O desenvolvimento sustentável e seus múltiplos dilemas

Tipo de documento:Redação

Área de estudo:Medicina

Documento 1

Em seguida, será discutido como no Brasil este debate vem sendo realizado e com quais particularidades, direcionando a centralidade do enfoque para o debate acadêmico em torno do conceito de conflitos ambientais. Palavras-chave: Sociologia ambiental. Conflitos ambientais. Questão ambiental no Brasil. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Pressupõe-se que seu surgimento como campo de estudos desta disciplina está vinculado a um processo de demanda por análises teóricas capazes de articular o social e o natural, podendo-se De um modo geral, entende-se por ambiente o conjunto de meios naturais ou artificializados da ecosfera onde os seres humanos se instalaram, que exploram e administram, e o conjunto dos meios não antropizados necessários à sua sobrevivência. Estes meios são caracterizados a) por sua geometria, seus componentes físicos, químicos, biológicos e humanos e a distribuição espacial destes componentes; b) pelos processos de transformação, de ação ou de interação implicando estes componentes, fazendo-os mudar no espaço e no tempo; e c) por suas múltiplas dependências em relação às ações humanas (Jollivet; Pavé, 1993).

SOCIOLOGIAS Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. identificar na constituição daquela que se convencionou chamar de sociologia ambiental um de seus primeiros acolhimentos. Contudo, pouco a pouco distintas áreas da sociologia começaram a incorporar temáticas ambientais em suas problematizações, compondo um amplo leque de interpretações sobre as interfaces entre sociologia e ambiente. contornos no início da década de 1970. Hannigan (1997) considera como marco o movimento Earth Day 1970, que reuniu milhões de participantes e, à época, foi interpretado como o “dia primeiro” do ambientalismo3. De acordo com este autor, esse evento seria o ponto de partida para a “inauguração do decênio ambiental”, a partir do qual os sociólogos se depararam com a circunstância de não ter nenhum corpo teórico ou investigação para os guiar no sentido de uma interpretação particularizada da relação entre a sociedade e a natureza.

Hannigan, 1997, p. Isso se deveria ao fato de os pioneiros sociológicos clássicos, Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim terem deixado um legado fortemente antropocêntrico, incorporado constitutivamente à sociologia moderna. Buttel destaca ainda uma condição ambivalente do ser humano, como ser biológico e social, o que causaria uma também ambivalência entre a biologia e a sociologia como disciplinas para se estudar o humano em sua ecologia e sociabilidade. Buttel, 1992, p. A forte influência do movimento ambientalista e ecologista para a emergência da sociologia ambiental – seja tendo-o como objeto de estudo, seja como fonte de motivação para a temática ambiental a partir do engajamento pessoal de alguns sociólogos – legou para este campo a assertiva de que a relação sociedade-natureza tende ao desequilíbrio e a uma ruptura ecológica resultante da expansão econômica, além da ênfase no papel da percepção humana sobre o ambiente em decorrência dos dilemas ecológicos das nações industriais avançadas.

Buttel, 1992). Dessas premissas comuns desdobram-se diferentes abordagens no interior da sociologia ambiental (Catton; Dunlap, 1980; Schnaiberg, 1980; Buttel, 1992, entre outros), as quais Mattedi (2003) interpreta como diferentes estratégias de recepção epistemológica que variam, segundo o autor, entre o movimento de redefinição do estatuto disciplinar e o movimento de acomodação à tradição disciplinar. Assim, considerou-se que as premissas do NEP se encontravam num nível de abstração muito elevado Ressalta-se aqui a similaridade não causal com o ideário ambientalista/ecologista em geral, em suas críticas ao antropocentrismo também generalizado em todas as formas de atuação e de conhecimento humanos. SOCIOLOGIAS Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. para permitir uma pesquisa significativa, e que alguns dos seus trabalhos se constituem como um conjunto de crenças cognitivas expressas por ativistas ambientalistas e por segmentos do público em geral.

Buttel, 1992, p. E, dessa forma, a difusão de um paradigma ecológico na sociologia não se concretizou. Alonso; Costa, 2002). O segundo eixo de interpretação caracteriza-se pela tentativa de subordinar a análise dos problemas ambientais às estratégias convencionais de abordagem empregadas para o entendimento de outros problemas sociológicos. Este eixo de interpretação agrupa muitos matizes, como por exemplo os conceitos de sociedade de risco (Beck, 1992) e de modernização ecológica (Mol; Spaargaren, 1993), e orientou, a partir dos anos 1990, o que Mattedi (2003, p. analisa como uma renovação no debate sociológico, conformando uma guinada ambiental na sociologia. Nessa “guinada”, alguns teóricos não identificados com a sociologia ambiental, como Giddens (1995) e Beck (1992), passaram a dar importância a questões ecológicas e relações socioambientais.

Paralelamente, no interior do campo da sociologia ambiental, a dimensão realista-materialista das abordagens começou a perder força, ganhando espaço abordagens afinadas com o construtivismo social. Assim, a sociologia ambiental passou a ter como seu principal objeto de estudo o aspecto eminentemente social dos problemas e questões ambientais, isto é, como o ambiente é percebido e construído socialmente como um problema ou questão pública. Dentre as formulações dessa corrente, uma das mais influentes é a síntese construcionista elaborada pelo canadense John A. Hannigan. Este enfoque, ao reivindicar o espaço das múltiplas realidades, invoca e defende o direito legítimo de que outras interpretações e saberes de outros agentes sociais também sejam levados em consideração. Hannigan, 1997, p. destaque no original). Dessa forma, em vez de caracterizar os problemas ambientais como entidades consolidadas, estes são representados como visões baseadas culturalmente e contestadas socialmente.

Hannigan entende, portanto, que os problemas ambientais são semelhantes, em muitas formas, aos problemas sociais em geral. Contudo, destaca algumas diferenças importantes: os problemas ambientais, como o envenenamento por pesticidas e o aquecimento global, enquanto moralmente condenados, são ligados mais diretamente às descobertas e exigências científicas; e, além disso, embora sejam identificados com agentes humanos, têm uma base física mais impositiva do que os problemas sociais que estão mais enraizados nos problemas sociais que se converteram em questões públicas. À parte estes autores identificados especificamente com a sociologia ambiental, na composição do cenário da incorporação do ambiente pela sociologia, somam-se ainda, àqueles teóricos de sociologia geral, três outras subáreas da sociologia que se debruçaram sobre as temáticas ambientais: a) a sociologia rural – que em algumas abordagens passou a demarcar seu campo pouco a pouco da agricultura para o ambiente, como explicitamente demonstrado no livro Du rural à l’environnement (Mathieu; Jollivet, 1989); b) o estudo dos processos sociais de transformação da ideia de “natureza”, como nos trabalhos de Kalaora (1993) sobre o lazer e a floresta e as pesquisas de Keith Thomas sobre a história das ideias ambientais (Thomas, 1988); e c) as definições de interdisciplinaridade, que ocupam uma grande parte dos estudos abordando as possibilidades de existência prática, institucional e epistemológica de uma socioantropologia do ambiente, como discutido nas publicações de Jollivet (1992) e Raynault (2004).

No entanto, também nestas abordagens entende-se que é sobretudo a construção social das relações sociedade-natureza que é destacada: seja na análise da construção de problemas pelos movimentos ambientalistas e ecologistas, da agenda social de instituições políticas, ou das novas formas de democracia, tudo leva a crer que o que interessa aos sociólogos SOCIOLOGIAS 45 Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. é menos o ambiente do que as situações sociais que lhe perpassam, ou a construção que é proposta pelos movimentos sociais e políticos. Boudes, 2008, p. Portanto, percebe-se que, se em sua origem a sociologia ambiental teve como objetivo romper com a primazia do social – entendido como exclusivamente humano – na análise sociológica, em seus desdobramentos esse objetivo não foi alcançado para além de um princípio geral.

Jasanoff, 2006, p. E, nesse intuito, uma das formulações pioneiras e certamente uma das mais ousadas e desafiadoras no que diz respeito à coprodução sociedade-natureza é a abordagem de Bruno Latour e colaboradores da Teoria do Ator-Rede (ANT, na sigla em inglês). Callon; Latour, 1981; Callon, 1986; Callon et al. Latour, em seu ensaio monográfico Jamais fomos modernos (Latour, 1994), articula de maneira explícita temas dos ESCT com discussões da filosofia política, afirmando que a divisão sociedade-natureza é uma criação humana, ou, mais precisamente, ocidental. Seria um traço distintivo da modernidade a instauração de uma Constituição, que define e separa os humanos e não humanos, suas propriedades e suas relações. Tornam-se mediadores, ou seja, atores dotados da capacidade de traduzir aquilo que eles transportam, de redefini-lo, desdobrá-lo, e também de traí-lo.

Latour, 1994, p. Mediante vários anos de estudos sobre ciência, tecnologia e a interdependência do natural, do social e do material, Latour postula como conclusões que: a “natureza” é o resultado, e não a causa, da resolução de controvérsias científicas; o laboratório é um microcosmo de grandes agregações de poder; objetos materiais e artefatos, como fechaduras, incorporam e efetuam normas sociais; grandes instituições sociais, como o capitalismo ou o mercado, são construídas pelos mesmos meios usados 48 SOCIOLOGIAS Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. pelos cientistas para fazerem representações persuasivas da natureza; e a essência da modernidade está em sua dedicação em “purificar” as redes híbridas de natureza e cultura. Latour (2007) constrói ainda uma crítica direta à abordagem de Beck (1995) acerca da globalização, distanciando-se da retórica da urgência e dos imperativos ambientais.

SOCIOLOGIAS 49 Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. existência ao direito, e sua passagem à existência rompeu, e impôs a se reformular, muitas das regras até então concernentes à definição do modo de existência legítimo de uma partícula física. Afirmar que o neutrino tem o modo de existência de um “faitiche”, produto e produtor de uma prática, existente por ela e a fazendo existir, constitui então um primeiro passo que engaja uma saída do horizonte kantiano onde a paz deveria ser “nossa” paz, onde o comércio deveria se limitar aos bens e às ideias, em detrimento dos mundos múltiplos que fazem existir nossos faitiches e nossos fetiches. Stengers, 2003a, p. Stengers, 2003b, p. Como sintetiza Jasanoff: 50 SOCIOLOGIAS Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p.

quando a teoria do ator-rede se confronta com a natureza do poder, como frequentemente acontece, ela se desvia das questões sobre pessoas, instituições, ideias e preferências que são da maior importância política. Quem perde e quem ganha através da constituição da rede? Quais são os benefícios e os ônus (re)distribuídos pelas ou através das redes? (Jasanoff, 2006, p. tradução nossa). Essas são perguntas não bem respondidas por Latour, que visa demarcar a relevância de sua abordagem justamente no distanciamento da crítica como tradição sociológica, na qual o poder exerce papel de categoria central de análise. Nessa abordagem, o ambiente é parte integrante – ou, no vocabulário dos autores, é agenciado – em redes sociotécnicas que emergem e se estabilizam por meio de processos de definição e de resolução de situações problemáticas, como por exemplo os riscos de terremoto ou de inundação.

Cabe ainda mencionar que a linha de pesquisa que, diferentemente do encontrado na maior parte da literatura internacional, faz referência específica ao termo conflitos ambientais, toma por centralidade os mecanismos de resolução de tais conflitos. Tal qual sumarizado por Libiszewski (1993), a corrente de resolução de conflitos ambientais emerge como um desdobramento do campo de resolução de conflitos sociais e segurança, formulado para mitigar causas de violência. Enquanto no Brasil pouco se tem publicado a respeito dessa abordagem e o uso de métodos de resolução de conflitos é bastante incipiente (Viegas, 2009), ainda que em expansão (Acselrad; Bezerra, 2010), em países como Estados Unidos, Canadá, Noruega e Finlândia há muitos registros na literatura sobre o uso de tais instrumentos e discussões sobre as estratégias, categorizadas como procedimentos de negociação direta, conciliação, facilitação, mediação e a arbitragem.

Viegas, 2009). Esta é explicitada por Escobar e Pardo (2005) da seguinte forma: O conceito de biodiversidade tem transformado os parâmetros de avaliação da natureza e as disputas pelo acesso aos recursos naturais. O crescente discurso sobre a biodiversidade é o resultado da problematização do biológico, pois coloca as áreas de floresta tropical úmida numa posição biopolítica global fundamental. Escobar; Pardo, 2005, p. Este discurso da biodiversidade promete, segundo Escobar (1999), salvar a natureza das práticas que causam sua degradação, e em seu lugar instituir uma “cultura de conservação”. Esse autor afirma que esta é uma nova maneira de se falar da natureza, inserida em uma profunda mediação tecnocientífica. Nessa perspectiva, Escobar aponta que a luta pelo território levada a cabo por grupos étnicos é uma luta cultural por autonomia e pela autodeterminação, na qual a mobilização desses grupos para exercer o controle sobre os usos da biodiversidade contida nos seus territórios constitui um fator imprescindível para a sua sobrevivência cultural e política.

Portanto, esses processos são, afirmam Escobar e Pardo (2005), eminentemente conflitivos: tomam forma conflitos sobre como conhecer ou como é conhecida a biodiversidade, e conflitos entre práticas culturais e significados contrastantes. Estaria em curso, nesses casos, uma política cultural da natureza, onde (. atores sociais, moldados ou caracterizados por diferentes significados e práticas culturais, entram em conflito. A noção de política cultural pressupõe que os significados e práticas culturais – nomeadamente aquelas que são teorizadas como marginais, de oposição, minoritárias, residuais, emergentes, alternativas, dissidentes e similares, concebidas por relação a uma ordem cultural dominante – são fonte de processos que podem ser considerados políticos. Ulloa, 2004). A autora afirma que as imagens de um nativo ecológico se converteram em práticas políticas importantes, tanto para os movimentos indígenas quanto para os ambientalistas, estratégia que também permitiu a coalisão destes dois movimentos.

Nessa estratégia, os ambientalistas evocam o nativo ecológico como um ator essencial em seus discursos, enquanto os povos indígenas defendem que sua contribuição cultural aos discursos ambientais é o respeito que têm pela natureza. Contudo, Ulloa (2004) considera que essa identificação dos povos indígenas à ecologia 56 SOCIOLOGIAS Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. está relacionada aos estereótipos que há séculos modulam as representações sociais sobre os indígenas, as quais se vinculam às noções ocidentais de natureza e cultura, situando os indígenas “em relações desiguais de poder, que se assemelham aos processos coloniais”. De la Cadena, 2010, p. tradução nossa). Dessa forma, a autora se alinha aos ESCT, mas com particular influência da proposição cosmopolítica de Stengers (2003a), abrindo pistas para uma profícua análise da prática política e de conflitos que não partem dos pressupostos da separação sociedade e natureza.

Muito pelo contrário, coloca essa separação como parte essencial da análise: O campo político que atualmente reconhecemos como tal não foi moldado apenas distinguindo-se amigos de inimigos entre os humanos, mas também pela separação antitética entre “Humanidade” e “Natureza”. Juntas, estas duas antíteses – entre humanidade e natureza e entre humanos supostamente superiores e inferiores – declararam a extinção gradual dos seres outros que humanos e dos mundos nos quais eles existem. De acordo com Ferreira (2005, p. uma das questões centrais que têm orientado essa área de pesquisas, e que tem sido constantemente reformulada e recolocada, é como e por que se dá a formação de grupos sociais para atuarem em relação à questão ambiental, e qual sua influência sobre a mudança social em direção à conservação e à sustentabilidade no uso dos recursos naturais? (Ferreira, 2005, p.

A autora, ao analisar o acúmulo até então realizado na temática ambiental, constata que a) há definitivamente no Brasil uma arena especificamente ambiental, orientada pelo processo decisório que estabelece normas e regras de utilização de recursos; b) a conservação e a sustentabilidade são parte de um projeto socialmente construído através da tensão entre interesses, interpretações e escolhas tornadas públicas nas diversas arenas estabelecidas nos níveis local, nacional e internacional; c) há hoje uma interação, conflituosa ou não, mas certamente intensa, entre grupos sociais diversos e diversificados, o que tem aspectos muito positivos e outros preocupantes. Ferreira, 2005, p. A arena ambiental brasileira a que se refere a autora já foi discutida em distintas revisões sobre as linhas de pesquisa em ambiente e ciências sociais no Brasil (Vieira, 1992; Alonso; Costa, 2002; Ferreira, 2005, entre outros), cabendo aqui ressaltar o espaço dos conflitos ambientais enquanto campo de investigação nesse contexto.

Para o autor, esse processo emerge da disputa, situada em arenas específicas, entre uma (virtual) pluralidade de versões, embora as condições diferenciadas de participação impliquem vantagens para certos atores e, no limite, o silêncio de outros. Considera, ainda, que a definição dos problemas ambientais seria uma clara demonstração deste processo. Como elemento-chave para compreender a dinâmica argumentativa proposta por Fuks, ressalta-se que essa abordagem estabelece como foco de investigação os processos sociais responsáveis pela emergência de um novo assunto público e as disputas em torno de sua definição. Ainda, considera que a emergência de questões na agenda pública pode ser explicada mais em termos da dinâmica social e política do que pelos atributos intrínsecos dos assuntos em disputa, ou seja, da gravidade “objetiva” dos problemas em questão.

Assim, o sucesso dessa emergência estaria relacionado com os recursos materiais, organizacionais e simbólicos disponíveis para determinado grupo. Além de se situarem em um campo de disputa em torno de casos particulares, nessa abordagem os conflitos constituem também um espaço relevante no processo de elaboração e circulação públicas de versões a respeito do assunto em questão. Nesse contexto, os conflitos ambientais são as arenas específicas em que emergem argumentos aptos a participar da disputa pela definição do ambiente como problema social. Isso significa que as versões elaboradas no contexto das disputas localizadas são, ao mesmo tempo, permeadas e contribuem para a constituição do quadro de referência mais amplo a partir do qual um determinado problema social é elaborado e tratado.

Essas versões são alimentadas pelo que Fuks (2001) denomina “pacotes interpretativos”, que, neste enfoque, fornecem repertórios de recursos retóricos para elaboração de relatos a respeito de eventos significativos. SOCIOLOGIAS Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. para caracterizar processos históricos passados percebidos de forma nova como importantes, tais como “curialização” – designativo da formação das sociedades de corte europeias entre SOCIOLOGIAS 63 Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. os séculos XIV e XVIII – ou “esportificação” – que ganharam o mundo no século XX a partir da Inglaterra do século XIX. Lopes, 2006, p. O sufixo comum a todos esses termos indicaria um processo histórico de construção de fenômenos, associado a um processo de interiorização pelas pessoas e pelos grupos sociais; e, segundo o autor, no caso da ambientalização, ocorreria uma interiorização das diferentes facetas da questão pública do “meio ambiente”.

Essa incorporação e essa naturalização de uma nova questão pública poderiam ser notadas pela transformação na forma e na linguagem de conflitos sociais e na sua institucionalização parcial (Lopes, 2006, p. Entende-se então que é na esfera simbólica que se desenvolve a disputa de legitimidade dos discursos que buscam afirmar suas respectivas capacidades potenciais de operar tal universalização. Acselrad (2004), admitindo também uma postura construcionista, afirma que [. o meio ambiente é uma construção variável no tempo e no espaço, um recurso argumentativo a que atores sociais recorrem discursivamente através de estratégias de localização conceitual nas condições específicas da luta social por “mudança ambiental”, ou seja, pela afirmação de certos projetos em contextos de desigualdade sociopolítica.

Acselrad, 2004, p. destaque nosso). Ainda de acordo com Acselrad (2004), no primeiro espaço se desenvolvem as lutas sociais, econômicas e políticas pela apropriação dos diferentes tipos de capital, pela mudança ou conservação da estrutura de distribuição de poder. No segundo, que seria o espaço das representações, desenvolve-se uma luta simbólica para impor as categorias que legitimam ou deslegitimam a distribuição de poder sobre os distintos tipos de capital. O autor prossegue afirmando que a importância desse tipo de conflitos decorre do fato de eles exprimirem as contradições internas aos modelos de desenvolvimento. Acselrad, 2004; 2005). Salienta que em cada configuração de modelo de desenvolvimento tende-se a encontrar modalidades específicas de conflitos ambientais dominantes, mas que, regra geral, a concentração de posse sobre o elemento da base material da sociedade por meio de grandes projetos de apropriação do espaço e do ambiente tem efeitos de desestruturação de ecossistemas, ao mesmo tempo em que concentra pequenos produtores, populações ribeirinhas e deslocados compulsórios em terras exíguas.

Em seu esforço para, a partir dos processos empíricos, identificar especificidades e características de tais conflitos, os autores elaboram uma tipologia, organizando-os em conflitos ambientais distributivos, conflitos ambientais espaciais e conflitos ambientais territoriais. Contudo, ressaltam que tal categorização atende a fins heurísticos, e que em geral se observa uma dinâmica dialética entre os SOCIOLOGIAS 67 Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. tipos, sendo corrente sua coexistência ou mesmo transformação de suas consequências em conflitos que pertencem a outro tipo. Para Zhouri e colaboradores, os conflitos ambientais são decorrentes da implantação de um “paradigma da adequação ambiental”, oposto ao projeto de sustentabilidade: Isso ocorre porque projetos industriais, concebidos no âmbito de uma política de desenvolvimento voltada para o crescimento econômico com ênfase na exportação, são concentradores de “espaço ambiental” (Opschoor, 1995), gerando, assim, conflitos sociais.

Tais assimetrias na apropriação social da natureza são geradoras de uma má distribuição ecológica e, portanto, originam conflitos ambientais, na medida em que a utilização de um espaço ambiental ocorra em detrimento do uso que outros segmentos sociais possam fazer de seu território (Martinez-Allier, 1999; 2001; Acselrad, 2004). Almeida (Almeida, 1996; 2004; 2009) associa os conflitos ambientais à consolidação de territorialidades específicas, e considera que as mobilizações de conservação ambiental levadas a efeito pelos movimentos sociais na Amazônia significam uma politização do saber sobre a natureza, e por extensão uma politização da própria natureza. Segundo esse autor, dessa forma Abre-se, de maneira mais formal, um novo capítulo de antagonismos e conflitos socioambientais em que os conhecimentos indígenas e das chamadas “populações tradicionais” começam a se constituir num saber prático em contraponto àquele controlado pelos grandes laboratórios de biotecnologia, pelas empresas farmacêuticas e demais grupos econômicos que detêm o monopólio das patentes, das marcas e dos direitos intelectuais sobre os processos de transformação e processamento dos recursos naturais.

Almeida, 2004, p. Atrelada a essa análise está a concepção de que a questão ambiental não pode mais ser tratada como uma questão sem sujeito. Para Almeida (2004, p. Almeida, Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida estão vinculados a um grupo de pesquisadores 70 SOCIOLOGIAS Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p. que se dedicou a analisar socioantropologicamente as questões ambientais na Amazônia. Neste grupo, destacam-se ainda Edna Castro, cujas pesquisas questionam os projetos de desenvolvimento implantados na Amazônia (Castro; Hébette, 1989; Castro; Pinton, 1997; Castro, 2012), e Marcelo Sampaio Carneiro, este fazendo uma leitura orientada pelas formulações teóricas da nova sociologia econômica e discutindo dispositivos de regulação da indústria florestal na Amazônia. Carneiro, 2007; 2008). À guisa de síntese, se pode constatar, portanto, que enquanto Fuks (1996; 2000; 2001) e Lopes (2004; 2006) interpretam os conflitos ambientais como atualizações de antigas disputas, mediante a reformulação de linguagens, sentidos e práticas, nas abordagens propostas por Acselrad (2004; 2005) e Zhouri (2004; Zhouri; Laschefski; Pereira, 2005; Zhouri; Laschefski, 2010) e seus grupos de pesquisa o eixo central da formulação dos conflitos ambientais são relações de expropriação e dominação, frequentemente conduzidas por projetos de desenvolvimento.

fornecem explicações parciais dos conflitos. Uma análise política é incompleta se for unidimensional, seja esta dimensão a economia ou a cultura. Igualmente o é se privilegiar apenas um dentre vários atores em interação, seja a “sociedade civil”, seja o Estado. Alonso; Costa, 2002, p. Esses autores se posicionam a favor de uma abordagem baseada no modelo da ação política contenciosa (Tilly, 1978; Tarrow, 1994), visando compreender uma sociologia da ação sem abrir mão de um enfoque sociohistórico de origem estruturalista. Segundo Carneiro (2009), Pierre Bourdieu é o autor mais referenciado na bibliografia dos trabalhos apresentados, notando-se uma forte propensão a pensar as situações empíricas a partir do papel nelas desempenhado pelas lutas simbólicas pela imposição das ‘divisões de mundo’. Além da influência de Bourdieu, Carneiro acrescenta: Se as elaborações intelectuais de Bourdieu sobre o poder simbólico são as mais presentes no pano de fundo teórico 74 SOCIOLOGIAS Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p.

em que se ancoram as análises apresentadas ao GT, as abordagens mais específicas da “questão ambiental” parecem mais fortemente influenciadas pelas formulações de Henri Acselrad acerca da chamada “questão ambiental” como objeto epistêmico. Com efeito, Acselrad é o segundo autor mais referenciado nas bibliografias dos trabalhos apresentados ao GT [. A terceira autora mais referenciada pelos trabalhos apresentados ao GT, e que, numa perspectiva semelhante à de Acselrad, tem desenvolvido esforços de elaboração conceitual sobre o domínio de objeto do subcampo das ciências sociais dedicado à discussão da chamada “questão ambiental”, é Andréa Zhouri [. Investigar a emergência e configuração de conflitos ambientais, atentando-se às possibilidades de interpretações das relações sociedadenatureza expressas, é em suma concentrar-se nas interações sociais e naturais articuladas durante os conflitos, visando identificar posições e mapear as alianças e coalizões presentes nos embates políticos, mas também observar elementos cosmológicos, identitários e subjetividades subjacentes à configuração dos conflitos.

É, em suma, concentrar-se nas interações sociais, entre humanos e seres outros que humanos articulados durante o conflito, analisando-os em interações e nos movimentos de coprodução nos quais estão envolvidos, salientando as interpretações das relações entre humanos e seres outros que humanos mobilizadas nos conflitos. Pode-se concluir, pois, que a formulação do ambiente como questão sociológica se trata, não apenas da incorporação de um objeto uno a uma disciplina estabilizada, mas de um processo contínuo de reflexão e reelaboração das cartografias disciplinares, nos quais os próprios termos da análise são colocados em jogo e reformulados de forma a abarcar a complexidade das questões em pauta. SOCIOLOGIAS Sociologias, Porto Alegre, ano 16, no 35, jan/abr 2014, p.

Lorena Cândido Fleury. Doutor em Sociologia (UFRGS), pesquisador e diretor técnico-científico da Fundação de Defesa da Biosfera (FDB), Manaus. Pesquisador associado do grupo de pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (TEMAS). premebida@hotmail. com Referências 1. Acselrad, Henri. Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. ACSELRAD, Henri (org. Conflitos ambientais no Brasil. Travessia. maio/agosto, 1996. p. ALMEIDA, Alfredo W. B. ed. Porto Alegre: Editora da Universidade (UFRGS), 1997. p. ALMEIDA, Jalcione. O campo da pesquisa e das ações sobre o meio ambiente. clacso. org. ar/clacso/ gt/20100930023420/7alonso. pdf>. Acesso em: 12 mai. Resolving Environmental Disputes: a Decade of Experience in Resolving Locational Conflict, Lake. New Jersey: R. W. ed. Center for Urban Policy Research. Belo Horizonte, 2005. BUTTEL, Frederick H. A sociologia e o meio ambiente: um caminho tortuoso rumo à ecologia humana.

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