Desvendando sexos, produzindo gêneros e medicamentos: a promoção das descobertas científicas em torno da ocitocina
Tipo de documento:Redação
Área de estudo:Comunicações
Palavras-chave: Sexualidade, Gênero, Ocitocina, Hormônios. Medicamentos, Recebido para publicação em 01 de março de 2016, aceito em 01 de junho de 2016. Este artigo apresenta resultados parciais do projeto “Processos de subjetivação, transformações corporais e produções de gênero via a promoção e consumo de recursos biomédicos” (CNPq), coordenado por Fabíola Rohden. Agradecemos a colaboração de Felipe Cavalcanti Ferrari (bolsista de iniciação científica). Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS Brasil. E são exatamente eles que são encontrados em farmácias nos EUA e em perfumarias de Paris e São Paulo (Glamour, fevereiro 2013). “The hormone that makes love and relationship possible ” (slogan do medicamento Oxytocin Factor.
Site Oxytocin Factor [https://www. oxytocinfactor. co/ - acesso em 19 fev. Em uma clara tentativa de estender seus benefícios e seu campo de atuação “para além” da formação do vínculo amoroso entre mães e seus bebês, uma ampla gama de vantagens da ocitocina se difunde nas notícias. Títulos tais como “Muito além do hormônio do amor” e “Muito além do hormônio do prazer” traduzem os esforços para extrapolar o domínio de sua agência para “muito além” do prazer sexual. O amplo espectro de benefícios da ocitocina promete a melhora de capacidades emocionais, sociais, sexuais e físicas, as mais diversas. Os aspectos emocionais e sociais vão desde a regulação e melhora de estados de humor tais como ansiedade, irritabilidade, estresse, depressão pós-parto; e passa pelo incremento de sentimentos de contentamento, calma, 1 A ocitocina é um hormônio produzido no hipotálamo que foi isolada e sintetizada pela primeira vez em 1952, por Vincent du Vigneaud, da Weill Cornell Medical College em Nova York, cujo feito rendeu-lhe o Prêmio Nobel de Química em 1955.
cadernos pagu (48), 2016:e164802 Desvendando sexos, produzindo gêneros e medicamentos segurança/autoconfiança na relação com o parceiro, autoestima, reconhecimento da fisionomia de pessoas conhecidas e, até mesmo, a promoção da bondade entre as pessoas. O advento do Viagra é revelador de mudanças significativas na configuração da masculinidade como campo passível de medicalização. Veremos como elas estão intimamente relacionadas a mudanças na perspectiva sobre o próprio desejo sexual, feminino e masculino. É justamente nesse momento que os discursos sobre a ocitocina emergem com toda força. Quando se trata de seus nexos com a dimensão do prazer sexual, a promoção da ocitocina como novo medicamento também se direciona ao público masculino. Nesse aspecto, as notícias sobre ocitocina permitem refletir sobre o modo como diferenças de gênero são (re)produzidas nas narrativas acerca do corpo hormonal e da sexualidade de homens e mulheres.
cadernos pagu (48), 2016:e164802 Fabíola Rohden e Fernanda Vecchi Alzuguir tecnologias específicas já existentes no mercado, mas também a promoção pública de conceitos, ou poderíamos chamar de artefatos ideacionais ou culturais, que tornam possível a existência de novas produções ou associações. Essa preocupação remete a uma discussão importante não apenas para os estudos de gênero, sexualidade e saúde, mas também para as investigações centradas na ciência e na tecnologia. Trata-se da questão mais geral acerca da produção de novos artefatos tecnológicos e sua relação com dimensões identitárias e subjetivas. A forma como diferentes desenvolvimentos tecnocientíficos, desde os diagnósticos até os fármacos, se articulam com valores sociais e marcadores identitários em nossa sociedade ainda está por ser mais bem explorada.
Uma referência exemplar nessa direção têm sido os trabalhos de Oudshoorn (1994; 2003; 2004; Oudshoorn; Pinch, 2003). Caberia às investigações compreenderem as categorias de identidade enquanto “efeitos, de instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos” (Butler, 2003:9, grifo no original) em um quadro no qual o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória são definidos como referências centrais. Em termos pragmáticos, é importante lembrar, que só é possível acessá-las através da performatividade do gênero, que se 4 Rose também pondera os limites ou a falta de atenção da Teoria Ator Rede (ANT) para a consideração das formas de subjetividade (Spink, 2010). cadernos pagu (48), 2016:e164802 Fabíola Rohden e Fernanda Vecchi Alzuguir define pela “prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia” (Butler, 1999:154).
Para o caso aqui analisado, estamos partindo do princípio de que os discursos em torno da ocitocina e de outros hormônios, como a testosterona, fazem parte desse arsenal de reiteração do gênero, em construção contemporaneamente. O interesse particular nesse tipo de objeto se dá em função de como a valorização da ciência e de novas possibilidades de consumo tecnológico, transformação corporal e aprimoramento estão sendo colocadas em cena. E, diante da não aprovação do Viagra para melhorar o “transtorno de excitação” em mulheres, a reorientação para o tratamento do “transtorno do desejo sexual hipoativo”. Além disso, tanto para homens quanto para mulheres, a testosterona passa a ser promovida como fonte de “melhoramento” não apenas do desejo, mas também como recurso destinado a prevenir e tratar condições muito genéricas como stress, cansaço, falta de energia, gordura, perda de massa muscular ou mesmo envelhecimento (Rohden, 2009; 2011).
É curioso, portanto, que a testosterona, apresentada como “o hormônio masculino” por excelência e promessa de solução de quase todos os males, passe a dividir as atenções com a ocitocina, tradicionalmente associada a processos fisiológicos femininos, no contexto do parto e de amamentação. Essa constatação inicial é que nos chamou a atenção e motivou uma busca sistemática pelas referências ao “hormônio do momento”. A pesquisa foi realizada em diversas frentes que podem ser agrupadas em duas grandes linhas. Um dos fatores implicados nesse processo é a conformação de uma espécie de obrigação moral de estar sempre informado/a acerca dos novos recursos disponíveis e ser capaz de utilizá-los, em nome de valores um tanto genéricos como satisfação, bem-estar, qualidade de vida, que são corriqueiramente traduzidos em referências numéricas ou gráficas, como taxas hormonais, por exemplo (Rohden, 2012).
É necessário acrescentar que buscamos informações publicadas no Brasil porque nosso interesse está em investigar de que forma esse conjunto de narrativas se articula com a produção de determinados efeitos ou engajamentos locais. Mesmo que muitas vezes as notícias façam referência ao contexto internacional, trata-se de perceber como está sendo rearticulada nas publicações e sites brasileiros. Uma preocupação particular diz respeito ao fato de que muitas vezes os veículos de comunicação e cadernos pagu (48), 2016:e164802 Desvendando sexos, produzindo gêneros e medicamentos sites aqui analisados são utilizados como referência atualizada para estudantes, professoras/es ou mesmo para o público em geral, sem a devida apropriação crítica, para a qual gostaríamos de contribuir. Sobre o conhecimento produzido no interior dessa rede, destacamos o papel crucial da insistente referência, no conteúdo de grande parte dos sites e blogs, a estudos clínicos e pesquisas científicas, sobretudo internacionais, como recurso de legitimação dos argumentos.
De acordo com esse raciocínio, levado às últimas consequências no conteúdo das notícias, se não fosse o mecanismo hormonal de produção da satisfação, também chamado de “sistema de gratificação”, tanto na relação sexual entre homens e mulheres, como naquela que envolve mães e bebês, as condições para a reprodução e para criação dos filhos, no período de dependência absoluta dos pais, seriam inviáveis. Sugerimos que o apoio na corrente evolucionista favorece uma aproximação entre sexualidade e reprodução biológica como domínios interligados. Aludindo à pesquisa com animais e humanos, afirma-se que o pico de ocitocina durante a relação sexual é responsável pela intensificação do orgasmo feminino a níveis “estratosféricos” ou à produção dos “orgasmos múltiplos”.
Como ilustrado na descrição a seguir, retirada do blog “Esquentando o Clima” da revista Glamour, que aborda temas como relacionamentos, amor, prazer e sexo: Durante o orgasmo, os níveis de ocitocina masculino quintuplicam, mas isto não é nada em comparação com os níveis de ocitocina feminino. Mulheres precisam de mais ocitocina, se quiserem chegar a um orgasmo e durante o pico da excitação sexual, os níveis de ocitocina chegam a níveis estratosféricos. Isso pode ser verificado em várias referências explicitas acerca do efeito da ocitocina em acalmar ou tornar os homens menos agressivos. Ilustrando essa questão, segue um trecho de uma matéria do jornal Gazeta Online, que abre com o seguinte subtítulo “Hormônio tem o poder de acalmar os homens e potencializar a sexualidade feminina”: Então, se a oxitocina pode acalmar os ânimos masculinos durante uma briga de casal e aumentar a libido feminina, deixando a mulher mais disposta a dar e receber amor, quem é capaz de negar que ela é capaz de fazer milagres em um relacionamento? (Fafá, Gazeta Online, dezembro 2011).
O depoimento acima resulta de um estudo realizado pela Faculdade de Medicina e Ciências Farmacêuticas de São Paulo, da Universidade de São Paulo (USP), em que um grupo de homens inalou oxitocina em spray antes de falar em público, mostrando-se, depois disso, mais calmo e seguro do que o grupo que havia inalado placebo. De acordo com a matéria, isso mostra que: “. o hormônio pode deixar os homens mais seguros e calmos e aliviar a tensão” (Fafá, dezembro 2011). Nesse aspecto, a ocitocina, em sua apresentação artificial, parece agir justamente suprindo a atividade “naturalmente” diminuída do sexo para mulheres e da capacidade de amar e de ser fiel dos homens. Promete, assim, em última instância a promoção da durabilidade e da estabilidade da relação conjugal.
O investimento na relação conjugal monogâmica aparece de maneira bastante evidente, por exemplo, na seção Ciência e Saúde do portal de notícias do Uol. O título da notícia já chama a atenção: “Hormônio do amor faz homens verem suas mulheres cadernos pagu (48), 2016:e164802 Fabíola Rohden e Fernanda Vecchi Alzuguir como mais atraentes”. Seguindo o padrão de apoio em “estudos científicos” para legitimar as afirmações, a matéria inicia com a seguinte frase de impacto: “A ocitocina conhecida como ‘hormônio do amor’ tem papel importante na fidelidade masculina e na monogamia, aponta estudo realizado na Universidade de Bonn nesta segunda feira” (Uol Notícias: Ciência e Saúde, novembro 2013). Pela causa justa de estimular a reprodução das espécies, valeria a pena superativar o cérebro, deixando-o à beira do esgotamento” (Oliveira e Paparounis, Super Interessante, novembro 1993); “O barato total: O amor romântico existe, causa deliciosas reações químicas e pode até criar dependência” (Veja, junho 1993); “Ciência do desejo” (Petta, Super Interessante, junho 1996); “A fusão dos corpos, sexo: O ato sexual é o momento decisivo para a sobrevivência da espécie.
E um dos mais maravilhosos, também. ” (Super Interessante, outubro 1999); “Amor no laboratório: Eles já mapearam parte do estrago que ele causa ao nosso cérebro e até encontraram um hormônio que seria um verdadeiro elixir do amor. ” (Soalheiro, Super Interessante, outubro 2003); “Sexo no laboratório: A surpreendente história das pesquisas científicas sobre aquilo que muita gente faz, mas poucos sabem como funciona” (Costa, Super Interessante, agosto 2008); “Amor – O Início: Você perde o sono, a fome, sobe às nuvens e sente a vida virar de ponta-cabeça. Mas o que, afinal, faz com que uma pessoa se apaixone por outra?” (Callegari, Super Interessante, maio 2010); “10 perguntas curiosas sobre orgasmo: A conspiração física e emocional que leva multidões ao delírio” (Super Interessante, agosto 2012); “A química do amor” (Yarak e Rosa, Veja, cadernos pagu (48), 2016:e164802 Fabíola Rohden e Fernanda Vecchi Alzuguir junho 2013); “A química da paixão” (Rochedo, Super Interessante, maio 2015).
Com o sugestivo título “Farmácia do prazer”, o texto apresenta todos os novos investimentos dos laboratórios farmacêuticos em prol dos tratamentos para as disfunções sexuais. O destaque evidentemente é dado ao Viagra, fazendo referência inclusive aos testes, em curso naquele período, para utilização desse medicamento por mulheres. Contudo, no quadro mais geral que apresenta todos os recursos, temos exatamente os projetos que viriam a se concretizar mais tarde. Ocitocina e testosterona aparecem então como promessas entrando em cena: Gotas de potência A apomorfina, usada normalmente contra o mal de Parkinson, se instala nos receptores de células cerebrais ativando a produção do hormônio oxitocina. A oxitocina viaja pela corrente sanguínea até o pênis, provocando o relaxamento dos vasos e do corpo cavernoso.
A possibilidade desse plano maquiavélico foi defendida recentemente pelo pesquisador americano Larry Young, da Universidade Emory, num artigo na prestigiosa revista científica britânica Nature. Young já tem até os nomes de alguns possíveis ingredientes: os hormônios vasopressina e oxitocina, encontrados em humanos e em vários outros mamíferos (Lopes, Super Interessante, maio 2009). Já na matéria da Veja de maio de 2010, revelava-se que avanços da neuroquímica possibilitaram perceber que o funcionamento da “substância do amor” vai além da relação mãe cadernos pagu (48), 2016:e164802 Desvendando sexos, produzindo gêneros e medicamentos e filho, indicando que ela também alimenta laços de amizade e o amor romântico, na verdade traduzido em termos de sexo e orgasmo. Nessa linha de descobertas, anunciava-se que a ocitocina estaria à frente de duas medicações: uma para o aumento da libido feminina (“Viagra feminino”), com previsão de chegada ao mercado até o fim daquele ano; e a outra para o uso em crianças autistas, de modo a aumentar a afetividade e facilitar relações.
No ano seguinte, a Veja publicou uma extensa matéria sobre o tema, destacada em sua chamada de capa, que mostrava um casal heterossexual nu se abraçando: “Oxitocina: O hormônio que intensifica o amor e aquece o sexo” (Lopes, novembro 2011). Lopes, 2011:112) Em 2012, temos, dessa vez na Super Interessante, a edição da reportagem “Amor de farmácia: como a ciência está metendo o bedelho nos relacionamentos”, que anunciava: Um remédio que chegou há pouco tempo às farmácias americanas é o novo passo da ciência na busca do amor eterno. E não é só. Especialistas acreditam que já é possível acabar com a traição. Para tudo isso, basta manipular os hormônios e genes certos (Castro; Van Deursen, novembro 2012). O texto relatava como um grupo de cientistas tem estudado o aumento no número de divórcios nos Estados Unidos e associado esse fenômenos a causas hormonais em sintonia com a perspectiva evolucionista e o fato de não sermos preparadas/os biologicamente para relações tão duradouras.
Além disso, há um quadro que pressupomos assinado pelos jornalistas responsáveis, intitulado “Dias de ocitocina: Experimentamos a droga do amor. Veja como foi”, com o seguinte relato: Ela tem sabor de menta. Para fazer efeito, você precisa pingar seis gotas embaixo da língua ou apertar o spray uma vez em cada narina. Após dez minutos, a droga começa a surtir efeito, que dura até quatro horas. Em pouco tempo, o braço amolece e o coração desacelera. Amor é Rivotril”, publicada em maio de 2013, temos uma nova versão da descrição de paixão cadernos pagu (48), 2016:e164802 Fabíola Rohden e Fernanda Vecchi Alzuguir e amor em termos evolutivos e traduzidos em determinadas substâncias. Segundo o texto, a paixão é um instinto desencadeado pelas descargas de dopamina, “a mesma substância que a cocaína ativa no cérebro”.
E continuando: “Essas descargas, do ponto de vista científico, existem por um único motivo: fazer você produzir filhos”. Ou, em outros termos “passar os genes adiante, de preferência na companhia dos melhores genes disponíveis no mercado”. Mas a paixão seria uma “montanha-russa química” extenuante demais para qualquer organismo. É interessante notar que essas últimas matérias citadas fazem, portanto, referência a uma ideia mais precisa do amor como substância, como elemento bioquímico, como medicamento – ou até mesmo mais precisamente, como um ansiolítico. Se em uma primeira fase tínhamos as matérias preocupadas em explicar cientificamente o amor, agora estamos percebendo uma nova ênfase na sua tradução em termos farmacológicos. Essa transformação pode ser muito bem ilustrada pelo contraste entre dois títulos de reportagens publicadas na Super Interessante.
Se antes o foco era o “Amor no laboratório” (Soalheiro, outubro 2003), mais recentemente passa a ser o “Amor de farmácia” (Castro; Van cadernos pagu (48), 2016:e164802 Desvendando sexos, produzindo gêneros e medicamentos Deursen, novembro 2012). Trata-se, assim, não apenas da referência a distantes descobertas no laboratório ou a explicações científicas, mas sim do acesso a algo que pode ser consumido e modificar os comportamentos, remetendo, dessa forma, à ciência no quotidiano ou mesmo à ideia de promoção de uma autoajuda científica (Fonseca et al, 2012; Rohden, 2012). Os hormônios comandam tudo Para além do que já foi descrito, como uma espécie de novo capítulo de referências à ocitocina, percebemos cada vez mais nos discursos analisados uma preeminência dos hormônios como explicação não só para as doenças ou problemas, mas também como fontes de solução e aprimoramento.
Dentre os possíveis benefícios do uso da ocitocina artificial, para além daqueles associados ao “amor” e ao prazer sexual, estariam o aumento da confiança e da capacidade de relacionar-se com outras pessoas, como mostrariam os estudos com a indicação para o autismo, por exemplo. Há também referências às possibilidades de tratamento do alcoolismo, já que os efeitos da ocitocina teriam semelhanças com os efeitos do álcool. Entretanto, algo mais recorrente parece ser a menção aos seus benefícios e possibilidades na ajuda ao emagrecimento ou mesmo, mais precisamente, na inibição do consumo calórico, além do combate ao envelhecimento (Zak, setembro 2009; Veja, junho 2012; Lopes e Cuminale, agosto 2012; Musculação Total, dezembro 2012; Nogueira e Gastaroni, dezembro 2012; Veja, dezembro 2013; Zero Hora, abril 2014; Mente e Cérebro, junho 2014; Padalino, fevereiro 2015, Fontanive, março 2015; Penchel, maio 2015; Mente e Cérebro, novembro 2015).
Esse tópico aparece em muitas fontes, sobretudo nas notícias mais recentes. Essa reportagem é exemplar dos discursos mais contemporâneos também porque aparece encabeçada pelo rótulo “Romântico e funcional”, fazendo referência ao chamado hormônio do amor. Esse par de adjetivos sintetiza o que já temos descrito acerca das representações da ocitocina como tradução (e causa) bioquímica das relações afetivas, por um lado, e por outro indica a nova ênfase na ideia de funcionalidade. Essa mudança pode ser interpretada em termos de uma correspondência quase direta com o que argumenta Marshall (2010), como veremos adiante: se envelhecer poderia ser considerado normal até certo cadernos pagu (48), 2016:e164802 Fabíola Rohden e Fernanda Vecchi Alzuguir tempo atrás, hoje em dia trata-se de um processo disfuncional que merece ser tratado ou evitado.
Passando das notícias em revistas e jornais para o campo dos sites de profissionais da saúde, selecionamos o blog da Médica Paula Taciana Figueiredo, chamado “Saúde e bem-estar”, já que é bastante ilustrativo de uma definição ampla tanto dos sintomas da falta quanto dos benefícios de uso da ocitocina. No artigo “Ocitocina: mais que apenas o hormônio do prazer”, publicado em junho de 2012, ela apresenta os importantes efeitos psicológicos e físicos dessa substância nos organismos de homens e mulheres. A primeira diz respeito ao processo de transformação desse hormônio em recurso disponibilizado na forma de medicamento. Como vimos, em boa parte das matérias mais recentes, há menções inclusive aos próprios produtos já disponíveis no mercado. Não podemos afirmar que há simplesmente uma correspondência direta entre os interesses do mercado farmacêutico e a divulgação desse tipo de notícias.
Porém é possível notar com nitidez que há um movimento de criação de expectativas em relação às possibilidades de utilização de um artefato desse tipo. Essa constatação está em sintonia, por um lado, com o progressivo aumento de medicalização da sexualidade de homens e mulheres respaldada pelo advento e estrondoso sucesso de mercado dos medicamentos para disfunção erétil e das projeções em torno das novas drogas para disfunção sexual feminina. Trata-se do que poderíamos chamar de uma administração bioquímica de si, na qual as possibilidades de aprimoramento e satisfação estão subsumidas ou necessariamente associadas ao uso de artefatos farmacológicos. Nessa direção, pode-se conceber que é preciso uma dose extra de testosterona para que as mulheres possam chegar aos níveis “ótimos” masculinos, de desejo, potência ou energia sexual.
Da mesma forma, os homens poderiam se beneficiar de algumas borrifadas de ocitocina no nariz, de modo a produzir um nível mais funcional de calma, proximidade e acolhimento. Essas possibilidades de uso dos hormônios, admitidas e viáveis dentro de um panorama mais geral de medicalização da sexualidade e privilégio ao aprimoramento, podem parecer indicar certo borramento das fronteiras entre os sexos. Contudo, se considerarmos mais atentamente os discursos analisados, percebemos o peso maior atribuído às diferenças concebidas como inatas. Ou de que se as diferenças e os relacionamentos seriam definidos em termos tão moleculares, seria difícil atribuir valores diferenciais. Contudo, a partir do que vimos acerca da ocitocina e da testosterona, embora seja concebível um acréscimo externo para melhorar a performance de homens e mulheres, no que diz respeito ao que define a existência de cada um, continua sendo privilegiado aquilo que é compreendido como uma diferença inata, original e de cuja manutenção depende inclusive a reprodução da espécie.
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