A multiparentalidade e seus efeitos jurídicos no Registro Civil
Nesse sentido, a multiparentalidade emerge como um dos principais reflexos de um moderno e constitucional conceito de família. Diz-se moderno e constitucional, pois, em que pese a nítida compreensão que não se vislumbra à legislação, por mais evoluída e futurista que seja a intenção de seu criador ao elaborá-la, a missão de acompanhar com exatidão a cada vez mais rápida transmutação das relações humanas, na mais diversa gama de aspectos (entre eles o cultural, econômico, político e social), verifica-se que a leitura do conceito de família tem se aproximado de um pensamento valorizador do pluralismo, e do afeto como orientador da formação dos vínculos familiares, tendo por base as disposições constitucionais, essencialmente no que tange ao caráter principiológico de suas normas (GRAEF, 2019).
De inicial estranheza decorrente da visão tradicionalista e estática das relações familiares, e muito em decorrência das grandes dúvidas práticas, a multiparentalidade, aos poucos, vem sendo admitida e devidamente reconhecida no âmbito judicial, dando-se relevo, pois, à dignidade da pessoa humana, ao princípio do superior interesse da criança, e ao respeito ao desenvolvimento e fortalecimento dos vínculos necessários para a formação do indivíduo (tratando-se, evidentemente, da multiparentalidade reconhecida em relação a infantes, sem olvidar a possibilidade de reconhecimento em fases diferentes do desenvolvimento humano). Como será exposto (e de acordo com a realidade já vivida), o reconhecimento e a aplicação da multiparentalidade no âmbito judicial torna possível a adequação, até mesmo formal, da situação fática existente no âmbito das famílias atualmente (r)estruturadas, de modo a preservar todos os direitos (patrimoniais e extra-patrimoniais) que advêm da relação paterno ou materno-filial, tanto de origem biológica, como de origem afetiva.
A multiparentalidade, segundo Amorim (2012), configura-se como a possibilidade da concomitância de três, ou mais, vínculos de parentescos em relação a um único indivíduo, sendo produzidos os efeitos jurídicos referente a todos eles simultaneamente, em absoluta igualdade, independente de qual seja a origem da filiação. De tal sorte, a parentalidade na configuração familiar atual é vista sob o prisma funcional, e reconhecida no trato diário, nas relações sociais e na efetiva demonstração de afeto, respeito e cuidados especiais entre as pessoas (pais e filhos), que reconhecem tal relação com tanta grandeza como aquela decorrente da consanguinidade. Explicado o paradigma da multiparentalidade e as mudanças trazidas pelo seu reconhecimento para o Direito de Família, passa-se a discutir os posicionamentos doutrinários sobre a multiparentalidade.
Acerca de um primeiro ponto de destaque prático referente à adoção da multiparentalidade, importa esclarecer como a tese pode ser reconhecida no âmbito judicial. Nesse aspecto, a multiparentalidade pode ser reconhecida nas mais diversas ações atinentes à filiação, além de se vislumbrar plenamente cabível nas ações de adoção. Nessa toada, como informa Vargas (2017) em casos exemplificativos, o autor apresenta o pai biológico, mas que não figurou originariamente como tal quando do efetivo registro de nascimento da criança, pleitear posteriormente sua inclusão, não obstante já existir um pai registral diverso, que também preserva vínculo afetivo com a criança, concluindo ser indispensável a realização de estudo psicossocial, o qual fornece elementos valiosos ao julgador para a preservação do superior interesse da criança.
Frente a essa situação, restou evidenciada a existência de dois vínculos parentais, de origens distintas, entre cada um dos pais (biológico e registral-socioafetivo) e a criança. Ou seja, foi dado destaque à verdadeira situação de multiparentalidade, de forma que o interesse da criança, de manutenção desses vínculos com os pais, restou ao final preservado. Nesse sentido, a sentença proferida, reconhecendo a multiparentalidade em sua essência de preservação do interesse da criança, determinou que fossem mantidos os dados do pai registral, e incluídos também os dados do pai biológico no registro de nascimento da criança, formalizando, pois, a situação já compreendida pelo infante de pluriparentalidade. Segundo Carvalho (2015), em decorrência do reconhecimento da pluriparentalidade e do poder familiar atribuído a todos os pais de forma igualitária, mostram-se aplicáveis as regulamentações corriqueiras que permeiam o desenvolvimento da criança, e garantem seu sadio desenvolvimento.
Com efeito, e analisando a aplicação prática dos vínculos originários da filiação, tem-se que o entendimento jurisprudencial atual é no sentido de reconhecer a existência de três espécies de origem de parentesco: a biológica, a adotiva e a socioafetiva. O relator afirma que não há nenhum óbice para o reconhecimento simultâneo de ambas as modalidade de paternidade (socioafetiva ou biológica), desde que a justificativa para este reconhecimento seja o interesse do filho (BRASIL, 2016). O ministro Dias Toffoli ressaltou o direito do filho ter mantida a relação de amor com o pai socioafetivo, o que não afasta o pai biológico do cumprimento de suas obrigações legais para com seu filho, a exemplo do dever de alimentá-lo, educá-lo e abrigá-lo em uma moradia.
O ministro pontuou que aquele que tem um filho, tem obrigação de sustentá-lo, mesmo que este filho tenha sido criado por terceiros (BRASIL, 2016). Acompanhando o relator, o ministro Gilmar Mendes pontuou que a tese sustentada pelo pai biológico demonstra “cinismo manifesto”. Segundo o ministro, a ideia de paternidade responsável não podia ser ignorada naquele julgamento, sob pena da Suprema Corte estimular aquilo que é recorrente, ou seja, o desamparo dos filhos por seus pais, que muitas vezes não lhes oferece suporte material e nem afetivo (BRASIL, 2016). E, em muitos casos, a alteração do nome, do registro de nascimento da criança, se mostra como fator essencial para determinar tal rompimento. Em contrapartida a essa intenção de rompimento, tem-se a visão da criança, por vezes envolvida em conflitos que transcendem seus pensamentos.
Para ela, aquele que a registrou, e que com ela formou vínculos, exercendo a função paterna e construindo, paulatinamente e no trato diário, a figura do pai, não pode simplesmente ser apagado. Entre estas pessoas (pai registral e criança) formou-se, por certo, vínculo indissociável que em muito molda a personalidade, as características e o trato social de um sujeito em desenvolvimento. E tal vínculo, como bem pontua Graef (2019), graças à possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade, e dando relevo ao superior (e, acrescente-se, contínuo) interesse da criança, pode ser mantido, preservando a integridade do infante. p). A questão da inclusão do nome dos pais e respectivos avós da criança, e tal comprovação consubstanciada na formalização do assento civil de nascimento, emerge como grande instrumento para o aproveitamento de todos os outros efeitos da multiparentalidade (CASSETARI, 2017).
Com efeito, além de haver a possibilidade de reconhecer judicialmente a paternidade, emerge também a possibilidade do vínculo de parentalidade decorrente da socioafetividade constar no registro de nascimento da criança extrajudicialmente, ou seja, sem a prévia intervenção do Poder Judiciário. Nesse sentido, destacam-se, de forma exemplificativa, alguns provimentos editados em âmbito estadual. Em 2013, no estado do Maranhão, foi editado pela Corregedoria Geral de Justiça o Provimento 21/2013, que autoriza o reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva para pessoas maiores de 18 anos que não tenham em seu registro de nascimento paternidade estabelecida. Assim, reconhecida por sentença a multiparentalidade, surge a possibilidade figurar no respectivo registro de nascimento o nome de todos os pais ou mães envolvidos no registro de nascimento da criança.
Nesse sentido, constarão na certidão de nascimento da criança os dados dos pais socioafetivos, dos biológicos, e dos respectivos avós da criança (tanto socioafetivos como biológicos, frise-se), sem qualquer distinção entre eles (GRAEF, 2019). Proferida a sentença, será determinada a expedição de mandado de averbação do registro civil de nascimento da criança no cartório competente, o que será realizado nos termos do art. c/c art. ambos da Lei 6. e seguintes, do Código Civil de 2002), cuja potencialidade de exercício resta configurada em mesmo grau, por todos os pais e mães que eventualmente figuram como tal em relação à criança (ou crianças). Em decorrência do reconhecimento da multiparentalidade e do poder familiar atribuído a todos os pais de forma igualitária, mostram-se aplicáveis as regulamentações corriqueiras que permeiam o desenvolvimento da criança, e garantem seu sadio desenvolvimento.
Dentre os muitos efeitos práticos e relevantes da multiparentalidade cita-se o direito a alimentos, podendo estes serem exigidos de quaisquer dos pais/mães, que terão, na esteira do trinômio basilar da obrigação alimentar (necessidade-possibilidade-proporcionalidade), o dever de contribuir materialmente com o desenvolvimento da criança. A obrigação alimentar gerada pelo reconhecimento da multiparentalidade não difere da utilizada nos casos de biparentalidade. Assim, é gerada a obrigatoriedade tanto ao pai biológico quando ao afetivo, conforme o disposto no art. do Código Civil, em concorrência igualitária com eventuais irmãos não inseridos no âmbito da multiparentalidade existente. Simão (2016) alerta que a partir do momento que a paternidade passou a ser decisão do filho, este tem o direito de ter pai socioafetivo e genético e isto dá margens para ações argentárias visando a obtenção de herança do ascendente genético por mera conveniência, sendo que no entendimento do autor, pai é quem cria e dá amor e não quem gera.
Trata-se de preocupação legítima em razão da complexidade das estruturas familiares, pois, tendo em vista o princípio da igualdade jurídica entre os filhos, filhos biológicos e socioafetivos possuem os mesmos direitos, existindo a possibilidade de ter mais de um pai ou mais de uma mãe, o que eleva as chances de demandas mercenárias, por exemplo, de um filho, intentando a herança de dois ou três pais (socioafetivos ou biológico) mesmo que não existe vínculo de afeto com todos eles. O contrário também pode ocorrer, a exemplo do caso de dois pais ou mais e/ou duas mães requerendo o recebimento da herança de um mesmo filho que não deixou descendentes. Como explica Anderson Schreiber (2016), pelo Código Civil, o pai faria jus à metade dos bens, e a mãe, igualmente, receberia outra metade.
O autor relembra que em 2016 a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento n. que, ao disciplinar o registro de nascimento de filhos concebidos por reprodução medicamente assistida, passou a pleitear para o registro: Art. Inc. II - declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando a técnica adotada, o nome do doador ou da doadora, com registro de seus dados clínicos de caráter geral e características fenotípicas, assim como o nome dos seus beneficiários (CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA, 2016, s. p). Ed. Curitiba: Juruá Editora, 2012. BRASIL. Poder Judiciário do Estado do Maranhão. Provimento 21/2013, da Corregedoria Geral de Justiça.
Disponível em: http://www. tjam. jus. br/index. php?option=com_docman&task=cat_view&gid=1106&Itemid=347&limitstart=5. jus brasil. com. br/jurisprudencia/322135949/agreg-no-recurso-extraordinario-agr-re-898060-sc-santa-catarina. Acesso em: 15 out. CALDERON, Ricardo. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. ed. São Paulo: Ed. Revistas dos Tribunais, 2016. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: famílias. STF, Repercussão Geral 622: a multiparentalidade e seus efeitos. Disponível em: http://www. cartaforense. com. br/conteudo/artigos/stf-repercussao-geral-622-a-multiparentalidade-e-seus-efeitos/16982. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. VARGAS, Hilda Ledoux. Parentalidade nas Famílias Neoconfiguradas. Curitiba: Juruá Editora, 2017.
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