Paulo freire pedagogia do oprimido
Tipo de documento:Redação
Área de estudo:Gestão ambiental
O mundo, hoje, v. Alfabetização – Métodos 2. Alfabetização – Teoria I. Título II. Série 77- 0064 Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA S/A Rua do Triunfo, 177 01212 – São Paulo, SP Tel. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão. A concepção «bancária» da educação como instrumento da opressão. Seus pressupostos, sua crítica. A contradição problematizadora e libertadora da educação. Seus pressupostos. A teoria da ação antidialógica. A teoria da ação antidialógica e suas características: a conquista, dividir para manter a opressão, a manipulação e a invasão cultural. A teoria da ação dialógica e suas características: a co- laboração, a união, a organização e a síntese cultural.
Aprender a dizer a sua palavra Professor Ernani Maria Fiori Paulo Freire é um pensador comprometido com a vida: não pensa idéias, pensa a existência. E também educador: existência seu pensamento numa pedagogia em que o esforço totalizador da “práxis” humana busca, na interioridade desta, retotalizar- se como “prática da liberdade”. Hegelianamente, diríamos: a verdade do opressor reside na consciência do oprimido. Assim apreendemos a idéia- fonte de dois livros ∗ em que Paulo Freire traduz, em forma de lúcido saber sócio - pedagógico, sua grande e apaixonante experiência de educador. Experiência e saber que se dialetam, densificando-se, alongando- se e dando, com nitidez cada vez maior, o contorno e o relevo de sua profunda intuição central: a do educador de vocação humanista que, ao inventar suas técnicas pedagógicas, redescobre através delas o processo histórico em que e por que se constitui a consciência humana.
Ou, aproveitando uma sugestão de Ortega, o processo em que a vida como biologia passa a ser vida como biografa. Talvez seja este o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar- se, historicizar- se. Inventadas ou reinventadas numa só direção de pensamento, resultam da ∗ Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido. unidade que transparece na linha axial do método e assinala o sentido e o alcance de seu humanismo: alfabetizar é conscientizar. Um mínimo de palavras, com a máxima polivalência fonêmica, é o ponto de partida para a conquista do universo vocabular. Essas palavras, oriundas do próprio universo vocabular do alfabetizando, uma vez transfiguradas pela crítica, a ele retornam em ação transformadora do mundo.
O que antes era fechamento, pouco a pouco se vai abrindo; a consciência passa a escutar os apelos que a convocam sempre mais além de seus limites: faz- se crítica. Ao objetivar seu mundo, o alfabetizando nele reencontra- se com os outros e nos outros, companheiros de seu pequeno “círculo de cultura”. Encontram- se e reencontram- se todos no mesmo mundo comum e, da coincidência das intenções que o objetivam, ex- surge a comunicação, o diálogo que criticiza e promove os participantes do círculo. Assim, juntos, re-criam criticamente o seu mundo: o que antes os absorvia, agora podem ver ao revés. No círculo de cultura, a rigor, não se ensina, aprende- se em “reciprocidade de consciências”; não há professor, há um coordenador, que tem por função dar as informações solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis à dinâmica do grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção direta no curso do diálogo.
A palavra geradora, ainda que objetivada em sua condição de simples vocábulo escrito, não pode mais libertar- se de seu dinamismo semântico e de sua força pragmática, de que o alfabetizando já se fizera consciente na repetida descodificação crítica. Não se deixará, pois, aprisionar nos mecanismos de composição vocabular. E buscará novas palavras, não para colecioná- las na memória, mas para dizer e escrever o seu mundo, o seu pensamento, para contar sua história. Pensar o mundo é julgá- lo; e a experiência dos círculos de cultura mostra que o alfabetizando, ao começar a escrever livremente, não copia palavras, mas expressa juízos. Estes, de certa maneira, tentam reproduzir o movimento de srta própria experiência; o alfabetizando, ao dar- lhes forma escrita, vai assumindo, gradualmente, a consciência de testemunha de uma história de que se sabe autor.
Para o homem, produzir-se é conquistar- se, conquistar sua forma humana. A pedagogia é antropologia. Tudo foi resumido por uma mulher simples do povo, num círculo de cultura, diante de uma situação representada em quadro: “Gosto de discutir sobre isto porque vivo assim. Enquanto vivo, porém, não vejo. Agora sim, observo como vivo”. Ela tem dimensão sempre maior do que os horizontes que a circundam. Perpassa além das coisas que alcança, e porque as sobrepassa, pode enfrentá-las como objetos. A objetividade dos objetos é constituída na intencionalidade da consciência, mas, paradoxalmente, esta atinge, no objetivado, o. que ainda não se objetivou: o objetimável. Portanto, o objeto não é só objeto, é, ao mesmo tempo, problema: o que está em frente, como obstáculo e interrogação.
Ao distanciar- se do mundo, constituindo- se na objetividade, surpreende- se, ela, em sua subjetividade. Nessa linha de entendimento, reflexão e mundo, subjetividade e objetividade não se separam: opõem-se, implicando- se dialeticamente. A verdadeira reflexão crítica origina- se e dialetiza- se na interioridade da “práxis” constitutiva do mundo humano – é também “práxis”. Distanciando-se de seu mundo vivido, problematizando- o, “descodificando- o” criticamente, no mesmo movimento da consciência o homem se re-descobre como sujeito instaurador desse mundo de sua experiência. Testemunhando objetivamente sua história, mesmo a consciência ingênua acaba por despertar crítica- mente, para identificar- se como personagem que se ignorava e é chamada a assumir seu papel. As consciências não são comunicantes porque se comunicam; mas comunicam- se porque comunicantes.
A intersubjetivação das consciências é tão originária quanto sua mundanidade ou sua subjetividade. Radicalizando, poderíamos dizer, em linguagem não mais fenomenológica, que a intersubjetivação das consciências é a progressiva conscientização, no homem, do “parentesco ontológico” dos seres no ser. É o mesmo mistério que nos invade e nos envolve, encobrindo- se e descobrindo- se na ambigüidade de nosso corpo consciente. Na constituição da consciência, mundo e consciência se põem como consciência do mundo ou mundo consciente, e, ao mesmo tempo, se opõem como consciência de si e consciência do mundo. Consciência do mundo, busca- se ela a si mesma num mundo que é comum; porque é comum esse mundo, buscar-se a si mesma é comunicar- se com o outro.
O isolamento não personaliza porque não socializa. Intersubjetivando- se mais, mais densidade subjetiva ganha o sujeito. A consciência e o mundo não se estruturam sincronicamente numa estática consciência do mundo: visão e espetáculo. Essa estrutura funcionaliza- se diacronicamente numa história. Se o mundo é o mundo das consciências intersubjetivadas, sua elaboração forçosamente há de ser colaboração. O mundo comum mediatizo a originária intersubjetivação das consciências: o autoreconhecimento plenifica- se no reconhecimento do outro; no isolamento, a consciência modifica- se. A intersubjetividade, em que as consciências se enfrentam, dialetizam- se, promovem- se, é a tessitura última do processo histórico de humanização. Está nas origens da “hominização e anuncia as exigências últimas da humanização.
Reencontrar- se como sujeito e liberar- se, é todo o sentido do compromisso histórico. Restituída em sua amplitude, a consciência abre- se para a “prática da liberdade”: o processo de “hominização”, desde suas obscuras profundezas, vai adquirindo a translucidez de um projeto de humanização. Não é crescimento, é história: áspero esforço de superação dialética das contradições que entretecem o drama existencial da finitude humana. O método de conscientização de Paulo Freire refaz criticamente esse processo dialético de historicização. Como todo bom método pedagógico, não pretende ser método de ensino, mas sim de aprendizagem; com ele, o homem não cria sua possibilidade de ser livre, mas aprende a efetivá- la e exercê- la.
A pedagogia aceita a sugestão da antropologia: impõe- se pensar e viver “a educação como prática da liberdade". Aprender a dizer a sua palavra é toda a pedagogia, e também toda a antropologia. A “hominização” opera-se no momento em que a consciência ganha a dimensão da transcendentalidade. Nesse instante, liberada do meio envolvente, despega- se dele, enfrenta- o, num comportamento que a constitui como consciência do mundo. Nesse comportamento, as coisas são objetivadas, isto é, significadas e expressadas: o homem as diz. A palavra instaura o mundo do homem. É verdade: nem a cultura liberada é a negação do homem, nem a cultura letrada chegou a ser sua plenitude. Não há homem absolutamente inculto: o homem “hominiza- se” expressando, dizendo o seu mundo.
Aí começam a história e a cultura. Mas o primeiro instante da palavra é terrivelmente perturbador: presentifica o mundo à consciência e, ao mesmo tempo, distancia-o. O enfrentamento com o mundo é ameaça e risco. Antes, porém, conscientizam o poder criador dessas palavras: são elas que geram o seu mundo. São significações que se constituem em comportamentos seus; portanto, significações do mundo, mas sua também. Assim, ao visualizarem a palavra escrita, em sua ambígua autonomia, já estão conscientes da dignidade de que ela é portadora – a alfabetização não é um jogo de palavras, é a consciência reflexiva da cultura, a reconstrução crítica do mundo humano, a abertura de novos caminhos, o projeto histórico de um mundo comum, a bravura de dizer a sua palavra.
A alfabetização, portanto, é toda a pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer a sua palavra. E a sua palavra humana imita a palavra divina: é criadora. Ao Povo cabe dizer a palavra de comando no processo histórico- cultural. Se a direção racional de tal processo já é política, então conscientizar é politizar. E a cultura popular se traduz por política popular; não há cultura do Povo, sem política do Povo. O método de Paulo Freire é, fundamentalmente, um método de cultura popular: conscientiza e politiza. Não absorve o político no pedagógico, mas também não põe inimizade entre educação e política. PRIMEIRA PALAVRAS AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO E AOS QUE NELES SE DESCOBREM E, ASSIM DESCOBRINDO-SE, COM ELES SOFREM, MAS, SOBRETUDO, COM ELES LUTAM.
As páginas que se seguem e que propomos como uma introdução à Pedagogia do Oprimido são o resultado de nossas observações nestes cinco anos de exílio. Observações que se vêm juntando às que fizemos no Brasil, nos vários setores em que tivemos oportunidade de exercer atividades educativas; Um dos aspectos que surpreendemos, quer nos cursos de capacitação que damas e em que analisamos o papel da conscientização, quer na aplicação mesma de uma educação realmente libertadora, é o “medo da liberdade”, a que faremos referência no primeiro capítulo deste ensaio. Não são raras as vezes em que participantes destes cursos, numa atitude em que manifestam o seu "medo da liberdade”, se referem ao que chamam de “perigo da conscientização”.
“A consciência crítica (. Na verdade, porém, não é a conscientização que pode levar o povo à “fanatismos destrutivos”. Pelo contrário, a conscientização, que lhe possibilita inserir- se n processo histórico, como sujeito, evita os fanatismos e o inscreve na busca de sua afirmação. “Se a tomada de consciência abre o caminho à expressão das insatisfações sociais, se deve a que estas são componentes reais de uma situação de opressão” 1. O medo da liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver o que não existe. No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel2 , preferindo-a à liberdade arriscada. Liberdade que se confunde com a manutenção do status quo.
Por isto, se a conscientização põe em discussão este status quo ameaça, então, a liberdade. As afirmações que fazemos neste ensaio, não são, de um lado, fruto de devaneios intelectuais nem tampouco, de outro, resultam, apenas, de leituras, por mais importantes que nos tenham sido estas. Estão sempre ancoradas, como sugerimos no inicio destas páginas, em situações concretas. Expressam reações de proletários, camponeses ou urbanos, e de homens de classe média, que vimos observando, direta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo. A radicalização, pelo contrário, é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta. Enquanto a sectarização é mítica, por isto alienante, a radicalização é critica, por isto libertadora. Libertadora porque, implicando no enraizamento que os homens fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de transformação da realidade concreta, objetiva.
A sectarização, porque mítica e irracional, transforma a realidade numa falsa realidade, que, assim, não pode ser mudada. Parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos homens. O sectário, por sua vez, qualquer que seja a opção de onde parta na sua “irracionalidade” que o cega, não percebe ou não pode perceber a dinâmica da realidade ou a percebe equivocadamente. Até quando se pensa dialético, a sua é uma “dialética domesticada”. Esta é a razão, por exemplo, por que o sectário de direita que, no nosso ensaio anterior, chamamos de “sectário de nascença” pretende frear o processo, “domesticar” o tempo e, assim, os homens. Esta é a razão também porque o homem de esquerda, ao sectarizar- se, se equivoca totalmente na sua interpretação “dialética” da realidade, da história, deixando- se cair em posições fundamentalmente fatalistas.
Distinguem- se, na medida em que o primeiro pretende “domesticar” o presente para que o futuro, na melhor das hipóteses, repita o presente “domesticado”, enquanto o segundo transforma o futuro em algo pré-estabelecido, uma espécie de fado, de sina ou de destino irremediáveis. Sofrem ambos da falta de dúvida”4. O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em “círculos de segurança”, nos quais aprisione também a realidade. Tão mais radical, quanto mais se inscreve nesta realidade para, conhecendo- a melhor, melhor poder transformá- la. Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Era S. A. pág. Queremos expressar aqui o nosso agradecimento a Elza, de modo geral nossa primeira leitora, por sua compreensão e estímulos constantes a nosso trabalho, que também é seu.
Agradecimento que estendemos a todos quantos leram os originais deste ensaio pelas criticas que nos fizeram, o que não nos retira ou diminui a responsabilidade pelas afirmações nele feitas. Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, em reconhecer a desumanização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. É também, e talvez sobretudo, a partir desta dolorosa constatação, que os homens se perguntam sobre a outra viabilidade – a de sua humanização. Ambas, na raiz de sua inconclusão, que os inscreve num permanente movimento de busca. Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão. Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos homens.
Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá- la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E ai está a grande tarefa 1 Os movimentos de rebelião, sobretudo de jovens, no mundo atual, que necessariamente revelam peculiaridades dos espaços onde se dão, manifestam, em sua profundidade, esta preocupado em torno do homem e dos homens, como seres no mundo e com o mundo. Em torno do que e de como estão sendo. Ao questionarem a "civilização do consumo"; ao denunciarem as "burocracias" de todos os matizes; ao exigirem a transformação das Universidades, de que resulte, de um lado, o desaparecimento da rigidez nas relações professor- aluno; de outro, a inserção delas na realidade; ao proporem a transformação da realidade mesma para que as Universidades possam renovar- se; ao rechaçarem velhas ordens e instituições estabelecidas, buscando a afirmação dos homens como sujeitos de decisão, todos estes movimentos refletem o sentido mais antropológico do que antropocêntrico de nossa época.
A grande generosidade está em lutar para que, cada vem mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em gestos de súplica. Súplica de humildes a poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e transformem o mundo. Este ensinamento e este aprendizado têm de partir, porém, dos “condenados da terra”, dos oprimidos, dos esfarrapados do mundo e dos que com eles realmente se solidarizem. Lutando pela restauração de sua humanidade estarão, sejam homens ou povos, tentando a restauração da generosidade verdadeira. A estrutura de seu pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se “formam”. O seu ideal é, realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que sempre estiveram e cuja superação não lhes está, clara, é ser opressores.
Estes são o seu testemunho de humanidade. Isto decorre, como analisaremos mais adiante, com mais vagar, do fato de que, em certo momento de sua experiência existencial, os oprimidos assumam uma postura que chamamos de “aderência” ao 2 "Talvez dês esmolas. Mas, de onde as tiras, senão de tuas rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrima s, dos suspiros? Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbulo, ele o recusaria porque teria a impressão de morder a carne de seus irmãos e de sugar o sangue de seu próximo. O “homem novo”, em tal caso, para os oprimidos, não é o homem a nascer da superação da contradição, com a transformação da velha situação concreta opressora, que cede seu lugar a uma nova, de libertação.
Para eles, o novo homem são eles mesmos, tornando-se opressores de outros. A sua visão do homem novo é uma visão individualista. A sua aderência ao opressor não lhes possibilita a consciência de si como pessoa, nem a consciência de classe oprimida. Desta forma, por exemplo, querem a reforma agrária, não para libertar- se, mas para passar a ter terra e, com esta, tornar- se proprietários ou, mais precisamente, patrões de novos empregados. Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, o sentido alienador das prescrições que transformam a consciência recebedora no que vimos chamando de consciência “hospedeira” da consciência opressora. Por isto, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito.
Faz- se à base de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores. Os oprimidos, que introjetam a "sombra” dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, aa medida em que esta, implicando na expulsão desta sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio” deixado pela expulsão, com outro “conteúdo” – o de sua autonomia. Nos oprimidos, o medo da liberdade é o medo de assumi - la. Nos opressores, é o medo de perder a "liberdade” de oprimir. No momento, porém, em que se comece a autêntica luta para criar a situação que nascerá da superação da velha, já se está lutando pelo Ser Mais. E, se a situação opressora gera uma totalidade desumanizada e desumanizante, que atinge aos que oprimem e aos oprimidos, não vai ceder, como já afirmamos, aos primeiros, que se encontram desumanizados pelo só motivo de oprimir, mas aos segundos, gerar de seu ser menos a busca do ser mais de todos.
Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos” na própria engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de correr o risco de assumi-la. Entre se desalienarem ou se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam, na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo. É preciso, enfat izemos, que se entreguem à práxis libertadora. O mesmo se pode dizer ou afirmar com relação ao opressor, tomado individualmente, como pessoa. Descobrir- se na posição de opressor, mesmo que sofra por este fato, não é ainda solidarizar- se com os oprimidos.
Solidarizar- se com estes é algo mais que prestar assistência a trinta ou a cem, mantendo- os "The truth of the independent consciousness is (accordingly) the consciousness of the bondsman”. Hegel, op. Dizer que es homens são pessoas e, como pessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que esta afirmação se objetive, é uma farsa. Da mesma forma como é, em uma situação concreta – a da opressão – que se instaura a contradição opressor-oprimidos, a superação desta contradição só se pode verificar objetivamente também. Dai, esta exigência radical, tanto para o opressor que se descobre opressor; quanto para os oprimidos que, reconhecendo- se contradição daquele, desvelam o mundo da opressão e percebem os mitos que o alimentam – a radical exigência da transformação da situação concreta que gera a opressão.
Parece- nos muito claro, não apenas neste, mas noutros momentos do ensaio que, ao apresentarmos esta radical exigência – a da transformação objetiva da situação opressora – combatendo um imobilismo subjetivista que transformasse o ter consciência da opressão numa espécie de espera paciente de que um dia a opressão desapareceria por si mesma, não estamos negando o papel da subjetividade na luta pela modificação das estruturas. Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “invasão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens. Referindo- se à consciência senhorial e à consciência servil, diz Hegel: “the one is independent, and its essential nature is to be for itself; the other is dependent and its essence is life or existence for another.
The former is the Master, or Lord, the latter the Bondsman. Hegel, op. cit, p. A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá - lo, Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos. Desta forma, esta superação exige a inserção critica dos oprimidos na realidade opressora, com que, objetivando- a, simultaneamente atuam sobre ela. Por isto, inserção crítica e ação já são a mesma coisa. Por isto também é que o mero reconhecimento de uma realidade que não leve a esta inserção critica (ação já) não conduz a nenhuma transformação da realidade objetiva, precisamente porque não é reconhecimento verdadeiro. Este é o caso de um “reconhecimento” de caráter puramente subjetivista, que é antes o resultado da arbitrariedade do subjetivista o qual, fugindo da realidade objetiva, cria uma falsa realidade “em si mesmo”.
Ai está uma das razões para a proibição, para as dificuldades – como veremos no último capítulo deste ensaio – no sentido de que as massas populares cheguem a “inserir- se”, criticamente, na realidade. É que o opressor sabe muito bem que esta “inserção critica” das massas oprimidas, na realidade opressora, em nada pode a ele interessar. O que lhe interessa, pelo contrário, é a permanência delas em seu estado de 6 “A ação libertadora implica num momento necessariamente consciente e volitivo, configurando- se como a prolongação e a inserção continuadas deste na história. A ação dominadora, entretanto, não supõe esta dimensão com a mesma necessariedade, pois a própria funcionalidade mecânica e inconsciente da estrutura é mantenedora de si mesma e, portanto, da dominação”.
De um trabalho inédito de José Luiz Fiori, a quem o autor agradece a possibilidade da citação. É que não haveria ação humana se não houvesse uma realidade objetiva, um mundo como “não eu” do homem, capaz de desafio- lo; como também pão haveria ação humana se o homem não fosse um “projeto”, um mais além de si, capaz de captar a sua realidade, de conhecê-la para transformá -la. Num pensar dialético, ação e mundo, mundo e ação, estão intimamente solidários. Mas, a ação só é humana quando, mais que um puro fazer, é um que fazer, isto é, quando também não se dicotomiza da reflexão. Esta, necessária à ação, está implícita na exigência que faz Lukács da “explicação às massas de sua própria ação” – como está implícita na finalidade que ele dá a essa explicação – a de “ativar conscientemente o desenvolvimento ulterior da experiência”.
Para nós, contudo, a questão não está propriamente em explicar às massas, mas em dialogar com elas sobre a sua ação. G. Lukács, Lenine. Paris, Études et Documentation Internationales, 1965, p. La teoria materialista de que los hombres son producto de las circunstancias y de la educación, y de que, por tanto, los hombres modificados son producto de circunstancias distintas y de una educación distinta, olvida que las circunstancias se hacen cambiar precisamente por los hombres y que el proprio educador necesita ser educado”. Marx, Tercera Tesis sobre Feuerbah, in Marx/Engels – Obras Escogidas. Da dualidade dos oprimidos. E é como seres duais, contraditórios, divididos, que temos de encará- los. A situação de opressão em que se “formam”, em que “realizam” sua existência, os constitui nesta dualidade, na qual se encontram proibidos de ser.
Basta, porém, que homens estejam sendo proibidos de ser mais para que a situação objetiva em que tal proibição se verifica seja, em si mesma, uma violência. Violência real, não importa que, muitas vezes, adocicada pela falsa generosidade a que nos referimos, porque fere a ontológica e histórica vocação dos homens – a do ser mais. Para os opressores, porém, na hipocrisia de sua “generosidade”, são sempre os oprimidos, que eles jamais obviamente chamam de oprimidos, mas, conforme me situem, interna ou externamente, de “essa gente” ou de “essa massa cega e invejosa”, ou de “selvagens”, ou de “nativos”, ou de “subversivos”, são sempre os oprimidos os que desamam. São sempre eles os “violentos”, os "bárbaros” os “malvados”, os “ferozes”, quando reagem à, violência dos opressores.
Na verdade, porém, por paradoxal que possa parecer, na resposta dos oprimidos à violência dos opressores é que vamos encontrar o gesto de amor. Consciente ou inconscientemente, o ato de rebelião dos oprimidos, que é sempre tão ou quase tão violento quanto a violência que os cria, este ato dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor. Enquanto a violência dos opressores faz dos oprimidos homens proibidos de ser, a resposta destes à violência daqueles se encontra infundida do anseio de busca do direito de ser. Os freios que os antigos oprimidos devem impor aos antigos opressores para que não voltem a oprimir não são opressão daqueles a estes. A opressão só existe quando se constitui em um ato proibitivo do ser mais dos homens.
Por esta razão, estes freios, que são necessários, não significam, em si mesmos, que os oprimidos de ontem se tenham transformado nos opressores de hoje. Os oprimidos de ontem, que detêm os antigos opressores na sua ânsia de oprimir, estarão gerando, com seu ato, liberdade, na medida em que, com ele, evitam a volta do regime opressor. Um ato que proíbe a restauração deste regime não pode ser comparado com o que o cria e o mantém; não pode ser comparado com aquele através do qual alguns homens negam às maiorias o direito de ser. Direito de pessoa que, na situação anterior, não respeitavam nos milhões de pessoas que sofriam e morriam de fome, de dor, de tristeza, de desesperança.
É que, para eles, pessoa humana são apenas eles. Os outros, estes são “coisas”. Para eles, há um só direito – o seu direito de viverem em paz, ante o direito de sobreviverem, que talvez nem sequer reconheçam, mas somente admitam aos oprimidos. E isto ainda, porque, afinal, é preciso que os oprimidos existam, para que eles existam e sejam “generosos”. Deles como consciências necrófilas, diria Fromm que, sem esta posse, "perderiam el contacto con el mundo” 1 2. Daí que tendam a transformar tudo o que os cerca em objetos de seu domínio. A terra, os bens, a produção, a criação dos homens, os homens mesmos, o tempo em que estão os homens, tudo se reduz a objeto de seu comando. Nesta ânsia irrefreada de posse, desenvolvem em si a convicção de que lhes é possível transformar tudo a seu poder de compra.
Daí a sua concepção estritamente materialista da existência. A dos outros, dos seus contrários, se apresenta como subversão. Humanizar é, naturalmente, segundo seu ponto de vista, subverter, e não ser mais. Erich Fromm, El Corazón del Hombre, Breviario. México, Fondo de Cultura Económica, 1967, p. Ter mais, na exclusividade, não é um privilégio desumanizante e inautêntico dos demais e de si mesmos, mas um direito intocável. ” 1 3 O sadismo aparece, assim, como uma das características da consciência opressora, na sua visão necrófila do mundo. Por isto é que o seu amor é um amor às avessas – um amor à morte e não à vida. Na medida em que, para dominar, se esforçam por deter a ânsia de busca, a inquietação, o poder de criar, que caracterizam a vida, os opressores matam a vida.
Daí que vão se apropriando, cada vez mais, da ciência também, como instrumento para suas finalidades. Da tecnologia, que usam como força indiscutível de manutenção da “ordem” opressora, com a qual manipulam e esmagam1 4. De saber. Deste modo, estão sempre correndo o risco de cair num outro tipo de generosidade tão funesto quanto o que criticamos nos dominadores. Se esta generosidade não se nutre, como no caso dos opressores, da ordem injusta que precisa ser mantida para justificá-la; se querem realmente transformá- la, na sua deformação, contudo, acreditam que devem ser os fazedores da transformação. Erich Fromm, op. cit. Àqueles que se comprometem autenticamente com o povo é indispensável que se revejam constantemente. Esta adesão e de tal forma radical que não permite a quem a faz comportamentos ambíguos.
Fazer esta adesão e considerar- se proprietário do saber revolucionário, que deve, desta maneira, ser doado ou imposto ao povo, é manter-se como era antes. Dizer- se comprometido com a libertação e não ser capaz de comungar com o povo, a quem continua considerando absolutamente ignorante, é um doloroso equívoco. Aproximar- se dele, mas sentir, a cada passo, a cada dúvida, a cada expressão sua, uma espécie de susto, e pretender impor o seu status, é manter- se nostálgico de sua origem. “Ordem” que, frustrando- os no seu atuar, muitas vezes os leva a exercer um tipo de violência horizontal com que agridem os próprios companheiros1 8. É possível que, ao agirem assim, mais uma vez explicitem sua dualidade. Ao agredirem seus companheiros oprimidos estarão agredindo neles, indiretamente, o opressor também “hospedado” neles e nos outras.
Agridem, como opressores, o opressor nos oprimidos. “O camponês, que é um dependente, começa a ter ânimo para superar sua dependência quando se dá conta de sua dependência. Pelos seus padrões de vida. Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui- lo. O senhor é o que sabe; nós, as que não sabemos”. Muitas vezes insistem em que nenhuma diferença existe entre eles e o animal e, quando reconhecem alguma, é em vantagem do animal. “É mais livre do que nós”, dizem. É impressionante, contudo, observar como, com as primeiras alterações numa situação opressora, se verifica uma transformação nesta autodesvalia. Escutamos, certa vez, um líder camponês dizer, em reunião, numa das unidades de produção (asentamiento) da experiência chilena de reforma agrária: “Diziam de nós que não produzíamos porque éramos borrachos, preguiçosos.
X, Prefácio. Em português, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, 2ª edição. “O camponês se sente inferior ao patrão porque este lhe aparece como o que tem o mérito de saber e dirigir. ” (Entrevista do autor com um camponês. Ver a este respeito o livro citado de Albert Memmi. Mais ainda, provavelmente assumam posições passivas, alheadas, com relação à necessidade de sua própria luta pela conquista da liberdade e de sua afirmação no mundo. Nisto reside sua “conivência” com o regime opressor. Pouco e pouco, porém, a tendência é assumir formas de ação rebelde. Num quefazer libertador, não se pode perder de vista esta maneira de ser dos oprimidos, nem esquecer este momento de despertar.
Dentro desta visão inautêntica de si e do mundo os oprimidos se sentem como se fossem uma quase “coisa" possuída pelo opressor. O que pode e deve variar, em função das condições históricas, em função do nível de percepção da realidade que tenham os oprimidos é o conteúdo do diálogo. Substituí-lo pelo anti- diálogo, pela sloganização, pela verticalidade, pelos comunicados é pretender a libertarão dos oprimidos com instrumentos da “domesticaç ão”. Pretender a libertação deles sem a sua reflexão no ato desta libertação é transformá - los em objeto que se devesse salvar de um incêndio. É faze-los cair no engodo populista e transformá - los em massa de manobra. Os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação ontológica e histórica de Ser Mais.
Antes de descobrir sua dependência, sofre. Desabafa sua ‘pena’ em casa, onde grita com os filhos, bate, desespera- se. Reclama da mulher. Acha tudo mal. Não desabafa sua ‘pena’ com o patrão porque o considera um ser superior. A ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, "ação cultural” para a liberdade, por isto mesmo, ação com eles. A sua dependência emocional, fruto da situação concreta de dominação em que se acham e que gera também a sua visão inautêntica do mundo, não pode ser aproveitada a não ser pelo. opressor, Este é que se serve desta dependência para criar mais dependência. A ação libertadora, pelo contrário, reconhecendo esta dependência dos oprimidos como ponto vulnerável, deve tentar, através da reflexão e da ação, transformá- la em independência.
Esta, porém, não é doação que uma liderança, por mais bem intencionada que seja, lhes faça. Assim também é necessário que os oprimidos, que hão se engajam na luta sem estar convencidos e, se não se engajam, retiram as condições para ela, cheguem, como sujeitos, e não como objetos, a este convencimento. É preciso que também se insiram criticamente na situação em que se encontram e de que se acham marcados. E isto a propaganda não faz. Se este convencimento, sem o qual, repitamos, não é possível a luta, é indispensável à liderança revolucionária, que se constitui a partir dele, o é também aos oprimidos. A não ser que se pretenda fazer para eles a transformação e não com eles – somente como nos parece verdadeira esta transformação28.
Os oprimidos que se "formam” no amor à morte, que caracteriza o clima da opressão, devem encontrar, na sua luta, o caminho do amor à vida, que não está apenas no comer mais, se bem que implique também nele e dele não possa prescindir. É como homens que os oprimidos têm de lutar e não como "coisas”. É precisamente porque reduzidos a quase “coisas”, na relação de opressão em que estão, que se encontram destruídos. Para reconstruir- se é importante que ultrapassem o estado de quase “coisas”. Não podem comparecer à luta como quase "coisas”, para depois ser homens. Tal é a raiz do método, assim como tal é a essência, da consciência, que só existe enquanto faculdade abstrata e metódica. ”3 1 Porque assim é, a educação a ser prat icada pela liderança revolucionária se faz co- intencionalidade.
Educador e educandos (liderança e massas), co- intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá- la e, assim, criticamente conhecê- la, mas também no de re - criar este conhecimento. Erich Fromn, op. cit. Seus pressupostos, sua crítica Quanto mais analisamos as relações educador-educandos, na escola, em qualquer de seus níveis, (ou fora dela), parece que mais nos podemos convencer de que estas relações apresentam um caráter especial e marcante – o de serem relações fundamentalmente narradoras, dissertadoras. Narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar- se ou a fazer-se algo quase morto, sejam valores ou dimensões concretas da realidade. Narração ou dissertação que implica num sujeito – o narrador – e em objetos pacientes, ouvintes – os educandos.
Há uma quase enfermidade da narração. A tônica da educação é preponderantemente esta – narrar, sempre narrar. A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão. Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante. Poderá dizer- se que casos como estes já não sucedem nas escolas brasileiras. Se realmente estes não oc orrem, continua, contudo, preponderantemente, o caráter narrador que estamos criticando.
O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processos de busca. Não é de estranhar, pois, que nesta visão “bancária” da educação, os homens sejam vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência critica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele. Como sujeitos. Quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais ingenuamente, em lugar de transformar, tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada nos depósitos re cebidos.
Na medida em que esta visão “bancária” anula o poder criador dos educandos ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua transformação. “Esta é boa, organizada e justa. Os oprimidos, como casos individuais, sãos patologia da sociedade sã, que precisa, por isto mesmo, ajustá- los a ela, mudando- lhes a mentalidade de homens ineptos e preguiçosos”. Como marginalizados, “seres fora de” ou “à margem de”, a solução para eles estaria em que fossem "integrados”, “incorporados” à sociedade sadia de onde um dia “partiram”, renunciando, como trânsfugas, a uma vida feliz. Sua solução estaria em deixarem a condição de ser “seres fora de” e assumirem a de “seres dentro de”.
Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram fora de. A sua “domesticação” e a da realidade, da qual se lhes fala como algo estático, pode despertá- los como contradição de si mesmos e da realidade. De si mesmos, ao se descobrirem, por experiência existencial, em um modo de ser inconciliável com a sua vocação de humanizar-se. Da realidade, ao perceberem-na em suas relações com ela, como devenir constante. A CONTRADIÇÃO PROBLEMATIZADORA E LIBERTADORA DA EDUCAÇÃO. SEUS PRESSUPOSTOS É que, se os homens são estes seres da busca e se sua vocação ontológica é humanizar- se, podem, cedo ou tarde, perceber a contradição em que a “educação bancária” pretende mantê- los e engajar- se na luta por sua libertação.
E é lógico que seja assim. No momento em que o educador “bancário” vivesse a superação da contradição já não seria “bancário”. Já não faria depósitos. Já não tentaria domesticar. Já não prescreveria. Uma consciência continente a receber permanentemente os depósitos que o mundo lhe faz, e que se vão transformando em seus conteúdos. Como se os homem fossem uma presa do mundo e este um eterno caça,dor daqueles, que tivesse por distração “enchê- los” de pedaços seus. Para esta equivocada concepção dos homens, no momento mesmo em que escrevo, estariam “dentro” de mim, como pedaços do mundo que me circunda, a mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos todos que aqui estão, exatamente como dentro deste quarto estou agora.
Desta forma, não distingue presentificação à consciência de entrada, na consciência. A mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos que me cercam estão simplesmente presentes à minha consciência e não dentro dela. Quanto mais se adaptam as grandes maiorias às finalidades que lhes sejam prescritas pelas minorias dominadoras, de tal modo que careçam aquelas do direito de ter finalidades próprias, mais poderão estas minorias prescrever. A concepção e a prática da educação que vimos criticando se instauram como eficientes instrumentos para este fim. Dai que um dos seus objetivos fundamentais, mesmo que dele não estejam advertidos muitos do que a realizam, seja dificultar, em tudo, o pensar autêntico. Nas aulas verbalistas, nos métodos de avaliação dos “conhecimentos”, no chamado “controle de leitura”, na distância entre o educador e os A concepção do saber, da concepção "bancária" é, no fundo, o que Sartre (El Hombre y las Cosas) chamaria de concepção "digestiva" ou “alimentícia” do saber.
Este é como se fosse o “alimento" que o educador vai introduzindo nos educandos, numa espécie de tratamento de engorda. Por isto, o pensar daquele não pode ser um pensar para estes nem a estes imposto. Dai que não deva ser um pensar no isolamento, na torre de marfim, mas na e pela comunicação, em torno, repitamos de uma realidade. E, se o pensar só assim tem sentido, se tem sua fonte geradora na ação sobre o mundo, o qual mediatiza as consciências em comunicação, não será possível a superposição dos homens aos homens. Esta superposição, que é uma das notas fundamentais da concepção “educativa” que estamos criticando, mais uma vez a situa como prática da dominação. Dela, que parte de uma compreensão falsa dos homens, – reduzidos a meras coisas – não se pode esperar que provoque o desenvolvimento do que Fromm chama de biofilia, mas o desenvolvimento de seu contrário, a necrofilia.
Não se deixa mover pelo ânimo de libertar tarefa comum de refazerem o mundo e de torná- la mais e mais humano. Seu ânimo é justamente o contrário – o de controlar o pensar e a ação, levando os homens ao ajustamento ao mundo. É inibir o poder de criar, de atuar. Mas, ao fazer isto, ao obstaculizar a atuação dos homens, como sujeitos de sua ação, como seres de opção, frustra-os. Quando, porém, por um mot ivo qualquer, os homens se sentem proibidos de atuar, quando se descobrem incapazes de usar suas faculdades, sofrem. Talvez possamos encontrar nos oprimidos este tipo de reação nas manifestações populistas. Sua identificação com lideres carismáticos, através de quem se possam sentir atuantes e, portanto, no uso de sua potência, bem como a sua rebeldia, quando de sua emersão ao processo histórico, estão envolvidas por este ímpeto de busca de atuação de sua potência.
Para as elites dominadoras, esta rebeldia, que é ameaça a elas, tem o seu remédio em mais dominação – na repressão feita em nome, inclusive, da liberdade e no estabelecimento da ordem e da paz social. Paz social que, no fundo, não é outra senão a paz privada dos dominadores. Por isto mesmo b que podem considerar – logicamente, do seu ponto de vista – um absurdo “the violence of a strike by workers and (can) call upon the state in the same breath to use violence in putting down the strike”8. E há até os que, usando o mesmo instrumento alienador, chamam aos que divergem desta prática de ingênuos ou sonhadores, quando - não de reacionários. O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens, não.
podemos começar por aliená- los ou mantê- los alienados. A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. Identifica-se com o próprio da consciência que é sempre ser consciência de, não apenas quando se intenciona a objetos mas também quando se volta sobre si mesma, no que Jaspers 9 chama de “cisão”. Cisão em que a consciência é consciência de consciência. Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato cognoscente.
Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da contradição educador- educandos. Sem esta, não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática “bancária”, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos. Esta prática, que a tudo dicotomiza, distingue, na ação do educador, dois momentos. O primeiro, em que ele, na sua biblioteca ou no seu laboratório, exerce um ato cognoscente frente ao objeto cognoscível, enquanto se prepara para suas aulas.
O segundo, em que, frente aos educandos, narra ou disserta a respeito do objeto sobre o qual exerceu o seu ato cognoscente. O papel que cabe a estes, como salientamos nas páginas precedentes, é apenas o de arquivarem a narração ou os depósitos que lhes faz o educador. A prática problematizadora, pelo contrário, não distingue estes momentos no quefazer do educadoreducando. Não é sujeito cognoscente em um, e sujeito narrador do conteúdo conhecido em outro. É sempre um sujeito cognoscente, quer quando se prepara, quer quando se encontra dialogicamente com os educandos. O objeto cognoscível, de que o educador bancário se apropria, deixa de ser, para ele, uma propriedade sua, para ser a incidência da reflexão sua e dos educandos. Deste modo, o educador problematizador re-faz, constantemente, seu ato cognoscente, na cognoscibilidade dos educandos.
Assim é que se dá, o reconhecimento que engaja. A educação como prática da liberdade, ao contrário naquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens. A reflexão que propõe, por ser autêntica, não é sobre este homem abstração nem sobre este mundo sem homem, mas sobre os homens em suas relações com o mundo. Relações em que consciência e mundo se dão simultaneamente. Não há uma consciência antes e um mundo depois e vice- versa. Desta forma, o mundo constituinte da consciência se torna mundo da consciência, um percebido objetivo seu, ao qual se intenciona.
Daí, a afirmação de Sartre, anteriormente citada: “consciência e mundo se dão ao mesmo tempo”. Na medida em que os homens, simultaneamente refletindo sobre si e sobre o mundo, vão aumentando o campo de sua percepção, vão também dirigindo sua “mirada” a “percebidos” que, até então, ainda que presentes ao que Husserl chama de “visões de fundo” 1 1 , não se destacavam, “não estavam postos por si”. Desta forma, nas suas “visões de fundo”, vão destacando percebidos e voltando sua reflexão sobre eles. O que antes já existia como objetividade, mas não era percebido em suas implicações mais profundas e, às vezes, nem sequer era percebido, se “destaca” e assume o caráter de problema, portanto, de desafio.
A primeira “assistencializa”; a segunda, criticiza. A primeira, na medida em que, servindo à dominação, inibe a criatividade e, ainda que não podendo matar a intencionalidade da consciência como um desprender- se ao mundo, a “domestica”, nega os homens na sua vocação ontológica e histórica de humanizar- se. A segunda, na medida em que, servindo à libertação, se funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora da busca e ria transformação criadora. Edmund Husserl, I D E A S – General Introduction to Pure Phenomenology, 3ª ed. Londres, Collier Books, 1969, pp. Sua “duração” – no sentido bergsoniano do termo – como processo, está no jogo dos contrários permanência-mudança.
Enquanto a concepção “bancária” dá ênfase à permanência, a concepção problematizadora reforça a mudança. Deste modo, a prática “bancária", implicando no imobilismo a que fizemos referência, se faz reacionária, enquanto a concepção problematizadora que, não aceitando um presente “bem comportado”, não aceita igualmente um futuro pré - dado, enraizando- se no presente dinâmico, se faz revolucionária. A educação problematizadora, que não é fixismo reacionária, é futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa1 2. Profetismo e esperança que resultam do caráter utópico de tal forma de ação, tomando- se a utopia como a unidade, inquebrantável entre a denúncia e o anúncio. Denúncia de uma realidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os homens possam ser mais.
Anúncio e denúncia não são, porém, palavras vazias, mas compromisso histórico, 12 tenham. A percepção ingênua ou mágica da realidade da qual resultava a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz de perceber- se. E porque é capaz de perceber- se enquanto percebe a realidade que lhe parecia em si inexorável, é capaz de objetivá- la. Ninguém pode ser, autenticamente, proibido que os outros sejam. Esta é uma exigência radical. O ser mais que se busque no individualismo conduz ao ter mais egoísta, forma de ser menos. De desumanização. Não que não seja fundamental – repitamos – ter para ser. Considerações com as quais aprofundemos afirmações que fizemos a respeito do mesmo tema em Educação como Prática da Liberdade1.
Quando tentamos um adentramento no diálogo, como fenômeno humano, se nos revela algo que já poderemos dizer ser ele mesmo: a palavra. Mas, ao encontrarmos a palavra, na análise do diálogo, como algo mais que um meio para que ele se faça, se nos impõe buscar, também, seus elementos constitutivos. Esta busca nos leva a surpreender, nela, duas dimensões; ação e reflexão, de tal forma solidárias, em uma interação tão radical que, sacrificada, ainda que em parte, uma delas, se ressente, imediatamente, a outra. Não há palavra verdadeira que não seja práxis. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não e no silêncio 4 que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação- reflexão.
Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê- la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar- se simples troca da, idéias a serem consumidas pelos permutantes. Não é também discussão guerreira, polêmica, entre sujeitos que não aspiram a comprometer- se com a pronúncia do mundo, nem com buscar a verdade, mas com impor a sua.
Porque é encontro de homens que pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros. É um ato de criação. Daí que não possa ser manhoso instrumento de que lance mão um sujeito para a conquista do outro. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é dialógico. Como ato de valentia, não pode ser piegas; como ato de liberdade, não pode ser pretexto para a manipulação, senão gerador de outros atos de liberdade. A não ser assim, não é amor. Somente com a supressão da situação opressora é possível restaurar o amor que nela estava proibido. Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo.
Não há, por outro lado, diálogo, se não há humildade. A pronúncia do mundo, com que os homens o recriam permanentemente, não pode ser um ato arrogante. O diálogo, como encontro dos homens para a tarefa comum de saber agir, se rompe, se seus pólos (ou um deles) perdem a humildade. Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro, nunca em mim? Como posso dialogar, se me admito corno um homem diferente, virtuoso por herança, diante dos outros, meros “isto”, em quem não reconheço outros eu? Como posso dialogar, se me sinto participante de um “gueto” de homens puros, donos da verdade e do saber, para quem todos os que estão fora são “essa gente”, ou são “nativos inferiores”? Como posso dialogar, se parto de que a pronúncia do mundo é tarefa de homens seletos e que a presença das massas na história é sinal de sua deterioração que devo evitar? Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamais reconheço, e até me sinto ofendido com ela? Como posso dialogar se temo a superação e se, só em pensar nela, sofro e definho? A auto- suficiência é incompatível com o diálogo.
Os homens que não têm humildade ou a perdem, não podem aproximar- se do povo. Esta, contudo, não é uma ingênua fé. O homem dialógico, que é critico, sabe que, se o poder de fazer, de criar, de transformar, é um poder dos homens, sabe também que podem eles, em situação concreta, alienados, ter este poder prejudicado. Esta possibilidade, porém, em lugar de mata no homem dialógico a sua fé nos homens, aparece a ele, pelo contrário, como um desafio ao qual tem de responder. Está convencido de que este poder de fazer e transformar, mesmo que negado em situações concretas, tende a renascer. Pode renascer. Se falha esta confiança, é que falharam as condições discutidas anteriormente. Um falso amor, uma falsa humildade, uma debilitada fé nos homens não podem gerar confiança.
A confiança implica no testemunho que um sujeito dá aos outros de suas reais e concretas intenções. Não pode existir, se a palavra, descaracterizada, não coincide com os atos. Dizer uma coisa e fazer outra, não levando a palavra a sério, não pode ser estímulo à confiança. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo- homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade. Este é um pensar que percebe a realidade como processo, que a capta em constante devenir e não como algo está,tico. Não se dicotomiza a si mesmo na ação. “Banha- se” permanentemente de temporalidade cujos riscos não teme. Opõe- se ao pensar ingênuo, que vê o “tempo histórico como um peso, como uma estratificação das aquisições e experiências do passado”,6 de que resulta dever ser o presente algo normalizado e bem comportado.
Para o “educador- bancário”, na sua antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não é a propósito do conteúdo do diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do programa sobre o qual dissertará a seus alunos. E a esta pergunta responderá ele mesmo, organizando seu programa. Para o educador- educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos, mas a revolução organizada, sistematizada e acre scentada ao povo, daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada. Trecho de carta de um amigo do autor. Pierre Furter. Porque não levaram em conta, num mínimo instante, os homens em situação a quem se dirigia seu programa, a não ser como puras incidências de sua ação.
Para o educador humanista ou o revolucionário autêntico a incidência da ação é a realidade a ser transformada por eles com os outros homens e não estes. Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá- los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores. Lamentavelmente, porém, neste “conto” da verticalidade da programação, “conto” da concepção “bancária”, caem muitas vezes lideranças revolucionárias, no seu empenho de obter a adesão do povo à ação revolucionária. Acercam-se das massas camponesas ou urbanas com projetos que podem corresponder à sua visão do mundo, mas não necessariamente à do povo 1 0. cit. p. “Pour établir une liaison avec les masses, nous devotns nous conformer a leurs désirs. Dans tout travail pour les masses, nous devons partir de leurs besoins, et non de nos propres désirs, si louables soient-ils.
Il arrive souvent que les masses aient objetivement besoin de telles ou telles transformations, mais que subjetivement elles ne soient conscientes de ce besoin, que'elles n’aient ni la valonté ni le désir de les réaliser; dans ce cas, nous devons attendre avec patience; c'est seulement lorsque, à la suite de notre travail, les masses seront, dans leurs majorité conscientes de la nécessité de ces transformations, lorsqu’elles auront la volonté et le desir de les faire aboutir ou’on pourra les realiser; sinon, l'on risque de se couper des masses. O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no risível intelectual, mas no nível da ação.
Nunca apenas dissertar sobre ela e jamais doar- lhe conteúdos que pouco ou nada tenham a ver com seus anseias, coem suas dúvidas, com suas esperanças, com seus temores. Conteúdos que, às vezes, aumentam estes temores. Temores de consciência oprimida. Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô- la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. É na realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos educadores e povo, que iremos buscar o conteúdo programático da educação. O momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação como prática da lib erdade. É o momento em que se realiza a investigação do que chamamos de universo temático13 do povo ou o conjunto de seus temas geradores.
Esta investigação implica, necessariamente, numa metodologia que não pode contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente dialógica. Mesmo que possa parecer um lugar- comum, nunca será demasiado falar em torno dos homens como os únicos seres, entre os “inconclusos”, capazes de ter, não apenas sua própria atividade, mas a si mesmos, como objeto de sua consciência, o que os distingue do animal, incapaz de separar- se de sua atividade. Nesta distinção, aparentemente superficial, vamos encontrar as linhas que demarcam os campos de uns e de outros, do ponto de vista da ação de ambos no espaço em que se encontram. Ao não poder separar-se de sua atividade sobre a qual não pode exercer um ato reflexivo, o animal não consegue impregnar a transformação, que realiza no mundo, de uma significação que vá mais além de si mesmo.
Na medida em que sua atividade é uma aderência dele, os resultados da transformação operada através dela não o sobrepassam. Não se separam dele, tanto quanto sua atividade. O animal, por isto mesmo, não pode comprometer-se. Sua condição de a- histórico não lhe permite assumir a vida, e, porque não a assume, não pode construí- la. E, se não constrói, não pode transformar o seu contorno. Não pode, tampouco, saber- se destruído em vida, pois não consegue alongar seu suporte, onde ela se dá, em um mundo significativo e simbólico, o mundo compreensivo da cultura e da história. Esta é a razão pela qual o animal não animaliza seu contorno para animalizar-se, nem tampouco se desanimaliza.
Dimensões desafiadoras dos homens, que incidem sobre elas através de ações que Vieira Pinto chama de “atos- limites” – aqueles que se dirigem à superação e à negação do dado, em lugar de implicarem na sua aceitação dócil e passiva. Esta é a razão pela qual não são as “situações limites”, em si mesmas, geradoras de um clima de desesperança, mas a percepção que os homens tenham delas num dado momento histórico, como um freio a eles, como algo que eles não podem ultrapassar. No momento em que a percepção critica se instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva os homens a empenhar- se na superação das “situações- limites”.
O Prof. Álvaro Vieira Pinto analisa, com bastante lucidez, o problema das “situações- limites", cujo conceito aproveita, esvaziando-o, porém, da dimensão pessimista que se encontra originariamente em Jaspers. Preso organicamente a seu suporte, o animal não se distingue dele. Desta forma, em lugar de “situações-limites”, que são históricas, é o suporte mesmo, maciçamente, que o limita. O próprio do animal, portanto, não é estar em relação com seu suporte – se estivesse, o suporte seria mundo – mas adaptado a ele. Daí que, como um “ser fechado” em si, ao “produzir” um ninho, uma c olméia, um oco onde viva, não esteja realmente criando produtos que tivessem sido o resultado de “atos- limites” – respostas transformadoras. Sua atividade produtora está submetida à satisfação de uma necessidade física, puramente estimulante e não desafiadora.
Sua história, em função de suas mesmas criações vai se desenvolvendo em permanente devenir, em que se concretizam suas unidades epocais. Estas, como o ontem, o hoje e o amanhã, não são como se fossem seções fechadas e intercomunicáveis do tempo, que ficassem petrificadas e nas quais os homens estivessem enclausurados. Se assim fosse, desapareceria 15 Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos. A propósito deste aspecto, ver Karel Kosik, Dialética do Concreto, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, 3ª edição. uma condição fundamental da historia: sua continuidade. No momento em que uma sociedade vive uma época assim, o próprio irracionalismo mitificador passa a constituir um de seus temas fundamentais, que terá, como seu oposto combatente, a visão crítica e dinâmica da realidade que, empenhando- se em favor do seu desvelamento, desmascara sua mitificação e busca a plena realização da tarefa humana: a permanente transformação da realidade para a libertação dos homens, Os temas1 8 se encontram, em última análise, de um lado, envolvidos, de outro, envolvendo as “situaçõeslimites”, enquanto as tarefas em que eles implicam, quando cumpridas, constituem os “atos- limites” aos quais nos referimos.
Enquanto os temas não são percebidos como tais, envolvidos e envolvendo as "situações- limites”, as tarefas referidas a eles, que são as respostas dos homens através de sua ação histórica, não se dão em termos autênticos ou críticos. Neste caso, os temas se encontram encobertos pelas “situações- limites” que se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa, senão adaptar- se. Desta forma, os homens não chegam a transcender as “situações- limites” e a descobrir ou a divisar, mais além delas e em relação com elas, o “inédito viável”. Em síntese, as “situações- limites” implicam na existência daqueles a quem direta ou indiretamente “servem” e daqueles a quem “negam” e “freiam”.
diversificadas entre si. Como tema fundamental desta unidade mais ampla, que poderemos chamar “nossa época”, se encontra, a nosso ver, o da libertação, que indica o seu contrário, o tema da dominação. É este tema angustiante que vem dando à nossa época o caráter antropológico a que fizemos referência anteriormente. Para alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem o desaparecimento da opressão desumanizante, é imprescindível a superação das “situações- limites” em que os homens se acham quase coisificados”. Em círculos menos amplos, nos deparamos com temas e “situações- limites”, características de sociedades de um mesmo continente ou de continentes distintos, que têm nestes temas e nestas “situações- limites” similitudes históricas. A INVESTIGAÇÃO DOS TEMAS GERADORES E SUA METODOLOGIA De modo geral, a consciência dominada, não só popular, que não captou ainda a “situação- limite” em sua globalidade, fica na apreensão de suas manifestações periféricas às quais empresta a força inibidora que cabe, contudo, à “situação-limite”.
A Libertação desafia, de forma dialeticamente antagônica, a oprimidos e a opressores. Assim, enquanto é, para os primeiros, seu "inédito viável”, que precisam concretizar, se constitui, para os segundos, como “situação- limite", que necessitam evitar. Este é um fato de importância indiscutível para o investigador da temática ou do “tema gerador”. A questão fundamental, neste caso, está em que, faltando aos homens uma compreensão crítica da totalidade em que estão, captando- a em pedaços nos quais não reconhecem a interação constituinte da mesma totalidade, não podem conhecê- la. Isto não significa a redução do concreto ao abstrato, o que seria negar a sua dialeticidade, mas tê- los como opostos que se dialetizam no ato de pensar.
Na análise de uma situação existencial concreta, “codificada”2 1 , se verifica exatamente este movimento do pensar. A descodificação da situação existencial provoca esta postura normal, que implica num partir abstratamente até o concreto; que implica numa ida das partes ao todo e numa volta deste às partes, que implica num reconhecimento do sujeito no objeto (a situação existencial concreta) e do objeto como situação em que está o sujeito2 2. Este movimento de ida e volta, do abstrato ao concreto, que se dá na análise de uma situação codificada, se bem feita a descodificação, conduz à superação da abstração com a percepção crítica do concreto, já agora não mais realidade espessa e pouco vislumbrada. Esta forma de proceder se observa, não raramente, entre homens de classe média, ainda que diferentemente de como se manifesta entre camponeses.
Este todo, que é a situação figurada (codificada) e que antes havia sido apreendido difusamente, passa a ganhar significação na medida em que sofre a “cisão” e em que o pensar volta a ele, a partir das dimensões resultantes da “cisão”. Como, porém, a codificação é a representação de uma situação existencial, a tendência dos indivíduos é dar o passo da representação da situação (codificação) à situação concreta mesma em que e com que se encontram. Teoricamente, é lícito esperar que os indivíduos passem a comportar- se em face de sua realidade objetiva da mesma forma, do que resulta que deixe de ser ela um beco sem saída para ser o que em verdade é: um desafio ao qual os homens têm que responder.
Em todas as etapas da descodificação, estarão os homens exteriorizando sua visão do mundo, sua forma de pensá- lo, sua percepção fatalista das “situações-limites”, sua percepção estática ou dinâmica da realidade. E nesta forma expressada de pensar o mundo fatalistamente, de pensá- lo dinâmica ou estaticamente, na maneira como realizam seu enfrentamento com o mundo, se encontram envolvidos seus “temas geradores”. Isto revela uma consciência ingênua da investigação temática, para a. qual os temas existiriam em sua pureza objetiva e original, fora dos homens, como se fossem coisas. Os temas, em verdade, existem nos homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos. Um mesmo fato objetivo pode provocar, numa sub-unidade epocal, um conjunto de “temas geradores”, e, noutra, não os mesmos, necessariamente.
Há, pois, uma relação entre o fato objetivo, a percepção que dele tenham os homens e os “temas geradores”. Mas, precisamente porque não é possível entendê- los fora dos homens, é preciso que estes também os entendam. A investigação temática se faz, assim, um esforço comum de consciência da realidade e de autoconsciência, que a inscreve como ponto de partida do processo educ ativo, op da ação cultural de caráter libertador. A SIGNIFICAÇÃO CONSCIENTIZADORA DA INVESTIGAÇÃO DOS TEMAS GERADORES. OS VÁRIOS MOMENTOS DA INVESTIGAÇÃO Por isto é que, para nós, o risco da investigação não está em que os supostos investigados se descubram investigadores, e, desta forma, “corrompam” os resultados da análise. O risco está exatamente no contrário.
Isto é, tem de constituir- se na comunicação, no sentir comum uma realidade que não pode ser vista mecanicistamente compartimentada, simplistamente bem “comportada”, mas, na complexidade de seu permanente vir a ser. Investigadores profissionais e povo, nesta operação simpática, que é a investigação do tema gerador, são ambos sujeitos deste processo. O investigador da temática significativa que, em nome da objetividade científica, transforma o orgânico em inorgânico, o que está sendo no que é, o vivo no morto, teme a mudança. Teme a transformação. Vê nesta, que não nega, mas que não quer, não um anuncio de vida, mas um anúncio de morte, de deterioração. Sendo os homens seres em “situação”, se encontram enraizados em condições tempo- espaço que os marcam e a que eles igualmente marcam.
Sua tendência é refletir sobre sua própria situacionalidade, na medida em que, desapoiados por ela, agem sobre ela. Esta reflexão implica, por isto mesmo, em algo mais que estar em situacionalidade, que é a sua posição fundamental. Os homens são porque estão em situação. E serão tanto mais quanto não só pensem criticamente sobre sua forma de estar, mas criticamente atuem sobre a situação em que estão. Educação e investigação temática, na concepção problematizadora da educação, se tornam momentos de um mesmo processo. Enquanto na prática “bancária” da educação, anti- dialógica por essência, por isto, não comunicativa, o educador deposita no educando o conteúdo programático da educação, que ele mesmo elabora ou elaboram para ele, na prática problematizadora, dialógica por excelência, este conteúdo, que jamais é “depositado”, se organiza e se constitui na visão do mu ndo dos educandos, em que se encontram seus “temas geradores”.
Por tal razão é que este conteúdo há de estar sempre renovando- se e ampliando- se. A tarefa do. educador dialógico é, trabalhando em equipe interdisciplinar este universo temático, recolhido na investigação, devolvê- lo, como problema, não como dissertação, aos homem de quem recebeu. É que, neste encontro, os investigadores necessitam de obter que um número significativo de pessoas aceite uma conversa informal com eles, em que lhes falarão dos objetivos de sua presença na área. Na qual dirão o porque, o como e o para que da investigação que pretendem realizar e que mão podem fazêlo se não se estabelece uma relação de simpatia e confiança mútuas. No caso de aceitarem a reunião, e de nesta aderirem, não só à investigação, mas ao processo que se segue 2 5 , devem os investigadores estimular os presentes para que, dentre eles, apareçam os que queiram participar diretamente do processo da investigação como seus auxiliares.
Desta forma, esta se inicia com um diálogo às claras entre todos. Uma série de informações sobre a vida na área, necessárias à sua compreensão, terá nestes voluntários os seus recolhedores. E isto não se impõe. Neste sentido é que, desde o começo, a investigação temática se vai expressando como um quefazer educativo. Como ação cultural. Em suas visitas os investigadores vão fixando sua “mirada” critica na área em estudo, como se ela fosse, para eles, uma espécie de enorme e sui-generis “codificação” ao vivo, que os desafia. Por isto mesmo, visualizando a área como totalidade, tentarão, visita após visita, realizar a “cisão” desta, na análise das dimensões parciais que os vão impactando.
Dai que este seminário de avaliação deva realizar-se, se possível aa Arca de trabalho, para que possam estes participar dele. Observa-se que os pontos fixados pelos vários investigadores, só conhecidos por todos na reunião de seminário avaliativo, de modo geral coincidem, com exceção de um ou outro aspecto que impressionou mais singularmente a um ou a outro investigador. Estas reuniões de avaliação constituem, em verdade, um segundo momento da “descodificação” ao vivo, que os investigadores estão realizando da realidade que se lhes apresenta como aquela “codificação” suigeneris. Com efeito, na medida em que, um a um, vão todos expondo como perceberam e sentiram este ou aquele momento que mais os impressionou, no ensaio “descodificador”, cada exposição particular, desafiando a todos como descodificadores da mesma realidade, Vai re- presentificando-lhes a realidade recém- Wright Mills, The Sociological Imagination.
Neste sentido Guimarães Rosa nos parece um exemplo – e genial exemplo – de como pode um escritor captar fielmente, não a pronúncia, não a corruptela prosódica, mas a sintaxe do povo das Gerais – a estrutura de seu pensamento. No fundo, estas contradições se encontram constituindo “situações-limites”, envolvendo temas e apontando tarefas. Se os indivíduos se encontram aderidos a estas “situações- lbnites”, impossibilitados de “separar”- se delas, o seu tema a elas referido será necessariamente o do fatalismo e a “tarefa” a ele associada é a de quase não terem tarefa. Por isto é que, embora as “situações- limites” sejam realidades objetivas e estejam provocando necessidades nos indivíduos, se impõe investigar, com eles, a consciência que delas tenham. Uma “situação- limite”, como realidade concreta, pode provocar em indivíduos de áreas diferentes e até de subáreas de uma mesma área, temas e tarefas opostos, que exigem, portanto, diversificação programática para o seu desvelamento.
Daí que a preocupação básica dos investigadores deva centrar-se no conhecimento do que Goldman 2 8 chama de “consciência real” (efetiva) e “consciência máxima possível”. Até então, esta visão é' deles ainda, e não a dos indivíduos em face de sua realidade. A segunda fase da investigação começa precisa-mente quando os investigadores, com os dados que recolheram, chegam à apreensão daquele conjunto de contradições. A partir deste momento, sempre em equipe, escolherão algumas destas contradições, com que serão elaboradas as codificações que vão servir à investigação temática. Na medida em que as codificações (pintadas ou fotografadas e, em certos casos, preferencialmente fotografadas30 ) são o objeto que, mediatizando os sujeitos descodificadores, se dá à sua análise crítica, sua preparação deve obedecer a certos princípios que são apenas os que norteiam a confecção das puras ajudas visuais.
Uma primeira condição a ser cumprida é que, necessariamente, devem representar situações conhecidas pelos indivíduos cuja temá tica se busca, o que as faz reconhecíveis por eles, possibilitando, desta forma, que nelas se reconheçam. As codificações também podem ser orais. Consistem, neste caso, na apresentação, em poucas palavras, que fazem os investigadores, de um problema existencial e a que se segue sua “descodificação". A equipe do "Instituto de Desarrollo Agropecuário" – Chile, vem usando- os com resultados positivos em investigações temáticas. As codificações, de um lado, são a mediação entre o "contexto concreto ou real”, em que se dão os fatos e o "contexto teórico", em que são analisadas; de outro, são o objeto cognoscível sobre que o educador- educando e os educandos- educadores, corno sujeitos cognoscentes, incidem sua reflexão critica.
Ver Paulo Freire, Ação cultural para a libertação. Que sejam codificações com um máximo de “inclusividade” de outras que constituem o sistema de contradições da área em estudo. Mais ainda e por isto mesmo, preparada uma destas codificações “inclusivas”, capaz de “abrir- se” em “leque temático” no processo de sua descodificação, que se preparem as demais “incluídas” nela, como suas dimensões dialetizadas. A descodificação das primeiras terá uma iluminação explicativamente dialética na descodificação das segundas. Neste sentido, um jovem chileno, Gabriel Bode 3 3 , que há mais de dois anos trabalha com o método na etapa de pós-alfabetização trouxe uma contribuição da mais alta importância. Na sua experiência, observou que os camponeses somente se interessavam pela discussão, quando a codificação dizia respeito, diretamente, a aspectos concretos de suas necessidades sentidas.
Depois de descodificada a “essencial”, mantendo- a projetada como um suporte referencial para as consciências a ela intencionadas, vai, sucessivamente, projetando a seu lado as codificações “auxiliares”. Com estas, que se encontram em relação direta com a “essencial”, consegue manter vivo o interesse dos indivíduos que, em lugar de “perder- se” nos debates, chegam à síntese dos mesmos. No fundo, o grande achado de Gabriel Bode está em que ele conseguiu propor à cognoscibilidade dos indivíduos, através da dialeticidade entre a codificação “essencial” e as “auxiliares”, o sentido da totalidade. Os indivíduos imersos na realidade, com a pura sensibilidade de suas necessidades, emergem dela e, assim, ganham a razão das necessidades. Desta forma, muito mais rapidamente, poderão ultrapassar o nível da “consciência real”, atingindo o da “consciência possível”.
Em cada “circulo de investigação” deve haver um máximo de vinte pessoas, existindo tantos círculos quantos a soma de seus participantes atinja a da população da área ou da subárea em estudo. No processo da descodificação, cabe ao investigado, auxiliar desta, não apenas ouvir os indivíduos, mas desafiá- los cada vez mais, problematizando, de um lado, a situação existencial codificada e, de outro, as próprias respostas que vão dando aqueles no decorrer do diálogo. Desta forma, os participantes do “círculo de investigação temática” vão extrojetando, pela força catártica da metodologia, uma série de sentimentos, de opiniões, de si, do mundo e dos outros, que possivelmente não extrojetariam em circunstâncias diferentes.
Numa das investigações realizadas em Santiago (esta, infelizmente não concluída) ao discutir um grupo de indivíduos residentes num “cortiço” (conventillo) uma cena em que apareciam um homem embriagado, que caminhava pela rua e, em uma esquina, três jovens que conversavam, os participantes do círculo de investigação afirmavam que “aí apenas é produtivo e útil à nação o borracho que vem voltando para casa, depois do trabalho, em que ganha pouco, preocupado com a família, a cujas necessidades não pode atender. É o único trabalhador. Era o “único útil à nação, porque trabalhava, enquanto os outros o que faziam era falar mal da vida alheia”. E, após a valorização do que bebe, a sua identificação com ele, como trabalhadores que também bebem, E trabalhadores decentes.
Imaginemos, agora, o insucesso de um educador do tipo que Niebuhr3 6 chama de “moralista”, que fosse fazer prédicas a esses homens contra o alcoolismo, apresentando- lhes como exemplo de virtude o que, para eles, não é manifestação de virtude. O único caminho a seguir, neste como em outros casos é a conscientização da situação, a ser tentada desde a etapa da investigação temática. Conscientização, é óbvio, que não pára, estoicamente, no reconhecimento puro, de caráter subjetivo, da situação, mas, pelo contrário, que prepara os homens, no plano da ação, para a luta contra os obst áculos à sua humanização. O tema do desenvolvimento, por exemplo, ainda que situado no domínio da economia, não lhe é exclusivo. Receberia, assim, o enfoque da sociologia, da antropologia, como da psicologia social, interessadas na questão do câmbio cultural, na mudança de atitudes, nos valores, que interessam, igualmente, a uma filosofia do desenvolvimento.
Receberia o enfoque da ciência política, interessada nas decisões que envolvem o problema, o enfoque da educação, etc. Desta forma, os temas que foram captados dentro de uma totalidade, jamais serão tratadas esquematicamente. Seria uma lástima se, depois de investigados na riqueza de sua interpenetração com outros aspectos da realidade, ao serem “tratados”, perdessem esta riqueza, esvaziando- se de sua força, na estreiteza dos especialismos. Daí que um destes temas possa encontrar- se no “rosto” de unidades temáticas. O conceito antropológico de cultura é um destes “temas dobradiça”, que prendem a concepção geral do mundo que o povo esteja tendo ao resto do programa. Esclarece, através de sua compreensão, o papel dos homens no mundo e com o mundo, como seres da transformação e não da adaptação.
Feita a “redução” 3 8 da temática investigada, a etapa que se segue, segundo vimos, é a de sua “codificação”. A da escolha do melhor canal de comunicação para este ou aquele tema “reduzido” e sua representação. Se os especialistas aceitam, faz-se a entrevista de 10 a 15 minutos. Pode- se, inclusive, tirar uma fotografia do especialista, enquanto fala. No momento em que se propusesse ao povo o conteúdo da entrevista, se diria, antes, quem é ele. O que fez. O que faz. Se encaramos o programa em sua extensão, observamos que ele é uma totalidade cuja autonomia se encontra nas inter- relações de suas unidades que são, também, em si, totalidades, ao mesmo tempo em que são parcialidades da totalidade maior. Os temas, sendo em si totalidades, também são parcialidades que, em interação, constituem as unidades temáticas da totalidade programática.
Na “redução” temática, que é a operação de “cisão” dos temas enquanto totalidades se buscam seus núcleos fundamentais, que são as suas parcialidades. Desta forma, “reduzir” um tema é cindi- lo em suas partes para, voltando- se a ele como totalidade, melhor conhecê- lo. Na "codificação” se procura re- totalizar o tema cindido, na representação de situações existenciais. Preparado todo este material, a que se juntariam pré- livros sobre toda esta temática, estará a equipe de educadores apta a devolvê-la ao povo, sistematizada e ampliada. Temática que, sendo dele, volta agora a ele, como problemas a serem decifrados, jamais como conteúdos a serem depositados. O primeiro trabalho dos educadores de base será a apresentação do programa geral da campanha a iniciar- se.
Programa em que o povo se encontrará, de que não se sentirá estranho, pois que dele saiu. Fundados na própria dialogicidade da educação, os educadores explicarão a presença, no programa, dos “temas dobradiça” e de sua significação. “Muito bem, (diria o educador, após registrar a sugestão e acrescentaria): “Que significa nacionalismo? Por que pode interessar- nos a discussão sobre o nacionalismo?” É provável que, com a problematização da sugestão ao grupo novos temas surjam. Assim, na medida em que todos vão se manifestando vai o educador problematizando, uma a uma, as sugestões que nascem do grupo. Se, por exemplo, numa área em que funcionam trinta “círculos de cultura”, na mesma noite, todos os “coordenadores” (educadores) procedem assim, terá a equipe central um rico material temático a estudar, dentro dos princípios descritos na primeira hipótese de investigação da temática significativa.
O importante, do ponto de vista de uma educação libertadora, e não “bancária”, é que, em qualquer dos casos, os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros. Porque esta visão da educação parte da convicção de que não pode sequer presentear o seu programa, mas tem de buscá- lo dialogicamente com o povo, é que se inscreve como uma introdução à pedagogia do oprimido, de cuja elaboração deve ele participar. É práxis. É transformação do mundo. E, na razão mesma em que o quefazer é práxis, todo fazer do quefazer tem de ter uma teoria que necessariamente o ilumine.
O quefazer é teoria e prática. É reflexão e ação. O seu quefazer, ação e reflexão, não pode dar- se sem a ação e a reflexão dos outros, se seu compromisso é o da libertação. Lenin, Vlademir, What is to be done? In Essential works of Lenin, Henry M. Christman ed. Nova York, 1966, p. A práxis revolucionária somente pode opor- se à práxis das elites dominadoras. O quefazer deste não pode, por isto mesmo, ser dialógico. Não pode ser um quefazer problematizante dos homensmundo ou dos homens em suas relações com o mundo e com os homens. No momento em que se fizesse dialógico, problematizante, ou o dominador se haveria convertido aos dominados e já não seria dominador, ou se haveria equivocado.
E se, equivocando- se, desenvolvesse um tal quefazer, pagaria caro por seu equívoco. Do mesmo modo, uma liderança revolucionária, que não seja dialógica com as massas, ou mantém a “sombra” do dominador “dentro” de si e não é revolucionária, ou está redondamente equivocada e, presa de uma sectarização indiscutivelmente mórbida, também não é revolucionária. Podem aspirar à revolução como um meio de dominação também e não como um caminho de libertação. Podem visualizar a revolução como a sua revolução privada, o que mais uma vez revela uma das características dos oprimidos, sobre que falamos no primeiro capítulo deste ensaio. Se uma liderança revolucionária, encarnando, desta forma, uma visão humanista – de um humanismo concreto e não abstrato – pode ter dificuldades e problemas, muito maiores dificuldades e problemas terá ao tentar, por mais bem- intencionada que seja, fazer a revolução para as massas oprimidas.
Isto é, fazer uma revolução em que o com as massas é substituído pelo sem elas, porque trazidas ao processo através dos mesmos métodos e procedimentos usados para oprimi - las. Estamos convencidos de que o diálogo com as massas populares é uma exigência radical de toda revolução autêntica. A nossa convicção é a de que, quanto mais cedo comece o diálogo, mais revolução será. Este diálogo, como exigência radical da revolução, e responde a outra exigência radical – a dos homens como seres que não podem ser fora da comunicação, pois que são comunicação. Obstaculizar a comunicação é transformá -los em quase “coisa” e isto é tarefa e objetivo dos opressores, não dos revolucionários. É preciso que fique claro que, por isto mesmo que estamos defendendo a práxis, a teoria do fazer, não estamos propondo nenhuma dicotomia de que resultasse que este fazer se dividisse em uma etapa de reflexão e outra, distante, de ação.
Ação e reflexão e ação se dão simultaneamente. E esta solidariedade somente nasce no testemunho que a liderança dá a ele, no encontro humilde, amoroso e corajoso com ele. “Se algum beneficio se pudesse obter da dúvida (disse Fidel Castro ao falar ao povo cubano, confirmando a morte de Guevara), nunca foram armas da revolução a mentira, o medo da verdade, a cumplicidade com qualquer ilusão falsa, a cumplicidade com qualquer mentira. ” Fidel Castro, Gramma, 17- 10- 1967. Os grifos são nossos. Nem todos temos a coragem deste encontro e nos enrijecemos no desencontro, no qual transformamos os outros em puros objetos. Comunhão em que crescerão juntos e em que a liderança, em lugar de simplesmente autonomear- se, se instaura ou se autentica na sua práxis com a do povo, nunca no des-encontro ou no dirigismo.
Muitos, porque aferrados a uma visão mecanicista, não percebendo esta obviedade, a de que a situação concreta em que estão os homens condiciona a sua consciência do mundo e esta as suas atitudes e o seu enfrentamento, pensam que a transformação da realidade se pode fazer em termos mecânicos6. Isto é, sem a problematização desta falsa consciência do mundo ou sem o aprofundamento de uma já, menos falsa consciência dos oprimidos, na ação revolucionária. Não há, realidade histórica – mais outra obviedade – que não seja humana. Não há, história sem homens como não há, uma história para os homens, mas uma história de homens que, feita por eles, também os faz, como disse Marx.
” Lucien Goldman, The Human Sciences cnd Philosophp, Jonathan Cape Ltd. London, 1969, págs. Fernando Garcia, hondurenho, aluno nosso, num curso para latino- americanas em Santiago, Chile, 1967. realidade. Mas isto exige um pensar constante, que não pode ser negado às massas populares, se o objetivo visado é a libertação. “Um tal Mr. Giddy, diz Niebuhr, que foi posteriormente presidente da sociedade real, fez objeções (referese ao projeto de lei que se apresentou ao Parlamento britânico em 1807, criando escolas subvencionadas) que se podiam ter apresentado em qualquer outro país: “Por especial que pudesse ser em teoria o projeto de dar educação às classes trabalhadoras dos pobres, seria prejudicial para sua moral e sua felicidade; ensinaria a desprezar sua missão na vida, em lugar de fazer deles bons servos para a agricultura e outros empregos; em lugar de ensinar- lhes subordinação os faria rebeldes e refratários, como se pôs em evidência nos condados manufatureiros; habilitá- los-ia ler folhetos sediciosos, livros perversos e publicações contra a cristandade; torná- las- ia insolentes para com seus superiores e, em poucos anos, se faria necessário à, legislatura dirigir contra eles o braço forte do poder’”.
No fundo, o que o tal Mr. Giddy, citado por Niebhur, queria, tanto quanto os de hoje, que não falam tão cínica e abertamente contra a educação popular, é que as massas não pensassem. Os Mr. Esta liderança que emerge, ou se identifica com as massas populares, como oprimida também, ou não é revolucionária. Assim é que, não pensar com elas para, imitando os dominadores, pensar simplesmente em torno delas, não se dando a seu pensar, é uma forma de desaparecer como liderança revolucionária. Reinold Niebhur, Moral Man and lmmoral Society, Nova Iorque, The Scribner Library, 1960, pp. Enquanto, no processo opressor, as elites vivem da “morte em vida” dos oprimidos e só na relação vertical entre elas e eles se autenticam, no processo revolucionário, só há, um caminho para a autenticidade da liderança que emerge: “morrer” para reviver através dos oprimidas e com eles.
Na verdade, enquanto no primeiro, é lícito dizer que alguém oprime alguém, no segundo, já não se pode afirmar que alguém liberta alguém, ou que alguém se liberta sozinho, mas que os homens se libertam em comunhão. Naquele, esta se encontra a serviço da “reificação”; nesta, a serviço da humanização. Mas, se no uso da ciência e da tecnologia para “reificar”, o sine qua desta ação é fazer dos oprimidos sua pura incidência, já, não é o mesmo o que se impõe no uso da ciência e da tecnologia para a humanização. Aqui, os oprimidos ou se tornam sujeitos, também, do processo, ou continuam “reificados”. E o mundo não é um laboratório de anatomia em os homens são cadáveres que devam ser estudados passivamente.
O humanista científico revolucionário não pode, em nome da revolução, ter nos oprimidos objetos passivos de sua análise, da qual decorram prescrições que eles devam seguir. Isto é próprio das elites opressoras que, entre seus mitos, têm de vitalizar mais este, com o qual dominam mais. A liderança revolucionária, pelo contrário, científico- humanista, não pode absolutizar a ignorância das massas. Não pode crer neste mito. Não tem sequer o direito de duvidar, por um momento, de que isto é um mito. Não pode admitir, como liderança, que só ela sabe e que só ela pode saber – o que seria descrer das massas populares. Há os que pensam, às vezes, com boa intenção, mas equivocamente, “que sendo demorado o processo dialógico10 – o que não é verdade – se deve fazer a revolução sem comunicação, através dos ‘comunicados' e, depois de feita, então, se desenvolverá um amplo esforço educativo.
Mesmo porque, continuam, não é possível fazer educação antes da chegada ao poder. Educação libertadora. ” Há alguns pontos fundame ntais a analisar nas afirmações dos que assim pensam. Acreditam (não todos), na necessidade do diálogo com as massas, mas não crêem na sua viabilidade antes da chegada ao poder. Afirmamos, pelo contrário, que o diálogo é a “essência” da ação revolucionária. Daí que na teoria desta ação, seus atores, intersubjetivamente, incidam sua ação sobre o objetivo, que é a realidade que os mediatiza, tendo, como objetivo, através da transformação desta, a humanização dos homens. Isto não ocorre na teoria da ação opressora, cuja “essência” é antidialógica. Nesta, o esquema se simplifica. Os atores têm, como objetos de sua ação, a realidade e os oprimidos, simultaneamente e, como objetivo, a manutenção da opressão, através da manutenção da realidade opressora.
Isto nos parece tão óbvio quanto dizer que um homem não aprende a nadar numa biblioteca, mas na água. O diálogo com as massas não é concessão, nem presente, nem muito menos uma tática a ser usada, como a sloganização o é, para dominar. O diálogo, como encontro dos homens para a “pronúncia” do mundo, é uma condição fundamental para a sua real humanização. Se “uma ação livre somente o é na medida em que o homem transforma seu mundo e a si mesmo, se uma condição positiva para a liberdade é o despertar das possibilidades criadoras humanas, se a luta por uma sociedade livre não o é a menos que, através dela, seja criado um sempre maior grau de liberdade individual” 1 3 , se há de reconhecer ao processe revolucionário o seu caráter eminentemente pedagógico.
De uma pedagogia problematizante e não de uma “pedagogia” dos “depósitos”, "bancária”. Do mesmo autor, é importante a leitura de Marx in the Mid -Twentieth Century. Anchor, 1967. A TEORIA DA AÇÃO ANTIDIALÓGICA E SUAS CARACTERÍSTICAS: A CONQUISTA, DIVIDIR PARA MANTER A OPRESSÃO, A MANIPULAÇÃO E A INVASÃO CULTURAL Destas considerações gerais, partamos, agora, para uma análise mais detida a propósito das teorias da ação antidialógica e dialógica. A primeira, opressora; a segunda, revolucionário- libertadora. CONQUISTA O primeiro caráter que nos parece poder ser surpreendido na ação antidialógica é a necessidade da conquista. Não se é antidialógico primeiro e opressor depois, mas simultaneamente. O antidiálogo se impõe ao opressor, na situação objetiva de opressão, para, pela conquista, oprimir mais, não só economicamente, mas culturalmente, roubando ao oprimido conquistado sua palavra também, sua expressividade, sua cultura.
Instaurada a situação opressora, antidialógica em si, o antidiálogo se torna indispensável para mantê- la. A conquista crescente do oprimido pelo opressor aparece, pois, como um traço marcante da ação antidialógica. Por isto é que, sendo a ação libertadora dialógica em si, não pode ser o diálogo um a posteriori seu, mas um concomitante dela. Massas conquistadas, massas espectadoras, passivas, gregarizadas. Por tudo isto, massas alie- nadas. É preciso, contudo, chegar até elas para, pela conquista, mantê- las alienadas. Este chegar até elas, na ação da conquista, não pode transformar- se num ficar com elas. Esta “aproximação”, que não pode ser feita pela comunicação, se faz pelos “comunicados”, pelos “depósitos” dos mitos indispensáveis à manutenção do status quo.
O mito de que a rebelião do povo é um pecado contra Deus. O mito da propriedade privada, como fundamento do desenvolvimento da pessoa humana, desde, porém, que pessoas humanas sejam apenas os opressores. O mito da operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimidos. O mito da inferioridade “ontológica” destes e o da superioridade daqueles1 6. Todos estes mitos e mais outros que o leitor poderá acrescentar, cuja introjeção pelas massas populares oprimidas é básica para a sua conquista, são levados a elas pela propaganda bem organizada, pelos slogans, cujos veículos são sempre os chamados “meios de comunicação com as massas”1 7. He decides that lazinesse is constitutional in the very nature of the colonized. ”Ob. cit. p. Não criticamos os meios em si mesmos, mas o uso que se lhes dá.
Estas formas focalistas de ação, intensificando o modo focalista de existência das massas oprimidas, sobretudo rurais, dificultam sua percepção critica da realidade e as mantém ilhadas da problemática dos homens oprimidos de outras áreas em relação dialética com a sua1 8. O mesmo se verifica nos chamados “treinamentos de lideres” que, embora quando realizados sem esta intenção por muitos dos que os praticam, servem, no fundo, à alienação. O básico pressuposto desta acão já é, em si, ingênuo. Fundamenta- se pretensão de “promover” a comunidade por meio da capacitação dos líderes, como se fossem as partes que promovem o todo e não este que, promovido, promove as partes. Na verdade, os que são considerados em nível de liderança nas comunidades, para que assim sejam tomados, necessariamente, refletem e expressam as aspirações dos indivíduos da sua comunidade.
A liderança anterior ou cresce também ao nível do crescimento do todo ou é substituída pelos novos líderes que emergem, à altura da nova percepção social que se constitui. Daí, também, que aos opressores não interesse esta forma de ação, mas a primeira, enquanto ela, mantendo a alienação, obstaculiza a emersão das consciências e a sua inserção crítica na realidade como totalidade. E, sem esta, é sempre difícil a unidade dos oprimidos como classe. Este é outro conceito que aos opressores faz mal, ainda que, a si mesmos, se considerem como classe, não opressora, obviamente, mas “produtora”. Não podendo negar, mesmo que o tentem, a existência das classes sociais, em relação dialética umas com as outras, em seus conflitos, falam na necessidade de compreensão, de harmonia, entre os que compram e os que são abrigados a vender o seu trabalho.
Querem ser proprietários e não vendedores de seu trabalho. Atualmente, (continua Dom Franic), os trabalhadores estão cada vez mais conscientes de que o trabalho constitui uma parte da pessoa humana. A pessoa humana, porém, não pode ser vendida nem vender- se. Toda compra ou venda do trabalho é uma espécie de escravidão. A evolução da sociedade humana progride neste sentido e, com segurança, dentro deste sistema do qual se afirma não ser tão sensível quanto nós à, dignidade da pessoa humana, isto é, o marxismo. Formas de ação que incidem, direta ou indiretamente, sobre um dos pontos débeis dos oprimidos: a sua insegurança vital que, por sua vez, já é fruto da realidade opressora em que se constituem. Inseguros na sua dualidade de seres “hospedeiros” do opressor, de um lado, rechaçando-o; de outro, atraídos por ele, em certo momento da confrontação entre ambos, é fácil àquele obter resultados positivos de sua ação divisória.
Mesmo porque os oprimidos sabem, por experiência, o quanto lhes custa não aceitarem o “convite” que recebem para evitar que se unam entre si. A perd a do emprego e o seu nome numa “lista negra”, que significa portas que se fecham a eles para novos empregos é o mínimo que lhes pode suceder. A sua insegurança vital, por isto mesmo, se encontra diretamente ligada à escravização de seu trabalho que implic a, realmente, na escravização de sua pessoa, como sublinhou o bispo Split, anteriormente citado. No fundo, porém, o messianismo contido na sua ação não pode esconder o seu intento. O que eles querem é salvar- se a si mesmos. É salvar sua riqueza, seu poder, seu estilo de vida, com que esmagam aos demais.
O seu equivoco está em que ninguém se salva sozinho – qualquer que seja o plano em que se encare a salvação – ou como classe que oprime, mas com os oprimidos, pois estar contra eles é o próprio da opressão. Numa psicanálise da ação opressora talvez se pudesse descobrir, no que chamamos, no primeiro capítulo, de falsa generosidade do opressor, uma das dimensões de seu sentimento de culpa. A história, contudo, se enc arrega sempre de refazer estas “nomeações”. Hoje, apesar de a alienação brasileira continuar chamando o Tiradentes de inconfidente e ao movimento libertador que encarnou, de Inconfidência, o herói nacional não é o que o chamou de bandido e o mandou enforc ar e esquartejar, e espalhar pedaços de seu corpo sangrando pelas vilas assustadas, como exemplo.
O herói é ele. A história rasgou o “título” que lhe deram e reconheceu o seu gesto. Os heróis são exatamente os que ontem buscavam a união para a libertação e não os que, como seu poder, pretendiam dividir para reinar. Os pactos, em última análise, são meios de que se servem os dominadores, para realizar suas finalidades. O apoio das massas populares à chamada “burguesia nacional” para a defesa do duvidoso capital nacional foi um destes pactos, de que sempre resulta, cedo ou tarde, o esmagamento das massas. E os pactos somente se dão quando estas, mesmo ingênuas, emergem no processo histórico e, com sua emersão, ameaçam as elites dominantes. Os pactos só são válidos para as classes populares – e neste caso já, não são pactos – quando as finalidades da ação a ser desenvolvida ou que já se realiza estão na órbita de sua decisão.
Basta a sua presença no processo, não mais como puras espectadoras, mas com os primeiros sinais de sua agressividade, para que as elites dominadoras, assustadas com essa presença incômoda, dupliquem as táticas de manejo. O antídoto a esta manipulação está na organização criticamente consciente, cujo ponto de partida, por isto mesmo, não está em depositar nelas o conteúdo revolucionário, mas na problematização de sua posição no processo. Na problematização da realidade nacional e da própria manipulação. Bem razão tem Weffort 2 4 quando diz: “Toda política de esquerda se apóia nas massas populares e depende de sua consciência. Se vier a confundi- la, perderá as raízes, pairará no ar à espera da queda inevitável, ainda quando possa ter, como no caso brasileiro, a ilusão de fazer a revolução pelo simples giro à volta do poder”, e, esquecendo- se dos seus encontros com as massas para o esforço de organização, perdem- se num “diálogo” impossível com as elites dominadoras.
Daí que também terminem manipuladas por estas elites de que resulta cair, não raramente, num jogo puramente de cúpula, que chamam de realismo. Insistindo as elites dominadoras na manipulação, vão inoculando nos indivíduos o apetite burguês do êxito pessoal. Esta manipulação se faz ora diretamente por estas elites, ora indiretamente, através dos lideres populistas. Estes líderes, como salienta Weffort, medeiam as relações entre as elites oligárquicas e as massas populares. Daí que o populismo se constitua, como estilo de ação política, exatamente quando se instala o processo de emersão das massas em que elas passam a reivindicar sua participação, mesmo que ingenuamente. O líder populista, que emerge neste processo, é também um ser ambíguo.
Em seguida, seu apelo se vai fazendo mais dramático e objetivo: “Venho dizer que, neste momento, o governo ainda está desarmado de leis e de elementos concretos de ação imediata para a defesa da economia do povo. É preciso pois, que o povo se organize, não só para defender seus próprios interesses, mas também para dar ao governo o ponto de apoio indispensável à, realização dos seus propósitos”. E prossegue: “Preciso de vossa união, preciso de que vos organizeis solidariamente em sindicatos; preciso que formeis um bloco forte e coeso aa lado do governo para que este possa dispor de toda a força de que necessita para resolver os vossos próprios problemas. Preciso de vossa união para que possa lutar contra os sabotadores, para que não fique prisioneiro dos interesses dos especuladores e dos gananciosos em prejuízo dos interesses do povo.
” E, com a mesma ênfase : “Chegou, por isto mesmo, a hora do governo apelar para os trabalhadores e dizer- lhes: uni- vos todos nos vossos sindicatos, como forças livres e organizadas. Enquanto a ação do líder se mantenha no domínio das formas paternalistas e sua extensão assistencialista, pode haver divergências acidentais entre ele e grupos oligárquicos feridos em seus interesses, dificilmente, porém, diferenças profundas. É que estas formas assistencialistas, como instrumento da manipulação, servem à conquista. Funcionam como anestésico. Distraem as massas populares quanto às causas verdadeiras de seu,s problemas, bem como quanto à solução concreta destes problemas. Fracionam as massas populares em grupos de indivíduos com a esperança de receber mais. Pelo menos é esta a espectativa daqueles. Os invasores atuam; os invadidos têm a ilusão de que atuam, na atuação dos invasores.
A invasão cultural tem uma dupla face. De um lado, é já dominação; de outro, é tática de dominação. Na verdade, toda dominação implica numa invasão, não apenas física, visível, mas às vezes camuflada, em que o invasor se apresenta como se fosse o amigo que ajuda. Como não há nada que não tenha seu contrário, na medida em que os invadidos vão reconhecendo- se “inferiores”, necessariamente irão reconhecendo a “superioridade” dos invasores. Os valores destes passam a ser a pauta dos invadidos. Quanto mais se acentua a invasão, alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos, mais estes quererão parecer com aqueles: andar como aqueles, vestir à sua maneira, falar a seu modo. O eu social dos invadidos, que, como todo eu social, se constitui nas relações socioculturais que se dão na estrutura, é tão dual quanto o ser da cultura invadida.
É esta dualidade, já várias vezes referida, a que explica os invadidos e dominados, em certo momento de sua experiência existencial, como um eu quase “aderido" ao tu opressor. Para este fim, os invasores se servem, cada vez mais, das ciências sociais e da tecnologia, como já agora das naturais. É que a invasão, na medida em que é ação cultural, cujo caráter induzido permanece como sua conotação essencial, não pode prescindir do auxilio das ciências e da tecnologia com que os invasores melhor atuam. Para eles se faz indispensável o conhecimento do passado e do presente dos invadidos, através do qual possam determinar as alternativas de seu futuro e, assim, tentar a sua condução no sentido de seus interesses. A propósito de dialética da sobredeterminação, ver Louis Althusser, Pour Marx, Paris, Maspero, 1967.
As relações pais- filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condições objetivo- culturais da totalidade de que participam. Vêem- se, a si mesmos, como os promotores do povo. Os programas da sua ação, como qualquer bom teórico da ação opressora indicaria, involucram as suas finalidades, as suas convicções, os seus anseios. Não há que ouvir o povo para nada, pois que, “incapaz e inculto, precisa ser educado por eles para sair da indolência que provoca o subdesenvolvimento”. Para eles, a “incultura do povo é tal ‘que lhes’ parece um absurdo falar da necessidade de respeitar a “visão do mundo” que ele esteja tendo. Visão do mundo têm apenas os profissionais”. O caráter autoritário perdura. Talvez explique também a antidialogicidade daqueles que, embora convencidos de sua opção revolucionária, continuam, contudo, descrentes do povo, temendo a comunhão com ele.
É que, sem o perceber, mantêm dentro de si ainda, o opressor. Na verdade, temem a liberdade, na medida em que hospedam o “senhor”. Quando, porém, os invadidos, em certo momento de sua experiência existencial, começam, desta ou daquela forma, a recusar a invasão a que, em outro momento, se poderiam haver adaptado, para justificar o seu fracasso, falam na “inferioridade” dos invadidos, porque “preguiçosos”, porque “doentes”, porque "mal- agradecidos” e às vezes, também, porque “mestiços”. Ocorre simplesmente que, ao problematizar- lhes uma situação concreta, eles começam a, perceber que, se a análise desta situação se vai aprofundando, terão de desnudar- se de seus mitos, ou afirmá- los. Desnudar- se de seus mitos e renunciar a eles, no momento, h uma “violência” contra si mesmos, praticada por eles próprios.
Afirmá - los é revelar- se. A única saída, como mecanismo de defesa também, é trans- ferir ao coordenador o que é a sua prática normal: conduzir, conquistar, ínvadir,30 como manifestações de sua antidialogicidade. Esta mesma fuga acontece, ainda que em escala menor, entre homens do povo, na proporção em que a situação concreta de opressão os esmaga e sua “assistencialização” os domestica. Pelo contrário, são efeitos que se fazem também causa da dominação. Este é um dos sérios problemas que a revolução tem de enfrentar na etapa em que chega ao poder. Etapa que, exigindo de sua liderança um máximo de sabedoria política, de decisão e de coragem, exige, por tudo isto, o equilíbrio suficiente para não deixar-se cair em posições irracionalmente sectárias.
É que, indiscutivelmente, os profissionais, de formação universitária ou não, de quaisquer especialidades, são homens que estiveram sob a “sobredeterminação” de uma cultura de dominação, que os constituiu como seres duais. Poderiam, inclusive, ter vindo das classes populares e a deformação, no fundo, seria a mesma, se não pior estes profissionais, contudo, são necessários à reorganizaç ão da nova sociedade. Neste sentido, a formação técnico- cientifica não é antagônica à formação humanista dos homens, desde que ciência e tecnologia, na sociedade revolucionária, devem estar a serviço de sua libertação permanente, de sua humanização. Desde esse ponto de vista, a formação dos homens, para qualquer quefazer, uma vez que nenhum deles se pode dar a não ser no tempo e no espaço, está a exigir a compreensão: a) da cultura como supraestrutura e, não obstante, capaz de manter na infra- estrutura revolucionariamente transformando-se, “sobrevivências” do passado; 3 1 e b) do quefazer mesmo, como instrumento da transformação da cultura.
Na medida em que a conscientização, na e pela “revolução cultural”, se vai aprofundando, na práxis criadora da sociedade nova, os homens vão desvelando as razões do permanecer das “sobrevivências” míticas, no fundo, realidades, forjadas na velha sociedade. Mais rapidamente, então, poderão libertar- se destes espectros que são sempre um sério problema a toda revolução, enquanto obstaculizam a edificação da nova sociedade. Através destas “sobrevivências” a sociedade opressora continua “invadindo” e agora, “invadindo” a própria sociedade revolucionária. Na “superioridade” do invasor, Na “inferioridade” do invadido. Na imposição de critérios. Na posse do invadido. No medo de perdê-lo. A invasão cultural implica ainda, por tudo isto, em que o ponto de decisão da ação dos invadidos está fora deles e nos dominadores invasores.
Do mesmo modo, a transformação do ser de um animal não é desenvolvimento. Ambos se transformam determinados pela espécie a que pertencem e num tempo que não lhes pertence, pois que é tempo dos homens. Estes, entre os seres inconclusos, são os únicos que se desenvolvem. Como seres históricos, como “seres para si”, autobiográficos, sua transformação, que é desenvolvimento, se dá no tempo que é seu, nunca fora dele. Esta é a razão pela qual, submetidos a condições concretas de opressão em que se alienam, transformados em “seres para outro” do falso “ser para si” de quem dependem, os homens também já não se desenvolvem autenticamente. Estamos convencidos de que, para aferirmos se uma sociedade se desenvolve ou não, devemos ultrapassar os critérios que se fixam na análise de seus índices “per capita” de ingresso que, “estatisticados”, não chegam sequer a expressar a verdade, bem como os que se centram no estudo de sua renda bruta.
Parece- nos que o critério básico, primordial, está em sabermos se a sociedade é ou não um “ser para si”. Se não é, todos estes critérios indicarão sua modernização, mas não seu desenvolvimento. A contradição principal das sociedades duais é, realmente, esta – a das relações de dependência que se estabelecem entre elas e a sociedade metropolitana. Enquanto não superam esta contradição, não são “seres para si” e, não o sendo, não se desenvolvem. Desde logo, de modo geral, esta liderança é encarnada por homens que, desta ou daquela forma, participavam dos estratos sociais dos dominadores. Em um dado momento de sua experiência existencial, em certas condições históricas, estes, num ato de verdadeira solidariedade (pelo menos assim se deve esperar), renunciam à classe à qual pertencem e aderem aos oprimidos.
Seja esta adesão o resultado de uma análise cientifica da realidade ou não, ela implícita, quando verdadeira, um ato de amor, de real compromisso. Esta adesão aos oprimidos importa numa caminhada até eles. Numa comunicação com eles. Bogotá, Servicios Especiales de Prensa, 1967, p. Uma coisa são as “necessidades de classe”; outra, a "consciência de classe". A propósito de “consciência de classe” ver: George Lukács, Hietoire et Conscience de Classe. Paris, Les Éditions du Minuit, 1960. Se, no primeiro caso, a sua "aderência” ou "quase aderência” ao opressor não lhes possibilita localizá- lo fora delas,3 5 no segundo localizando-o, se reconhecem, em nível crítico, em antagonismo com ele. O compromisso entre elas se sela quase repentinamente. Sentem- se ambas, porque co- irmanadas na mesma representatividade, contradição das elites dominadoras.
Daí em diante, o diálogo entre elas se instaura e dificilmente se rompe. Continua com a chegada ao poder, em que as massas realmente sentem e sabem que estão. Isto não diminui em nada o espírito de luta, a coragem, a capacidade de amar, o arrojo da liderança revolucionária. Em conversa com um sacerdote chileno, de alta responsabilidade intelectual e moral, que esteve no Recife em 1966, ouvimos dele que “ao visitar, com um colega pernambucano, várias famílias residentes em Mocambos, de condições de miséria indiscutível e ao perguntar-lhes como suportavam viver assim, escutava sempre a mesma resposta: ‘Que posso fazer? Deus quer assim, si me resta conformar-me’”. Desta maneira, a caminhada que faz a liderança revolucionária até as massas, em função de certas condições históricas, ou se realiza horizontalmente, constituindo-se ambas em um só corpo contraditório do opressor ou, fazendo- se triangularmente, leva a liderança revolucionária a “habitar” o vértice do triângulo, contra- dizendo também, as massas populares.
Esta condição, como já, vimos, lhe é imposta pelo fato de ss massas populares não terem chegado, ainda, à criticidade ou à quase criticidade da realidade opressora. Quase nunca, porém, a - liderança revolucionária percebe que está, sendo contradição das massas. Realmente, é dolorosa esta percepção e, talvez por um mecanismo de defesa, ela resista em percebê- lo. Comunhão no sentido de ajudá-las a que se ajudem na visualização da realidade opressora que as faz oprimidas. A consciência dominada existe, dual, ambígua, com seus temores e suas desconfianças 3 7. Em seu Diário sobre a luta na Bolívia, o Comandante Guevara se refere várias vezes à falta de participação camponesa, afirmando textualmente : “La mobilización campesina es inexistente, salvo en ias tareas de información que molestan algo, pero no son muy rapidos ni eficientes; los podremos anular”.
E em outro passo: Falta completa de incorporación campesina aunque nos van perdiendo el miedo y se logra la admiración de los campesinos. Es una tarea lenta y paciente”. Entremos, agora, na análise da teoria da ação cultural dialógica, tentando, como no caso anterior, surpreender seus elementos constitutivos. A TEORIA DA AÇÃO DIALÓGICA E SUAS CARACTERÍSTICAS: A CO- LABORAÇÃO, A UNIÃO, A ORGANIZAÇÃO E A SÍNTESE CULTURAL CO-LABORAÇÃO Enquanto na teoria da ação antidialógica a conquista, como sua primeira característica, implica num sujeito que, conquistando o outro, o transforma em quase “coisa”, na teoria dialógica da ação, os sujeitos se encontram para a transformação do mundo em co- laboração. O eu antidialógico, dominador, transforma o tu dominado, conquistado num mero “isto”.
O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído por um tu – um não- eu –, esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. O diálogo, que é sempre comunicação, funda a co- laboração. Na teoria da ação dialógica, não há lugar para a conquista das massas aos ideais revolucionários, mas para a sua adesão. Ver Martin Buber, Yo y tu. O diálogo não impõe, não maneja, não domestica, não sloganiza. Não significa isto que a teoria da ação dialógica conduza ao nada. Se, no primeiro caso, cada vez mais se alienam, no segundo, transformam o mundo para a liberdade dos homens.
Enquanto na teoria da ação antidialógica a elite dominadora mitifica o mundo para melhor dominar, a teoria dialógica exige o desvelamento do mundo. Se, na mitificação do mundo e dos homens há um sujeito que mitifica e objetos que são mitificados, já não se dá o mesmo no desvelamento do mundo, que é a sua desmitificação. Aqui, propriamente, ninguém desvela o mundo ao outro e, ainda quando um sujeito inicia o esforço de desvelamento aos outros, é preciso que estes se tornem sujeitos do ato de desvelar. O desvelamento do mundo e de si mesmas, na práxis autêntica, possibilita às massas populares a sua adesão. Daí que, enquanto os oprimidos sejam mais o opressor “dentro” deles que eles mesmos, seu medo natural à liberdade pode levá- los à denúncia, não da realidade opressora, mas da liderança revolucionária.
Por isto mesmo, esta liderança, não podendo ser ingênua, tem de estar atenta Quanto a estas possibilidades. No relato já citado que faz Guevara da luta em Sierra Maestra, relato em que a humildade é uma nota constante, se comprovam estas possibilidades, não apenas em deserções da luta, mas na traição mesma à causa. Algumas vezes, no seu relato, ao reconhecer a necessidade da punição ao que desertou para manter a coesão e a disciplina do grupo, reconhece também certas razões explicativas da deserção. Uma delas, diremos nós, talvez a mais importante, é a ambigüidade do ser do desertor. E esta comunhão, indubitavelmente dialógica, se fez co- laboração. Veja- se como um líder como Guevara, que não subiu a Sierra com Fidel e seus companheiros à maneira de um jovem frustrado em busca de aventuras, reconhece que a sua “comunhão com o povo deixou de ser teoria para converter- se em parte definitiva de seu ser” (no texto: nosso ser).
Até no seu estilo inconfundível de narrar os momentos da sua e da experiência dos seus companheiros, de falar de seus encontros com os camponeses “leais e humildes”, numa linguagem às vezes quase evangélica, este homem excepcional revelava uma profunda capacidade de amar e comunicar- se. Daí a força de seu testemunho tão ardente quanto o deste outro amoroso – “o sacerdote guerrilheiro” – Camilo Torres. Sem aquela comunhão, que gera a verdadeira co-laboração, o povo teria sido objeto do fazer revolucionário dos homens da Sierra. Não há vida sem morte, como não há morte sem vida, mas há também uma “morte em vida”. E a “morte em vida” é exatamente a vida proibida de ser vida. Acreditamos não ser necessário sequer usar dados estatísticos para mostrar quanto, no Brasil e na América Latina em geral, são “mortos em vida”, são “sombras” de gente, homens, mulheres, meninos, desesperançados e submetidos43 a uma permanente “guerra invisível” em que o pouco de vida que lhes resta vai sendo devorada pela tuberculose, pela esquistossomose, pela diarréia infantil, por mil enfermidades da miséria, muitas das quais a alienação chama de “doenças tropic ais”.
Em face de situações com estas, diz o padre Chenu, “. muitos, tanto entre os padres conciliares como entre laicos informados, temem que, na consideração das necessidades e misérias do mundo, nos atenhamos a uma abjuração comovedora para paliar a miséria e a injustiça era suas manifestações e seus sintomas, sem que se chegue a análise das causas, até. “A maioria deles, diz Gerassi, referindo- se aos camponeses, se vende ou vendem membros de sua família, para trabalharem como escravos, a fim de escapar à, morte. Um Jornal de Belo Horizonte descobriu nada menos de 50. vitimas (vendidas a Cr$ 1. e o repórter, continua Gerassi, para c omprová- la, comprou um homem a sua mulher por 30 dólares. ‘Vi muita gente morrer de fome’, explicou o escravo, ‘e por isto não me importo de ser vendido’.
Enquanto a sua unidade interna, que lhe re- força e organiza o poder, implica na para a liderança revolucionária, a sua unidade só existe na unidade das A primeira existe na medida de seu antagonismo com as massas; a segunda, na razão de sua c omunhão com elas, que, por isto mesmo, têm de estar unidas e não divididas. A própria situação concreta de opressão, ao dualizar o eu do oprimido, ao fazê- lo ambíguo, emocionalmente instável, temeroso da liberdade, facilita a ação divisória do dominador nas mesmas proporções em que dificulta a ação unificadora indispensável à prática libertadora. Mais ainda, a situação objetiva de dominação é, em si mesma, uma situação divis6ria.
Começa por dividir o eu oprimido na medida em que, mantendo- o numa posição de “aderência” à realidade, que se lhe afigura como algo todo-poderoso, esmagador, o aliena a entidades estranhas, explicadoras deste poder. Parte de seu eu se encontra na realidade a que se acha “aderido”, parte fora, na ou nas entidades estranhas, às quais responsabiliza pela força da realidade objetiva, frente à qual nada lhe é possível fazer. O objetivo da ação dialógica está, pelo contrário, em proporcionar que os oprimidos, reconhecendo o porque e o como de sua “aderência”, exerçam um ato de adesão à práxis verdadeira de transformação da realidade injusta. Significando a união dos oprimidos a relação solidária entre si, não importam os níveis reais em que se encontrem como oprimidos, implica esta união, indiscutivelmente, numa consciência de classe.
A “aderência” à realidade, contudo, em que se encontram, sobretudo os oprimidos que constituem as grandes massas camponesas da América Latina, está, a exigir que a consciência de classe oprimida, passe, senão antes, pelo menos concomitantemente, pela consciência de homem oprimido. Propor a um camponês europeu, como um problema, a sua condição de homem, lhe parecerá, possivelmente, algo estranho. Já, não é o mesmo fazê- lo a camponeses latino- americanos, cujo mundo, de modo geral, se “acaba” nas fronteiras do latifúndio, cujos gestos repetem, de certa maneira, os animais e as árvores e que, “imersos” no tempo, não raro se consideram iguais àqueles. Para que os oprimidos se unam entre si, é preciso que cortem o cordão umbilical, de caráter mágico e mítico, através do qual se encontram ligados ao mundo da opressão.
A união entre eles não pode ter a mesma natureza das suas relações com esse mundo. Esta é a razão por que, realmente indispensável ao processo revolucionário, a união dos oprimidos exige deste processo que ele seja, desde seu começo, o que deve ser: Ação cultural. Ação cultural, cuja prática para conseguir a unidade dos oprimidos vai depender da experiência histórica e existencial que eles estejam tendo, nesta ou naquela estrutura. Enquanto os camponeses se acham em uma realidade “fechada”, cujo centro decisório da opressão é “singular” e compacto, os oprimidos urbanos se encontram num contexto “abrindo-se”, em que o centro de comando opressor se faz plural e complexo. O testemunho em si, porém, é um constituinte da ação revolucionária.
Por isto mesmo é que se impõe a necessidade de um conhecimento tanto quanto possível cada vez mais critico do momento histórico em que se dá a ação, da visão do mundo que tenham ou estejam tendo as massas populares, da percepção clara de qual seja a contradição principal e o principal aspecto da contradição que vive a sociedade, para se determinar o que e o como do testemunho. Sendo históricas estas dimensões do testemunho, o dialógico, que é dialético, não pode importá-las simplesmente de outros contextos sem uma prévia análise do seu. A não ser assim, absolutiza o relativo e, mitificando-o, não pode escapar à alienação. O testemunho, na teoria dialógica da ação, é uma das conotações principais do caráter cultural e pedagógico da evolução.
Esta, por sua vez, não apenas está ligada à união das massas populares como é um desdobramento natural desta união. Enquanto processo, o testemunho verdadeiro que, ao ser dado, não frutificou, não tem, neste momento negativo absolutização de seu fracasso. Conhecidos são os casos de lideres revolucionários cujo testemunho não morreu ao serem mortos pela repressão dos opressores. Por isto é que afirmamos: ao buscar a união, a liderança já busca, igualmente, a organização das massas populares. É importante, porém, salientar que, na teoria dialógica da ação, a organização jamais será, a Justaposição de indivíduos que, gregarizados, se relacionem mecanicistamente. Daí que não possa a liderança dizer sua palavra sozinha, mas com o povo.
A liderança que assim não proceda, que insista em impor sua palavra de ordem, não organiza, manipula o povo. Não liberta, nem se liberta, oprime. O fato, contudo, de na teoria dialógica, no processo de organização, não ter a liderança o direito de impor arbitrariamente sua palavra, não significa dever assumir uma posição liberalista, que levaria as massas oprimidas – habituadas à opressão – a licenciosidades. A teoria dialógica da ação nega o autoritarismo como nega a licenciosidade. O antagonismo entre ambas se dá, na situação objetiva de opressão ou de licenciosidade. É por isto que a verdadeira autoridade não se afirma como tal, na pura transferência, mas na delegação ou na adesão simpática. Se se gera num ato de transferência, ou de imposição “antipática” sobre as maiorias, se degenera em autoritarismo que esmaga as liberdades.
Somente ao existenciar- se como antagonismo com as liberdades. liberdade que foi constituída em autoridade, pode evitar seu Toda hipertrofia de uma provoca a atrofia da outra. No fundo, o que se acha explícita ou implicitamente na ação antidialógica é a intenção de fazer permanecer, na “estrutura” social, as situações que favorecem a seus agentes. Daí que estes, não aceitando jamais a transformação da estrutura, que supere as contradições antagônicas, aceitem as reformas que não atinjam a seu poder de decisão, de que decorre a sua força de prescrever suas finalidades às massas dominadas. Na verdade, o que faz que a estrutura seja estrutura social, portanto histórico- cultural, não é a permanência nem a mudança, tomadas absolutizadas, mas a dialetização de ambas.
Em última análise, o que permanece na estrutura social nem é a permanência nem a mudança mas a “duração” da dialeticidade permanência mudança. Este é o motivo por que esta modalidade de ação implica na conquista das massas populares, na sua divisão, na sua manipulação e na invasão cultural. Neste sentido é que toda revolução, se autêntica, tem de ser também revolução cultural. A investigação dos “temas geradores” ou da temática significativa do povo, tendo como objetivo fundamental a captação dos seus temas básicos, só a partir de cujo conhecimento é possível a organização do conteúdo programático para qualquer ação com ele, se instaura como ponto de partida do processo da ação, como síntese cultural.
Daí que não seja possível dividir, em dois, os momentos deste processo: o da investigação temática e o da ação como síntese cultural. Esta dicotomia implicaria em que o primeiro seria todo ele um momento em que o povo estaria sendo estudado, analisado, investigado, como objeto passivo dos investigadores, o que é próprio da ação antidialógica. Deste modo, esta separação ingênua significaria que a ação, como síntese, partiria da ação como invasão. A síntese cultural não nega as diferenças entre uma visão e outra, pelo contrário, se funda nelas. O que ela nega é a invasão de uma pela outra. O que ela afirma é o indiscutível aporte que uma dá à outra.
A liderança revolucionária não pode constituir-se fora do povo, deliberadamente, o que a conduz à invasão cultural inevitável. Por isto mesmo é que, ainda quando a liderança, na hipótese referida neste capítulo, por certas condições históricas, aparece como contradição do povo, seu papel é resolver esta contradição acidental. Concretizemos. Se, em um dado momento histórico, a aspiração básica do povo não ultrapassa a reivindicação salarial, a nosso ver, a liderança pode cometer dois erros. Restringir sua ação ao estimulo exclusivo desta reivindicação, ou sobrepor- se a esta aspiração, propondo algo que está mais além dela. Algo que não chegou a ser ainda para o povo um “destacado em si”. No primeiro caso, incorreria a liderança revolucionária no que chamamos de adaptação ou docilidade à aspiração popular.
Finalmente, a invasão cultural, na teoria antidialógica da ação, serve à manipulação que, por sua vez, serve à conquista e esta à dominação, enquanto a síntese serve à organização e esta à libertação. Todo o nosso esforço neste ensaio foi falar desta coisa óbvia: assim como o opressor, para oprimir, precisa de uma teoria da ação opressora, os oprimidos para se libertarem, igualmente necessitam de uma teoria de sua ação. O opressor elabora a teoria de sua ação necessariamente sem o povo, pois que é contra ele. O. povo, por sua vez, enquanto esmagado e oprimido, introjetando o opressor, não pode, sozinho, constituir a teoria de sua ação libertadora.
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