pessoal. Além disso, onde não instalados os juizados, as Varas Criminais, como regra, não estão cumulando as funções cíveis e criminais, como determina a lei. nem inquirirem o interesse da ofendida em renunciar à representação em qualquer outro ato oficial, sem que ela espontaneamente se manifeste neste sentido; b) analise a morosidade dos Tribunais de Justiça na criação dos JVDFMs e determine, nos Estados em que ainda não haja tais foros, o cumprimento do art. da LMP, segundo o qual as varas criminais devem acumular as competências cível e criminal nas causas decorrentes da violência doméstica ou familiar contra a mulher; c) recomende aos Tribunais de Justiça a ampliação legal da competência dos Juizados ou Varas de Violência Doméstica para a instrução processual até a fase de pronúncia, nos crimes dolosos contra a vida de mulheres em situação de violência doméstica ou familiar.

Finalmente, recomendações dessa mesma natureza foram emitidas em relação aos Tribunais de Justiça dos Estados202. Ademais, a fiscalização do efetivo cumprimento das medidas protetivas é precária203, são escassos os centros de educação e de reabilitação para agressores, bem como poucos os programas de intervenção com autores de violência doméstica contra a mulher204. Do cenário exposto ressalta a premência da incrementação dos meios de informação, sensibilização e intervenção precoce, sem descurar da complexidade do fenômeno e da necessidade da abordagem interdisciplinar – com atuação conjunta dos vários segmentos públicos e privados205. da Lei 11. estabelecendo que não é pré-requisito para a decretação da prisão preventiva o prévio deferimento da medida protetiva de urgência ou seu descumprimento; b) o acréscimo de preceito normativo na Lei 11.

dispondo que, ao encaminhar a mulher vítima para abrigamento, o juiz e o membro do MP devem necessariamente analisar o caso concreto, manifestando-se sobre a prisão preventiva do agressor, evitando que, em situações graves, ele permaneça solto enquanto a vítima tenha sua liberdade restringida à casa-abrigo; c) o acréscimo de parágrafo ao art. da Lei 11. para explicitar que a competência cível dos Juizados e Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher inclui as ações de alimentos, guarda, regulamentação de visitas, divórcio, indenização e outras decorrentes das relações domésticas e familiares, de modo a facilitar a busca das mulheres por justiça num mesmo juizado, bem como evitar decisões conflitantes por juízes que desconheçam a situação fática da violência; d) acrescentar dispositivo ao CPP para proibir o arbitramento de fiança pela autoridade policial nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, para garantir maior proteção às vítimas no momento e logo depois da infração penal207.

Segundo Souza213, as formas de violência previstas na Lei 11. não esgotam outras condutas que são passíveis de enquadramento nesse contexto, desde que tenham ocorrido na esfera da unidade doméstica, no âmbito da relação familiar e/ou na relação íntima envolvendo o vínculo de afeto. Para Guimarães e Moreira214, a definição de violência contra a mulher, que fundamenta a política criminal referente à Lei 11. está embasada em alguns pressupostos: a desigualdade de gênero; a necessidade de enrijecimento das penas ao invés de transação penal; a criação de mecanismos para que a vítima não desista da ação; o reconhecimento dos diversos tipos de violência e a garantia da intervenção penal. Como se observa, os fundamentos da referida Lei se chocam com os propósitos da Lei 9.

As ações de assistência à mulher vítima de violência doméstica e familiar serão garantidas com a oferta de serviços provenientes do Sistema Único de Assistência Social, SUS e Sistema Único de Segurança Pública. Propõe-se que as ações desses órgãos ocorram de forma articulada, seguindo os princípios e as diretrizes legais que fundamentam tais serviços. Souza esclarece: A norma é incisiva ao dispor, não como faculdade, mas como um dever do juiz, determinar a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal216. Entre as medidas para prevenir e coibir a violência, a mencionada lei determina a implantação de atendimento policial especializado às mulheres.

As providências legais cabíveis variam desde a prisão em flagrante do suposto agressor, até ações de cunho educativo que pretendam potencializar a vítima para reconhecer a violência, apresentar denúncia e prosseguir com a ação na justiça. O CNJ integra a política de Reforma do Judiciário, pensada a partir de 1990, com foco na modernização e no controle administrativo da instituição judiciária, no Brasil. Nesse sentido, identificam-se diversos programas e ações criados e/ou desenvolvidos pelo CNJ, baseados na Resolução 125, de 29. abrangendo várias esferas da vida humana no campo dos direitos. A referida resolução dispõe sobre a Política Judiciária Nacional, que visa ao tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, à garantia do acesso à justiça e à eficiência operacional.

No que tange à violência doméstica e familiar contra a mulher, o CNJ desenvolve ações de prevenção e de combate junto aos Tribunais brasileiros, sendo uns mais atuantes do que outros. Levando em consideração indicadores internacionais, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking de países com maiores índices de homicídios femininos, o que revela a taxa de 4,8 por 100 mil habitantes220. O Mapa da Violência, elaborado, por Waiselfisz no ano de 2012 e citado em um dos documentos produzidos pelo CNJ sobre a atuação do Judiciário na aplicação da LMP, apresenta alguns números relacionados à violência. De acordo com o Mapa, o número de homicídios cometidos em 2010 contra as mulheres foi de 4. e o índice de ocorrência no lar foi de 71,8%221.

O Mapa da Violência, editado em 2015, indicou o crescimento de 252% da taxa de homicídio contra a mulher no Brasil, considerando o intervalo de tempo entre 1980 a 2013. Conforme o CNJ228, somente em 2015, a justiça brasileira recebeu 263. novos processos referentes à violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo aplicadas, no mínimo, 328. medidas protetivas. O CNJ, em nota divulgada em 2016, reconheceu que o judiciário brasileiro precisa de aprimoramento de seus recursos materiais e pessoais para servir com eficiência à população que busca atendimento em virtude de processo de natureza criminal, proveniente da LMP. Apesar de novas varas especializadas terem sido instaladas para atender às demandas relacionadas à LMP, seu número é limitado frente a necessidades prementes. a 5. processos em trâmite, a equipe deve ser composta de dois psicólogos, dois assistentes sociais e um servidor.

Por fim, nos Juizados com 5. a 10. processos, pede-se que a equipe seja formada por cinco psicólogos, três assistentes sociais e dois servidores. ativos na Comarca de BH. Mesmo com a criação de novas Varas Especializadas, não foi encontrada informação a respeito da ampliação da equipe multiprofissional. O aumento vertiginoso do número de processos, cuja natureza é a violência doméstica e familiar contra a mulher, fez com que o tribunal mineiro adotasse medidas para agilizar o julgamento de tais processos na capital. A título de exemplificação, em 2012, a Assessoria de Imprensa do TJMG veiculou notícia publicada no Jornal O Tempo, trazendo a seguinte informação: “A iniciativa faz parte do primeiro mutirão de conciliação do Tribunal neste ano, que terá início em abril, e tem como objetivo agilizar a análise dos 30 mil processos acumulados em duas varas da capital”232.

Ainda em 2012, o Informativo do Sindicato dos Servidores de Justiça de Primeira Instância de MG (Serjusmig Notícias) publicou entrevista realizada junto ao vice-presidente do referido sindicato, veiculada no programa “Segurança e Cidadania” transmitido pela Band Minas, que teve como tema a precariedade das Varas Maria da Penha de BH. A CPMI sugeriu ao CNJ a criação de uma coordenadoria de âmbito nacional, para estudar a viabilidade de se criar política pública na área e para auxiliar os tribunais de justiça do país, visando à efetiva aplicação dessa lei. Essa comissão recomendou ao Estado do Sergipe, a instalação do Juizado Especializado de Violência Doméstica e Familiar, tendo em vista que, no período da pesquisa, o referido Estado não o possuía237.

Junto a outras instituições públicas, aparentemente cientes da frágil estrutura do Estado para garantir a devida aplicação da LMP, o Poder Judiciário tenta amenizar a situação, realizando campanhas, no âmbito nacional, a fim de obter celeridade no julgamento de processos. Um exemplo dessa iniciativa é a parceria firmada entre o governo federal e instituições que compõem o sistema de justiça, no lançamento da campanha “Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha – A lei é mais forte”, em 2012. O objetivo dessa parceria foi justamente garantir celeridade ao julgamento de casos provindos da LMP e sensibilizar a sociedade brasileira para o enfrentamento do problema. IV, art. da Lei 11. para afirmar que é possível a restrição ou até mesmo a suspensão de visitas aos dependentes menores, quando há medida protetiva de não aproximação do cônjuge.

Segundo o CNJ241, “o juiz pode fazer essa avaliação no momento do deferimento da medida, ou posteriormente, a fim de ajustar o direito à visita aos filhos, com as circunstâncias necessárias para o cumprimento das medidas protetivas”. Ademais, foram mencionados alguns critérios e condições utilizados no sentido de se definir as visitas paternas. A presente dissertação teve como tarefa descortinar, qual terá sido a motivação do legislador para entender ser admissível a proibição da “reformatio in pejus”, garantindo a observância dos princípios constitucionais e da ampla defesa, não descurando a possibilidade de corromper o princípio da voluntariedade dos recursos, capaz de gerar inúmeros efeitos. Não decorre da nossa Constituição Portuguesa da República uma proibição que não tem peias, nem restrições da “reformatio in pejus”, dado que seria conflitual com o direito ao recurso da acusação e com a realização da justiça.

A expressão latina deste princípio em causa – reforma para pior, surge, no Direito, ligada à impugnação das decisões judiciais. Os primeiros passos nesta obra, saíram de posições que avaliamos que sejam fulcrais para o nosso estudo, especialmente, à compreensão histórica do surgimento da proibição da “reformatio in pejus”, à sua actual fundamentação, e à compreensão do direito do recurso do arguido enquanto garantia de defesa adoptada como direito fundamental. Na verdade, é em nossa opinião que o alicerce que introduziu este princípio, foi o de evitar que o arguido, com receio da agravação da pena, não recorresse da decisão, impedindo-se desta forma, que o exercício de um direito de defesa, sucede-se em dano da própria defesa. Por esta razão um grupo de mulheres reclamaram o atendimento em uma delegacia comum por mulheres que sofriam agressões.

No Brasil, a Delegacia da Mulher é um caso de sucesso, aberta 24 horas por dia, contando com delegadas mulheres. Apesar das medidas legais tomadas pelo Governo Federal brasileiro, governos locais parecem ainda lutar contra a aplicação da lei, com relatos de falta de ação da polícia e, em muitos casos, dos tribunais, mesmo após a violência ter sido relatada às autoridades244. É imperiosa a definição de uma estratégia concertada de recolha e análise de dados. Só através da sistematização da informação relativa à violência doméstica, será possível a realização de análises mais elaboradas, a comparabilidade dos dados e consequentemente a sua maior visibilidade245. Da reflexão levada a cabo nesseestudo, pode-se inferir que a violência doméstica contra as mulheres remonta à gênese das relações humanas.

Foi legitimada, no decorrer da história, por diferentes discursos e práticas, inclusive pelo Direito, que teve papel fundamental na milenar construção dos sistemas de gênero, enfatizando a proeminência social dos homens e a discriminação das mulheres. As transformações socioculturais operadas na sociedade contemporânea e a visibilidade proporcionada pelos movimentos feministas conduziram ao reconhecimento gradativo – mas não linear em todos os Estados – da violência privada como um grave problema social, que viola a dignidade da pessoa humana e os mais básicos direitos fundamentais. Neste quadro, exige a intervenção estatal, em especial do Direito Penal, que desempenha função destacada na proteção desses direitos essenciais. O fenômeno da violência doméstica contra as mulheres apresenta-se transcultural, não sendo uma particularidade de determinados grupos sociais.

No entanto sabe-se que Portugal não possui delegacias para mulheres e o Brasil as tem, mas muitos estados do Brasil carecem de Delegacia da Mulher e isso pode acarretar transtornos à população haja vista que o atendimento à mulher tem ficado restrito apenas a alguns municípios. Assim, ao final do estudo concluiu-se que não resta dúvida de que a lei aprovada representa um avanço para a sociedade do Brasil, significando um marco indelével na trajetória da proteção legal às mulheres. No entanto, não deixa de conter alguns aspectos que geram dúvidas acerca de sua constitucionalidade demandando reformulação. Referente a Portugal, observa-se que a proteção fornecida às mulheres é maior, se comparada ao Brasil, embora Portugal não conte com Delegacias de Mulheres, a exemplo do Brasil, razão pela qual sugere-se que estas delegacias sejam aqui implantadas.

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