A CONFISSÃO DA LEOA: MIA COUTO E A IMAGINAÇÃO COMO ESTÍMULO AO JOVEM LEITOR

Tipo de documento:TCC

Área de estudo:Literatura

Documento 1

O eixo se estende, ainda, aos estudos da pós-modernidade e do pós-colonialismo, com Maffesoli (2003), Durand (2002), Deleuze (1997) e Santos (2010). Palavras-chave: Literatura africana; formação leitora; cultura popular; imaginário; pós-modernidade. INTRODUÇÃO Representantes de países ainda periféricos, considerando a cultura eurocêntrica e o domínio colonial, Brasil e Moçambique têm em comum, em sua história, o domínio português, criando marcas de subalternidade perceptíveis a partir de uma leitura crítica da história. Embora haja essa afinidade linguística, a literatura africana em Língua Portuguesa ainda é pouco difundida no Brasil, especialmente entre os jovens em idade escolar. Entendemos que essa literatura, ao acionar o imaginário de um país em tantos aspectos irmanados com o Brasil - haja vista o contingente de negros africanos tornados escravos cujos descendentes viriam a constituir parte importante da população de nosso vasto país - possa ser significativa para ampliar o universo cultural dos nossos estudantes, despertando para questões de conhecimento histórico e político, bem como acionando um imaginário lúdico, permeado por lendas e seres ancestrais desse encantador continente.

Não é mais o caso de ser otimista ou de ser pessimista, mas de observar o mundo tal qual ele é. Essa visão que, de certa forma, surpreende ao negar o pessimismo que cerca as reflexões acerca de sociedade, tecnologia e novas gerações, aponta o caminho para uma produção literária que possa se colocar em sintonia com novas formas de relação social, ou seja, que traduza aspirações desses sujeitos contemporâneos que, frente a mudanças decorrentes do próprio esgotamento de modelos de vida característicos das sociedades capitalistas, e já insustentáveis do ponto de vista planetário, possam se reconectar a imaginários latentes, estes que trazem de volta o lúdico, o mítico, o tribal. A relação entre o pensamento de Maffesoli (2003) e a obra de Mia Couto (2012) veremos adiante, bem como o cruzamento com as teorias da pedagogia acerca da compreensão leitora e da formação de leitores autônomos nestes novos tempos.

O autor e sua obra Um dos maiores escritores contemporâneos em atividade, Mia Couto é autor de uma extensa obra em que se sobressaem o lirismo e o engajamento, em especial com as questões de sua terra natal, Moçambique. Nascido a 5 de julho de 1955, em Beira, Antônio Emílio Leite Couto é filho de um jornalista e poeta português. Talvez resida na habilidade poética sua capacidade de fazer com a prosa textos muito bem cuidados, de uma estética primorosa e lírica, que funde os vocabulários de várias regiões africanas de forma experimental. Estudante de Medicina por um período, tendo trocado por Jornalismo e se formado também em Biologia, anos mais tarde, Couto viveu paralelamente a suas buscas íntimas um ativismo intenso junto à Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), na luta anticolonial, pela independência, que viria somente em 1975, com o custo de muitas vidas.

Seu primeiro livro foi publicado em 1983, Raiz de orvalho, seguido de diversos outros títulos em pouco tempo, e a conquista de traduções para o alemão, o italiano, o espanhol, entre outros idiomas. Cenas da guerra civil que se seguiu à independência são descritas nos seus primeiros poemas. Com a evolução de sua escrita, o engajamento se torna menos panfletário e mais universal no que tange aos temas humanos envolvidos. A leitura ajuda a despertar uma série de habilidades e competências, mas o modo como é inserida fará diferença no aproveitamento. Precisa ser explorada de forma planejada e bem direcionada ao perfil de cada turma, considerando a presença de desníveis cognitivos entre esse público. De acordo com Silva e Fachin (2002, p.

é importante trabalhar as habilidades de leitura e escrita em espaços preparados para agregar mais entusiasmo aos aprendizes. O trabalho dos profissionais de educação também requer o conhecimento de recursos pertinentes à exploração da ludicidade, do brincar aprendendo, do desenvolver potencialidades escondidas (SILVA; FACHIN, 2002). A proposta do texto é servir de inspiração para educadores mais preparados para as demandas desse futuro que se faz agora. Esse aspecto discutido por Morin (2000) é coerente com a apresentação de uma obra que representa a literatura africana em seu caráter de emergência de saberes desconsiderados pelas sociedades hegemônicas de matriz europeia, como é o caso de A confissão da leoa (COUTO, 2012). O pensamento de Morin pode ser colocado em diálogo com outras referências da pedagogia, como Paulo Freire e Lev Vygotsky.

Freire nasceu no mesmo ano de Morin (1921) e foi, portanto, um contemporâneo, o que torna compreensível a afinidade entre suas ideias. Vygotsky, bem anterior, (1896-1934), segue como referência em desenvolvimento humano pela relevância de seus estudos e demonstra ter contribuído com os dois intelectuais por sua visão holística da formação, no âmbito da psicologia do desenvolvimento. Colocada essa afinidade intercultural, Morin (2000) lembra da importância da literatura como um aprendizado essencial, uma vez que é um exercício de empatia, forma de acesso à complexidade e à poesia essencial para o enfrentamento da vida. A obra de Couto é feliz em apresentar diferentes versões para um mesmo fato, contemplando essa multiplicidade de perspectivas que torna mais humanizante o ato de leitura. Neste sentido, e coincidindo com um momento em que a diversidade está no centro de muitos debates sociais, é importante que a formação de leitores também possa refletir a diversidade em questão.

As muitas culturas que constituem o mundo, mais evidentes em seu atual estágio de globalização, precisam ser contempladas ao programar a leitura que será oferecida a crianças, jovens e/ou adultos. Ademais, é importante estabelecer diálogos entre países que compartilham uma mesma língua (como no caso do Brasil e dos demais países colonizados por Portugal, que carregam, além do idioma em comum, traços característicos do processo colonial que podem servir a importantes reflexões. há alternativas à visão elitista no ensino da literatura. Os autores apontam que a tal "literatura menor", ou seja, a literatura desprezada nos circuitos canônicos, tem três características básicas, que podem ser exploradas como vantagem: 1. Ela não é construída dentro de uma "linguagem menor", como são preconceituosamente consideradas as variantes da língua padrão.

Ela é, antes, aquela em que uma minoria constrói em uma "linguagem maior". Uma linguagem que desterritorializa o próprio conceito de língua e que é utilizada para subverter. A imposição de atividades interpretativas que não sejam sensíveis a essa abordagem tende a ter efeito contrário, ou seja, acabam por desestimular o desejo de leitura, o que pode ser muito danoso para o jovem em formação. Segundo Oliveira (2014), no contexto brasileiro, as influências da concepção estruturalista da linguagem criaram raízes em gramáticas normativas e disseminaram modelos elitistas e descontextualizados de análise para a prática escolar, por detrás de uma pretensa neutralidade política do ensino da literatura, o que, em outras palavras, tem atrapalhado o processo de aproximação do universo literária ao do jovem leitor.

De acordo com a autora, ao contrário de uma visão que entende a voz do professor apenas como a imposição de uma "única interpretação possível", a presença da voz do professor não só garante um outro olhar mas também instiga o pronunciamento da voz dos alunos. Para a autora, essa visão pode, ainda, nos ajudar a diferenciar procedimentos opressores, da autoridade necessária nesses momentos. Sutil equilíbrio que precisa ser observado: Seria ilusão deixar de perceber o poder dos educadores nos processos interativos de sala de aula e na compreensão dos textos, isto é, a autoridade textual que vem a legitimar uma prática discursiva particular (Giroux, 1990). Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro às diferenças do outro.

O quinto aspecto recomendado é abarcar as incertezas no próprio jogo do conhecimento, entendendo que são elas que nos permitem formular hipóteses e avançar para novas descobertas. Morin (2000) adverte que a história não é linear, mas ramificada, e que na trajetória dos ancestrais iremos nos deparar com períodos de apogeu e queda, com ciclos vitoriosos e desastres, com surpresas e mudanças radicais. Para enfrentar essa característica, Morin recomenda a ecologia da ação, ou seja, a incitação à coragem para lidar com os imprevistos e à capacidade de formular estratégias que possam ser revistas, outro pensamento acolhido na linha das novas epistemologias, que condiz com a literatura de Couto (2012). O penúltimo aspecto diz respeito às ameaças planetárias, como a das guerras nucleares ou dos desastres ecológicos, sobre os quais a ação precisa ser global.

A importância do suporte para o entendimento efetivo de uma produção cultural é demonstrada por Chartier, que entende a abordagem essencialmente conteudista como um desvio corrente ao longo da história crítica cultural, e contrapõe: (. de modo durável – e paradoxalmente – a história do livro separa o estudo das condições técnicas e materiais de produção ou de difusão dos objetos impressos e a dos textos que eles transmitem, considerados como entidades cujas diferentes formas não alteram a estabilidade lingüística e semântica. Há na tradição ocidental numerosas razões para essa dissociação: a força perdurável da oposição, filosófica e poética, entre a pureza da idéia e sua corrupção pela matéria, a invenção do copyright que estabelece a propriedade do autor sobre um texto idêntico a si mesmo, seja qual for seu suporte, ou ainda a definição de uma estética que considera as obras em seu conteúdo, independentemente de suas formas particulares e sucessivas.

p. Dessa forma, a complexidade das relações de produção e circulação contribui para as dificuldades de acesso que se conhece quando o tema é o ensino da literatura aos jovens estudantes. No campo social, o período pós-colonial será marcado pela reorganização das práticas políticas, econômicas e operacionais dos novos Estados. Do ponto de vista da crítica, as áreas de estudos culturais, literários, linguísticos, entre outros, compreendem o pós-colonial como a postura de enfrentamento das representações impostas e construção de narrativas próprias, seja nas artes ou mesmo na organização dos saberes, o que demanda uma postura intelectual ativa e a noção de que esses processos estão sempre em transformação. Santos (2010) entende que o pós-colonialismo anglo-saxão se assenta na polarização extrema colonizador/colonizado e que, no caso do pós-colonialismo português, que tem como característica a ambivalência, a ruptura está mais centrada na crítica da ambivalência.

Tais considerações serão auxiliares, adiante, para compreendermos melhor a relevância da obra de Couto (2012). No âmbito da crítica literária, de acordo com Leite (2013, p. “Os estudos teóricos do pós-colonialismo tentam enquadrar as condições de produção e os contextos socioculturais em que se desenvolvem as novas literaturas”. Apesar dessas especificidades regionais africanas, com traços linguísticos e históricos particulares, Leite (2012) se interessa em descobrir de que forma as literaturas africanas recuperam ou reintegram o intertexto oral em suas produções, o que é um traço recorrente. Ela acredita que, para além de uma nítida apropriação de ritmos e temas da oralidade, é possível observar uma relação intertextual, que passa pela ideia de “transformação” dessa matéria-prima cultural, utilizando-se de vários instrumentos possíveis, sendo a língua, o primeiro nível de manipulação.

O reencantamento do mundo Segundo Maffesoli (2003), chegamos a um tempo que marca a passagem do projeto linear, ao policromático, trágico por essência, presenteísta e que extrapola o âmbito da segurança burguesa. No ano 1000, o Papa Silvestre II inventou esse relógio que submeteu o tempo à medida. O reencantamento do mundo provém da conjunção do cavaleiro de nossos contos e lendas e do raio laser” (MAFFESOLI, 2003, p. Esse “reencantamento” identificado no imaginário pós-moderno - do bucólico no universo globalizado, do fabular em meio ao fragmentário, do lírico diante do tecnocrático, da desaceleração que se contrapõe à velocidade - se aplica à narrativa de Couto e ajuda a entender a relevância de sua obra literária. A partir desses apontamentos, nos aproximamos da obra literária em questão, a fim de verificar suas qualidades.

‘A confissão da leoa’ “Deus já foi mulher”. Assim se inicia o último romance de Mia Couto. Os escritos de Baleiro explicam que o morto ainda é parte integrante da vida social, continuando a interferir nas regras dos vivos. Já a loucura, para o caçador, é a alienação plena e a verdadeira morte do sujeito social. Questões acerca do feminino e seu lugar social também se evidenciam na obra uma vez que a outra narradora, Mariamar, confessa o drama de uma existência aprisionada: “A moça vê a si mesma como alguém que nunca nasceu. Nascida já morta, desumanizada e desencontrada do meio social, persegue a sua própria humanidade reincidentemente negada por todos” (Carmo, 2016, s/p). Para o crítico, a condição de nascida morta não é exclusiva da protagonista: Constrói-se no romance o apagamento da existência feminina: a mulher, seja na realidade tradicional ou no contexto do assimilado, sofre a subjugação por meio da exploração, da agressão física e psíquica e da anulação do direito à voz.

Vejamos um trecho dos mais representativos desse universo encantado que condiz com o estilo de escrita de Couto: Antigamente, não havia senão noite e Deus pastoreava as estrelas no céu. Quando lhes dava mais alimento elas engordavam e a sua pança abarrotava de luz. Nesse tempo, todas as estrelas comiam, todas luziam de igual alegria. Os dias ainda não haviam nascido e, por isso, o Tempo caminhava com uma perna só. E tudo era tão lento no infinito firmamento! Até que, no rebanho do pastor, nasceu uma estrela com ganância de ser maior que todas as outras. Seguindo o pensamento de Durand (2002, p. que organiza a simbologia nos regimes Noturno e Diurno da imagem, “As trevas noturnas constituem o primeiro símbolo do tempo (.

remetendo ao terror dos nossos antepassados diante da aproximação da noite”. Essa potência do que está oculto se revela mais uma vez no texto de Mia Couto, que apresenta a noite em uma narrativa mítica. Utilizamos o grifo para facilitar os apontamentos deste trecho, onde várias passagens dão conta da recorrência da noite como metáfora para uma questão central: as oposições no campo de poder entre colonizador e colonizado. destaca ainda que: Com a prosa encantatória que lhe é peculiar, Mia Couto (2012) projeta um universo diegético que se abre em dois planos, cada um deles contendo um narrador autodiegético, responsável por atitudes ideológicas, éticas e culturais particulares que, num determinado momento, acabam se entrecruzando. Ambos auxiliam na compreensão da cosmologia moçambicana mediante um duplo movimento de interdependência e de cumplicidade, que vai do contexto tradicional até as mudanças operadas em decorrência da modernidade.

Entre os aspectos extraliterários, ou sociais, que emergem da narrativa, estão os relacionados a ritos e crenças da ancestralidade africana, que resistem especialmente nos lugares que conseguiram preservar a própria cultura, por algum esforço de resistência, frente à mão forte do colonizador. São traços míticos que representam uma concepção de mundo diferente daquela que se propaga com o cristianismo e as culturas europeias dominantes que fazem da obra de Couto (2012) especialmente singular e cativante, talvez por acionarem sensibilidades que se perdem na forma heterogênea das culturas dominantes, tantas vezes a serviço do capital e de sua acumulação: [. A minha irmã, Silência, foi a última vítima dos leões que, desde há algumas semanas, atormentam a nossa povoação.

Pelo contrário, As confissões da leoa é de grande complexidade. No entanto, entendendo o espaço escolar como possibilidade de mediação entre o universo das letras e o mundo tão fragilmente literário dos jovens, acreditamos que alguns desafios são possíveis, desde que haja alguma forma de conexão entre leitores e obras apresentadas. Pelos motivos expostos no decorrer dessa revisão bibliográfica, há elementos na obra literária de Mia Couto que podem conquistar o interesse do leitor quando se estabelece a catarse, ou seja, o processo de empatia e reconhecimento das próprias questões no outro. Mia Couto, autor moçambicano contemporâneo, cuja linguagem, embora acione questões densas, apresenta fluência e lirismo, é importante para trabalhar no ambiente escolar questões de identidade, pertencimento, diversidade, cultura, papel da mulher, medos, o universal tema da morte e da resistência em situações adversas, e também o amor, questões que ao longo da análise literária fomos apresentando.

Acreditamos que o presente estudo tenha atingido os objetivos propostos, ajudando a ampliar o horizonte de fluência de uma obra tão delicada e rica como a de Couto (2012). CASTELLO, José. Maffesoli e o Homo eroticus pós-moderno: "Voltamos ao que o racionalismo moderno eliminou". Fronteiras do pensamento, entrevista. Disponível em https://www. fronteiras. br/sites/brasilafrica. fflch. usp. br/files/CARMO%2CResenhaAconfiss%C3%A3odaleoa. pdf. Lisboa: Editorial Caminho, 2005. COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? E outras interinvenções. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. A confissão da leoa, de Mia Couto, entre mitos e ritos. Revista Crioula nº 18 - 2º semestre, 2016. p-183-202. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. In: Revista da FACED. Universidade Federal da Bahia. Salvador: Faculdade de Educação, 1994: v.

MAFFESOLI, Michel. O instante eterno. br/criacaoecritica/article/view/145796. Acesso em 29 de abril de 2019. MORIN, Edgard. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 1999. Disponível em http://www. scielo. br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000300004. Acesso em 24 de setembro de 2019. A formação social da mente. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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