RELIGIÃO

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Palavras-chave: Midiatização, religião, Estudos Culturais, identidade * As temáticas deste artigo são elaboradas e desenvolvidas paralelamente em Martino (2016b), em particular no capítulo 7. Professor do PPG em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Orcid: http://orcid. org//0000-0002-5099-1741 E-mail: lmsamartino@ gmail. São Paulo - Brasil LUÍS MAURO SÁ MARTINO p. Midiatização da religião e Estudos Culturais: uma leitura de Stuart Hall A RELIGIÃO NÃO parece ocupar um lugar particularmente privilegiado na agenda dos Estudos Culturais , já que entre os principais temas problematizados por eles em sua trajetória teórica, crítica e política, os fenômenos religiosos não parecem ser trabalhados como objetos de análise. Nenhuma das obras clássicas, entendidas como os textos fundadores dessa tradição indisciplinar, dedica atenção exclusiva ao tema – há, no máximo, menções esparsas ao tratar de outro assunto.

Seria possível mencionar, a princípio, uma única coletânea a respeito do tema organizada por Mizruchi (2001), na qual aspectos específicos de alguns contextos nacionais são explorados, sem, no entanto, entrar em um diálogo tensional com a perspectiva dos Estudos Culturais. Na obra de Stuart Hall, em particular, nota-se que o tema emerge de maneira bissexta, geralmente em meio a outras questões envolvendo problemas de representação, política e identidade. L U Í S M A U R O S Á M A RT I N O TRIBUTO A STUART HALL É, portanto, como um fenômeno cultural, no qual discursos e práticas se intercalam com representações e visões de mundo, que se entende religião neste texto – e, por isso mesmo, como algo a ser pensado a partir das reflexões levadas a efeito no âmbito dos Estudos Culturais que, em sua perspectiva de pensar a cultura ligada às práticas cotidianas, aos sentidos, códigos e representações articulados com uma base política, histórica e econômica, oferecem uma possibilidade de entender as transformações do social – e da própria religião – em termos das potencialidades e conflitos existentes não apenas em seu âmbito de ação, mas também na sua intersecção com outros espaços políticos, sociais e culturais.

Mesmo em sociedades ditas laicas, a religião pode ser entendida como um vetor de monta em muitos espaços e momentos do cotidiano desde a discussão e a tomada de decisões políticas, influenciando nas relações internacionais, até as práticas cotidianas, propondo códigos de conduta social no espaço público e regulando os usos do corpo e das relações afetivas no âmbito privado. Dessa maneira, a presença da religião não está circunscrita às suas práticas dogmáticas internas, mas como uma prática cultural com implicações políticas e culturais. É essa premissa, tomada como base para este texto, que a torna particularmente atraente para ser pensada nos termos dos Estudos Culturais. Em particular, toma-se como foco não a religião como conceito geral e de difícil circunscrição, mas de um recorte a partir do que se denomina a midiatização da religião, isto é, uma forma contemporânea de representação e vivência do religioso.

Pensando a partir de Hall (1996b) e Grossberg (1997), a definição de uma identidade está relacionada às possibilidades de exercê-la como tal em público, em um processo de conquista muito mais do que outorga, do direito de ser quem se é e como se é. Ao mesmo tempo, a construção de uma identidade está ligada também ao espaço das representações dessa identidade da maneira como ela é socialmente compreendida e situada nas várias hierarquias constituintes do espaço público. Dessa maneira, ser alguém é um ato político. Essa dimensão se situa desde uma perspectiva biopolítica, pensando nas possibilidades de controle e usos do corpo, até uma questão das políticas de representação midiática de um grupo ou de uma coletividade.

A religião como parte das crenças, discursos e práticas de inúmeros sujeitos torna-se, dessa maneira, um foco de atenção para perguntas relativas à formação das identidades, suas representações e possibilidades de (co)existência no espaço público. A presença da religião no espaço público, bem como sua intromissão nos assuntos de interesse coletivo, não se dá enquanto instância “oficial”, tal como ocorreria em uma teocracia. Em sociedades pluralistas, tais como denomina Habermas (2006), as religiões chegam à esfera política ao lado de inúmeros outros atores, em uma situação concorrencial pela inserção de seus assuntos no debate público com o objetivo de influenciar na tomada de decisões. Por mais intensa que seja sua participação, ela acontece como mais um grupo de pressão, sem nenhuma prerrogativa especial por conta do vínculo alegadamente transcendente que está na raiz de suas práticas.

Diversos autores, trabalhando na esteira dessas reflexões, sugerem que a força da religião no espaço público decorre de sua adaptação aos processos políticos da modernidade (Hoover, 1997; Martelli; Capello, 2005; Marsden, 2008; Martino, 2012; 2016a; 2016b). Isso parece indicar um duplo movimento, integrado em sua complexidade, por um lado, pela perda de um caráter propriamente oficial da religião como ator político na modernidade ocidental; por outro lado, pela continuidade e crescimento da religião como aglomerado de doutrinas, discursos e práticas referentes ao modo como indivíduos e coletividades devem atuar no cotidiano. As definições do religioso, ou, como propõe Sanchez (1999), a introdução da categoria das “religiosidades”, em contraste com a perspectiva mais institucional da “religião”, sugerem igual movimento de distensão do religioso na articulação com outras práticas culturais.

Essa percepção talvez fique ainda mais clara quando se pensa nos modos de vivenciar a religião na contemporaneidade, marcadamente em uma sociedade midiatizada. Para uma discussão sobre a midiatização em particular, remete-se a Livingstone (2009a, 2009b), Krotz (2009) e Hjarvard (2008) 148 MIDIATIZAÇÃO DA RELIGIÃO E IDENTIDADES CULTURAIS O processo de midiatização da sociedade se apresenta como uma complexa trama de fatores sociais, econômicos, políticos, técnicos e tecnológicos que desafia, de início, qualquer perspectiva estritamente midiacêntrica das práticas sociais. Midiatização é um conceito em elaboração e discussão no âmbito dos estudos de mídia sem ser definido senão em torno de algumas proposições básicas – e mesmo essas ainda colocadas sob escrutínio. A ideia d o termo é referida por autores de diversas origens como um movimento de articulação entre processos sociais e o ambiente midiático, no qual suas diferentes lógicas são interseccionadas em uma articulação tensional impossível de ser reduzida a um ou outro de seus componentes1.

A midiatização dos processos sociais não deixa de passar pelo encontro com os processos identitários. Em estudos diversos, Gomes (2004), Fausto Neto (2004), Gasparetto (2011) e Martino (2013) indicam que do processo de midiatização da religião decorrem novas formas de viver o religioso. Definida por Gomes (2010) como “um novo modo de ser no mundo”, a midiatização ganha relevância considerável no estabelecimento de identidades. A midiatização da religião evidentemente engloba as vivências do religioso em termos de identidade e de diferença, tornadas mais visíveis no ambiente midiático. Se a construção de vínculos de comunidade , em particular nas mídias digitais, permite a elaboração mais ou menos direta de um sentido de vivência comum – uma comunicação, no sentido de compartilhamento designado por Williams (2003) –, por outro lado é também um espaço de fácil percepção da diferença, demarcada pelos mesmos processos de divisão institucional presentes nas instâncias não midiatizadas do campo religioso.

Enquanto Campos (1997) sugere um componente de performance nas práticas de denominações religiosas altamente midiatizadas – o conceito de “alta midiatização” e “baixa midiatização” são explorados em Martino (2013) – Dias (2001) mostra como os “códigos culturais” (Fiske, 1988) de programas de auditório transmitidos por emissoras de TV aberta são utilizados em programas religiosos, de maneira a configurar uma mensagem de acordo com referenciais já presentes no público. Borelli (2010) mostra como uma prática religiosa tradicional, a romaria, ganha novas roupagens por conta de sua vinculação com a lógica midiática em diálogo com os rituais tradicionais. Por seu turno, Carranza (2011), em estudo exaustivo, interpreta a midiatização da Igreja Católica no Brasil como um processo de ressignificação das práticas religiosas no universo dos fiéis – algo apontado, igualmente, por Patriota (2008).

Ao mesmo tempo, pode-se observar que esse processo não transforma ou gera efeitos sobre a religião no sentido de desconfigurá-la, mas, antes, na perspectiva de se encontrarem novos lugares para suas práticas – e isso implica, como contraponto da identidade, as perspectivas da diferença. Na religião midiatizada, o ambiente midiático não deixa também de ser um espaço de conflito. Suas contradições, seus movimentos de resistência a discursos dominantes, as articulações de sentido nas quais referências das mais diversas se reúnem em diferentes proporções, graus de importância e interesse de acordo com inúmeras variáveis. Nesse processo é possível encontrar algumas das contradições entre dominação e resistência presentes dentro do âmbito religioso apontadas por Hall (1996a: 147) ao indicar essa dupla e contraditória perspectiva.

O discurso tecido pelas religiões midiatizadas, nesse sentido, tende a se pautar pela demarcação simbólica dos laços de pertencimento, objetivados tanto nos proferimentos quanto nas práticas culturais e nos relacionamentos pessoais. A linguagem, os modos de vestir, as formas reconhecidas de relacionamento e mesmo o gosto musical estão entre esses demarcadores, que ganham em amplitude de representação – e, portanto, de reconhecimento público – no processo de midiatização da religião. No caso da oposição masculino/feminino, esse processo parece se expressar com particular clareza na definição das falas, atitudes e práticas legítimas – o que não as impede de encerrarem, em si, contradições e tensionamentos internos e externos. Dessa maneira, longe de uma perspectiva monolítica de dominação, a religião se constitui como um espaço de negociação assimétrica de sentidos, nos quais instâncias de manutenção de um certo status quo e formas de transformação dessa ordem caminham lado a lado, às vezes no mesmo discurso.

O processo de midiatização da religião confere maior visibilidade a essa questão, sobretudo quando diz respeito aos momentos de formação e representação da identidade. Vale a pena, nesse sentido, observar algumas situações presentes e que se tornam particularmente visíveis. É possível dizer que a midiatização da religião trouxe, ao mesmo tempo, possibilidades de reforço de autonomia e sujeição do corpo, em especial do feminino, dentro e fora dos espaços simbólicos religiosos (Arthur, 1999; Martino, 2008). Turner (2004) argumenta que uma das prerrogativas constantes da religião tem sido o controle dos usos do corpo – em particular, do corpo feminino. Há uma mobilidade constante entre avanços e recuos de um discurso religioso midiatizado, em uma permanente flutuação de sentido – que, de fato, só se completa no âmbito de sua apropriação articulada pela fiel nas suas práticas cotidianas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A elaboração detalhada das problemáticas referentes às relações entre a midiatização da religião e os Estudos Culturais certamente demandaria mais de um trabalho monográfico. Procurou-se, aqui, apenas trabalhar alguns aspectos da questão tomando como recorte as perspectivas e possibilidades relacionadas à construção das identidades no ambiente religioso midiatizado em um recorte que privilegiou três das inúmeras possibilidades de apropriação. Enquanto prática cultural, a religião não desapareceu do mundo moderno. O processo de secularização, em suas confluências e divergências, certamente parece ter afastado a religião da ordem oficial da política e da economia. BABB, L. Introduction. In: ______. Org. Media and the transformation of religion in South Asia. Londres: Routledge, 1990. CAMPOS, L.

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