4 questões sobre crítica literária
Tipo de documento:Questões e Exercícios
Área de estudo:Literatura
Quando um estudioso como Wolfgang Iser cria uma disciplina chamada “antropologia literária”, ele se refere àquela literatura ampla, que inclui todas as manifestações da linguagem que se voltam para o estético, mas sobretudo a narrativa. Quando o senso comum fala em literatura, pensa sobretudo naquelas obras impressas, que fazem da linguagem forma de entretenimento e de satisfação de um gosto subjetivo. Tanto em uma como em outra, a linguagem fica a serviço, não é razão de si mesma. O que uma obra que tem como intenção definir e delimitar o que seja literatura empreende é uma tarefa de natureza redutora. Aquilo que desde a Antiguidade tem sido incluído no conceito passou por um processo de expurgamento, desde que se passou a teorizar sobre literatura.
Nem tudo que está nessas estantes é literatura. Assim como tanta obra contida nos livros didáticos sobre isso é má literatura. Eagleton precisa definir para delimitar; mas, em seguida, para que se percebam que há critérios de valor. A fluidez do conceito de literatura fica parecendo, nas palavras de Eagleton, algo que pode ser visto como ingenuidade de épocas passadas. Ou como forma de valorizar uma ação que era feita, sobretudo, pela classe letrada e era objeto de culto. A grande obra busca efeitos estéticos complexos. É a mesma oposição que Umberto Eco faria depois, ao separar enredo de fábula, e dizer que esta última prepondera sobre o primeiro. Literariedade, assim, seria a elaboração estética da língua, que faz de si mesma o seu critério primordial.
O valor da obra literária estaria no reconhecimento dessa elaboração como algo novo, capaz de causar estranhamento, de não cair em formatos já vistos. Não se pode ser ingênuo: esses elementos são firmes como as bases do Empire State. São critérios de valor que permanecem sendo admitidos por quem faz crítica literária. A crítica está atenta a esse processo de inclusão do altamente elaborado, em detrimento do que era feito por razões não estéticas. Essa literariedade foi critério de valor ao longo de décadas. Tem passado por reformulações, a partir dos Estudos Culturais. Mas ainda é ela que orienta as resenhas vistas diariamente na mídia. Aquele público que vai à loja para comprar um quadro para decorar sua sala, e que está pensando unicamente na beleza sensível da coisa representada, não está interessado em elaboração estética; esse público pensa na beleza de tulipas ou cavalos como coisa representada; a representação, como linguagem artística, não interessa a ele.
Esse público persegue uma certa transparência da linguagem da pintura, que torne a coisa representada imediatamente reconhecível. Pintura, para ele, é objeto de decoração. Para aquele que entende de pintura, como arte valorizada e que formou um cânone, essa atitude significa a de quem não possui formação estética. Culpa do capitalismo ou da escola, tanto faz. Afinal, essa obra é vendida em livrarias e publicada por grandes editoras. Mas Miranda não está falando do convívio dessas obras que são grande sucesso, produzidas com intenção de venderem muito e darem lucro a quem as escreve e edita, com aquelas que compõem o cânone (ou ainda não) e que são escritas tendo como intenção a produção de efeito estético.
Esse efeito estético pode desagradar ao público, pode ser considerado de difícil assimilação. Miranda também não está se referindo a obras produzidas para serem literatura canonizada e que, por algumas especificidades, acabam se tornando sucessos de público. Caso, por exemplo, de Margaret Atwood. O filme dela é passado no mesmo cinema em que o dele e atrai maior quantidade de público, mas o cineasta provavelmente não o reconheceria como arte. Sim, ambos os filmes seriam obra cinematográfica. Uma dela, má obra, provavelmente. Da mesma forma, é difícil supor que o autor do livro reconhecido como um clássico da língua leia o volume de narrativas de faroeste vendido em banca de revista. Afinal, mesmo quando se fala na produção comercial, o que se tem em mente é o livro publicado pela grande editora e vendido no mundo inteiro nas grandes redes de lojas.
A ideia de que mímesis é, antes de qualquer outra possibilidade de definição, cópia do real é uma daquelas manifestações do senso comum que Antoine Compagnon aborda em O demônio da teoria. Há na obra um capítulo intitulado “O mundo”, em que essa crença no atrelamento da literatura, sobretudo da narrativa, ao real como manifestação do mundo é posta em discussão. Compagnon aborda inúmeras dentre as teorias que veem esse atrelamento como convenção mas não como condição incontornável. Representar o mundo fica sendo uma convenção que leva a exageros por parte de quem lê obra literária, seja o leitor comum ou o crítico. Uma convenção que leva a incompreensões daquilo que constitui, efetivamente, a intencionalidade de cada obra literária em si.
A literatura brasileira já foi vítima dessa visão limitadora. Exemplo notório foi a recepção negativa que os contos de Graciliano Ramos, em Insônia, tiveram por parte de críticos que não viam neles o real como enredo que reproduz o mundo (aquele mundo conforme entendido pelo senso comum, é verdade). Da mesma forma, a ironia de Clarice Lispector, em A hora da estrela, ao fazer o narrador afirmar que apenas escritores homens são capazes de falar da realidade nacional, como da miséria e das condições de vida dos nordestinos, funciona como uma resposta a esses leitores (sejam ou não críticos) que esperam da narrativa literária a representação realista do mundo. A relação entre o escritor e sua época tem evidenciado que a literatura aborda questões prementes do mundo em que o escritor se insere.
É algo que se torna recorrente, embora não seja uma regra ou algo incontornável. No entanto, pode-se dizer que a pós-modernidade tem voltado a esperar pela representação do mundo. Novamente, não pode ser uma exigência que se faça ao artista. A literatura brasileira produziu inúmeros exemplos de modos de representar a realidade. E esses modos, muitas vezes, não estavam em sincronia com seu momento histórico. A estética realista dos romancistas nordestinos da década de 1930 é um exemplo de como um artista pode estar descompassado em relação ao seu momento histórico, pensando-se aqui que existe um conjunto de estéticas que o refletem. A provocação lançada por Compagnon leva a rever o senso comum a respeito de como o mundo é representado na literatura.
Deveria levar a rever também o modo como essa representação acaba se tornando expectativa pelo leitor. Compagnon toma como princípio organizador de sua obra O demônio da teoria o embate entre pontos-de-vista acerca daqueles temas que ele próprio define como “senso comum”. Na verdade, Compagnon está chamando de senso comum o conjunto de conceitos que os estudos literários vêm adotando, desde a Antiguidade. Falar-se em “clássico”, em “originalidade”, em “grande escritor” já pressupõe um reconhecimento, por parte daquele que recebe o texto sobre literatura, do que se quer dizer. O que seria, afinal, a literatura? O que seria o Belo, objeto da experiência estética? Se todos os conceitos vão aparecendo como relativos ao longo da obra, uma definição de literatura ou de Belo fica sendo uma nova provocação.
Afinal, parecia pertencer ao senso comum a ideia de que a arte tem como objetivo o Belo. A literatura, como arte, teria o Belo como objetivo. Ao contrário de outras formas de julgamento, como o moral, julgar algo como Belo pressupõe o desinteresse. Aliás, um “interesse desinteressado”. Assim, a pintura vendida em feiras-livres seria arte, seria pintura, mesmo que não fosse grande pintura. Da mesma forma, a música seria arte, mesmo que criada a partir de finalidades que façam da experiência estética algo secundário, como a música religiosa ou institucional. O que dizer da literatura? Seria a arte da palavra, o uso estético desta, ainda que motivada por razões que prevaleçam sobre ela. A literatura inclui todas as suas manifestações, sejam a boa ou a má.
A ação de produzir texto literário cria literatura, assim como a de pintar cria pintura e a de compor cria música. Em tantos casos, o encontro das duas características. Mesmo assim, ainda se está no âmbito do relativismo. É o que faz com que conceitos como os de pureza, estranhamento, opacidade da linguagem, tão caras à teoria e à crítica, sejam desconhecidos ou vistos como defeitos estéticos por certa parcela do público. Aquele público cuja experiência estética se compraz com o kitsch, para se usar um conceito caro à crítica de arte em geral, evita o estranhamento, e procura a experiência já convencionada: é preciso que cada novo sucesso do artista de massas corresponda à expectativa de quem compra o seu produto; que o final do filme não decepcione quem está acostumado àquele gênero cinematográfico, entre outros.
Da mesma forma, a opacidade da linguagem literária, apontada por Paul Valèry ou por Michel Lefebve, torna-se um elemento que certo público compreende como obstáculo à recepção estética. Mesmo que filósofos como Adorno ou Benjamim os vissem como leituras nocivas, que deseducam esteticamente o leitor. Se essa literatura é periférica ou marginal, e se é errôneo classifica-la como tal, é algo que demanda uma posição não apenas de quem lê tais obras, como da crítica ou da teoria literária. Ou, quando se chama de “errôneo” classificar tal produção como marginal, tem-se em mente a “grande obra” voltada ao público menos afeito às obras “canônicas”, “consagradas”, “representativas”, ou seja, àquela que vende milhões de exemplares, é adaptada para outras mídias, mas não o fascículo de séries que nem ao menos chegam às livrarias? Tolkien seria literatura, mas o desconhecido que escreve um livro por semana e se sustenta disso não o seria? Haveria, novamente, um cânone para as obras que a tradição crítica enxerga como não pertencentes à literatura, como descartáveis, e que demandaria o surgimento de um novo segmento da crítica especializada? Ou esse novo cânone também se referiria a obras vistas como respaldadas por grandes redes de livrarias, mas nunca incluiria aquelas narrativas que são vistas como as mais descartáveis e de elaboração mais rala? Novamente, se uma classe mais abastada lê, aquela leitura acaba tendo respaldo.
O critério não seria intrínseco. O que se percebe, por fim, nesses esforços para que o cânone se expanda e inclua modalidades que a literatura têm tratado como kitsch, produtos sem intenção de produzir o Belo, mas voltadas ao comércio, é uma nova relativização dos critérios que definem o que não é ou não obra literária.
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