O que Deus permitiu, eu fiz: Nair da França e Araújo, primeira professora negra do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia
Tipo de documento:Artigo cientifíco
Área de estudo:História
CACHOEIRA/SÃO FÉLIX–BAHIA 2020 RESUMO Este trabalho se insere no campo da história social, considerando que tem como objetivo geral analisar a trajetória de mulheres negras e intelectuais no período pós-abolição, dando ênfase à história da química Nair da França e Araújo, sob o recorte histórico de 1931 a 2018. Com a finalidade de refletir e identificar a opressão de gênero e raça no pós-abolição e analisando a formação de algumas mulheres negras e intelectuais no século XX, desejamos investigar a trajetória de Nair da França e Araújo, ressaltando o peso do preconceito racial ao longo da sua vida, assim como seu sucesso profissional e educacional. Abordamos sobre sua experiência como discente e docente na Universidade Federal da Bahia, enquanto atuou no Instituto de Química dessa universidade.
Além disso, falaremos sobre suas dificuldades impostas pelo racismo e sexismo. Para tanto, a presente pesquisa possibilitou uma maior visibilidade as mulheres negras e intelectuais que viveram no pós-abolição, mais precisamente, no século XX. INTRODUÇÃO Nair da França e Araújo foi a primeira química do Brasil com formação universitária, uma mulher negra do século XX, também renomada por ser a pioneira a lecionar no curso de Química da Universidade da Bahia, atual Universidade Federal da Bahia - UFBA. Nair viveu em uma época na qual, por mais que se caracterizasse como o período pós-abolição, padecia com o intenso preconceito racial, além da discriminação sexista devido ao seu gênero e intelectualidade. Como Nair estudou sua graduação no bairro de Ondina, área nobre de Salvador, cabe ressaltar que a condição do negro nesse contexto social e educacional se assemelhava à realidade de todo o país, pois segundo o antropólogo Jeferson Bacelar (1994, p.
“na sociedade moderna de Salvador é mantida a discriminação racial sobre o negro, com a sua “periferização” espacial, econômica e social”. Assim, diante dessa realidade, entendemos a dificuldade dela enquanto uma jovem negra para se estabilizar socialmente. Ademais, seus resultados oferecem subsídios para a compreensão da complexidade que abrange as práticas do indivíduo na orientação de suas trajetórias individuais e coletivas, na proporção em que agrega distintas dimensões objetivas e subjetivas, ao redor de si, do outro e das conjunturas socais com que se depara. A historiadora Verena Alberti (2005, p. explana que a história oral incide em “[. um projeto que se produzem entrevistas, que se transformarão em documentos, os quais, por sua vez, serão incorporados ao conjunto de fontes para novas pesquisas”.
Tendo em vista a sua relevância, entrevistamos e dialogamos com sujeitos que de alguma forma se aproximaram de Nair, como os ex-alunos e colegas de profissão, as professoras , Idália Helena Santos Estevam, Bárbara Carine Soares Pinheiro, e os professores, Hélio Oliveira Pimentel, Lafaiete Almeida Cardoso e José Roque Mota Carvalho. Ainda, como afirma Scott (1995, p. “essa utilização enfatiza o fato de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por esse mundo masculino”. Diante do exposto, notam-se os desdobramentos da história das mulheres. Como resultado, ela foi escrita de forma que reafirmava a submissão feminina aos homens, então detentores de poder, enquanto as mulheres eram silenciadas pela historiografia tradicional. Em síntese, as mulheres foram esquecidas e invalidadas no decurso da história.
O exposto no parágrafo anterior elucida o que ocorrera com a professora Nair da França e Araújo, tendo em vista que mesmo pertencente a uma classe marginalizada, ou seja, mulher, negra e pobre, a mesma foi em busca de seus estudos, alcançando não somente a graduação, mas o título de mestra, além de ser a primeira química com formação universitária no Brasil. De acordo com a historiadora Cecília Moreira Soares (1994), nas últimas décadas do século XX, pesquisadores começam a se dedicar a temas como: grupos étnicos raciais, camponeses, pessoas comuns e, em especial, as mulheres. No tocante as mulheres e aos negros, Soares explica que A mudança ocorre sob o impacto dos movimentos feministas dos anos 70, que apontaram para a academia a necessidade de uma nova História Social das mulheres.
Da mesma forma, a nova história do negro, e da escravidão em particular, beneficiou-se dos movimentos negros nas Américas e dos movimentos de descolonização na África (SOARES, 1994, p. Assim, essas mudanças possibilitaram o conhecimento desses campos, os quais anteriormente foram pouco ou quase nada explorados. evidencia que pouco se alterou em relação à escrita, tendo em vista que “quando se falava da negra tinha-se uma visão tranquila do seu dia-a-dia”. A autora complementa que essa percepção se justifica como “[. uma forma dissimulada de tornar sem importância as tensões e as lutas no cotidiano” das negras. Concordando com Soares, a historiadora Karine Teixeira Damasceno crítica: [. ao buscarmos referências bibliográficas especificamente sobre as mulheres negras, ainda percebemos uma grande lacuna, sendo poucos os trabalhos que tenham tais sujeitos como objeto de estudo.
explica que “se a mulher branca era tida como sacralizada em sua função de esposa e mãe, à negra escravizada só restava a função de objeto sexual, consolidada via estupro institucionalizado”. Assim, ao passo em que o homem não era possibilitado de satisfazer-se sexualmente com sua mulher branca, o mesmo adquiria uma “amante” negra, a qual padecia não somente com a violência sexual, mas também com a física e a de gênero, as quais perpassaram o processo de abolição. A fragilidade da mulher nos descritos historiográficos também apresenta uma divergência, pois conforme questiona Carneiro (2011, p. “quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando?” Ora, conforme reitera a autora, as mulheres negras nunca se comportaram e, menos ainda, foram cuidadas com tal delicadeza.
Carneiro esclarece ainda sua percepção, considerando seu local de fala: Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! (CARNEIRO, 2011, p. Aquelas que conseguiram ir para a casa-grande encontraram a porta trancada para novas oportunidades – a menos que preferissem, por exemplo, lavar roupas em casa para diversas famílias brancas em vez de realizar serviços domésticos variados para uma única família branca. Apenas um número infinitesimal de mulheres negras conseguiu escapar do campo, da cozinha ou da lavanderia (DAVIS, 2016, p. Paralelo a isso, a historiadora Bergman de Paula Pereira (2011, p. demonstra que no Brasil, entre os “[.
anos finais do século XIX e início do XX mais de 70% da população economicamente ativa ex-escrava, estava inserida no trabalho doméstico”, dividindo-se em funções como “lavadeiras, cozinheiras, babas, amas de leite, mucamas e etc”. Contudo, esse trabalho tratará de uma minoria de mulheres negras, que se constituíram enquanto exceções, disputando um espaço profissional na academia e na docência no ensino superior. AS MULHERES NEGRAS E INTELECTUAIS NO SÉCULO XX Apesar do testemunho histórico de que as negras sempre desempenharam um papel importante como professoras, pensadoras críticas e teóricas culturais na vida negra, em particular nas comunidades negras segregadas, muito pouco se escreveu sobre intelectuais negras. Quando a maioria dos negros pensa em grandes mentes, quase sempre invoca imagens masculinas (HOOKS, 1995, p.
Diante da citação da filósofa bell hooks que abre esse tópico, bem como uma análise acerca da opressão de gênero e raça no pós-abolição, falaremos sobre a escolarização das mulheres negras no pós-abolição, ponderando a importância dessa discussão, tendo em vista que estas “[. foram relegadas a uma posição social inferior a de outras mulheres, a de homens e até mesmo negros”, conforme revelam as historiadoras Jucimar Cerqueira dos Santos e Mayara Priscilla de Jesus dos Santos (2019, p. a condição de serem voltadas para ingênuas e libertas se apresenta como algo ainda mais inédito para entender uma sociedade em que a escolarização para mulher, em muitos casos, era voltada para aprender a ser mãe, como cuidar de um lar e aprender os ensinamentos cristãos (SANTOS; SANTOS, 2019, p.
Desse modo, constata-se que as negras possuíam uma formação mais voltada para as atividades domésticas, no intuito de formar mulheres exemplares para quando, ao se casarem, tornassem ótimas mães e esposas; e caso isso não ocorresse, que fossem, ao mesmo, capazes de desempenhar os serviços domésticos com eficiência em uma casa de família. Ademais, é mister ressaltar que a escolarização de mulheres negras possuía outros intentos, ou seja, o de controlar o destino profissional das libertas e ingênuas. Assim, visavam [. manter uma espécie de controle e direcionamento para o mercado de trabalho livre na condição de criadas, operárias e, infelizmente, até para mantê-las em condições análogas à escravidão em tempos que havia a perspectiva de industrialização com trabalho livre e assalariado no Brasil (SANTOS; SANTOS, 2019, p.
Além disso, falaremos sobre suas dificuldades, o preconceito sofrido devido à sua condição de gênero e racial, assim como o seu sucesso, sendo constantemente homenageada e enaltecida por ser a primeira professora mulher e negra no curso de Química da UFBA. Figura 1 - Nair da França e Araújo Fonte: UFBA (2018) Nair nasceu no Recôncavo Baiano, mais precisamente na cidade de Maragogipe – BA, datando em 26 de outubro de 1931. Seu pai, o Sr. Eupidio Cyrillo de Araújo, era um músico negro e carpinteiro e sua mãe, negra e doméstica, era a Srª. Vitorina da França e Araújo, conforme a própria relatou em entrevista2. Nos anos que se seguiram à abolição, as condições climáticas, a conjuntura econômica e social não foram favoráveis a quem pretendia migrar para outras localidades.
Possivelmente, a seca que assolou a Bahia [. o desemprego, a carestia de gêneros e a fome não motivaram grande fluxo migratório do Recôncavo para outras regiões da província (FRAGA FILHO, 2004, p. Outra situação que não se alterou com o pós-abolição foi a condição da liberta, tendo em vista a perpetuação da mulher negra no pós-abolição como destinada ao lar, à qual é presente na realidade da mãe de professora Nair, assim como a progenitora da Dra. Maria Odília Teixeira, que também seguiu o caminho dos afazeres domésticos. Eu nunca tive. Tinha só o elogio de ser boa aluna”. A situação descrita evidencia o racismo sofrido ainda em sua adolescência, ao passo em que mesmo sendo uma aluna de prestígio no ginásio, nunca fora condecorada materialmente.
Cabe ressaltar, consoante a Bacelar (1994, p. que os presenteados na experiência de Nair, são aqueles que se mantinham no estamento dominante da sociedade do Recôncavo, o qual era “exclusivamente formado por brancos e os raros mestiços que ali chegam consagram a regra embranquecendo-se”. Foi no ano de 1951 que a vida acadêmica da química Nair tivera início, matriculando-se no curso de bacharel em Química pela Universidade da Bahia – fundada em 1946 -, após fazer um exame nas disciplinas de Química, Física, Matemática, Português e Francês. Oliveira (2018, p. evidencia que Nair recebeu “congratulações de todas as bancas” e, a depoente reitera que “[. o professor de Matemática queria saber quem era a aluna de Química que teve a audácia de ter nota superior ao pessoal de Matemática”.
Pouco tempo após ingressar na faculdade, um professor antecipava o seu futuro, como narra Nair (2017): “logo que eu entrei, o professor Tobias Neto disse: ‘você vai ser professora!’ Setembro, eu já estava ensinando no SENAI” - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial -, nas disciplinas de Matemática Industrial, Desenho e Ciências. afirma que “[. funcionava em regime de quatro séries, diferenciando a Licenciatura do Bacharelado no terceiro ano, já que a Licenciatura era no formato de “três mais um”, três anos iguais ao Bacharelado e um para Licenciatura”. Ademais, nem todas as aulas da então graduanda Nair realizavam-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, considerando o deslocamento dos docentes, ou seja, Nair deveria ir ao encontro dos professores onde estes estivessem, por vezes nesse prédio e outras na Politécnica (OLIVEIRA, 2018).
O primeiro ciclo acadêmico de Nair se encerrou no ano de 1954 e, conforme Raquel Oliveira (2018, p. “sendo a única Bacharela em Química [. Sintetiza-se que as mulheres eram raríssimas no ensino superior, sobretudo, as negras, mas mesmo neste cenário, Nair formara-se. Em 1955, Nair dedicou-se ao seu segundo ciclo acadêmico, concluindo, por sua vez, a licenciatura em química, considerando que mesmo durante o curso de bacharel, a mesma já atuava como professora. Nesse mesmo ano, mais precisamente em sete de julho, ingressou no Colégio Estadual da Bahia - Central, local onde já havia atuado como estudante, lecionando na disciplina de sua formação e alcançando uma maior estabilidade financeira, fruto de seu ingresso no serviço público. Além disso, a partir do dia três de agosto, passou a atuar como assistente voluntária na Universidade da Bahia, caracterizando-se como a primeira mulher a lecionar no curso de química dessa instituição de ensino (OLIVEIRA, 2018).
No entanto, esse status, traria consigo determinadas problemáticas, como abordam Camila Ferreira da Silva Telles et. Embora os externos a escola a concebessem como incapaz, os alunos de Nair admiravam a docente e seu trabalho. Seus discentes e, posteriormente, colegas de trabalho, Hélio Oliveira Pimentel (2020),3 José Roque Mota Carvalho (2020),4 Lafaiete Almeida Cardoso (2020),5 Idália Helena Santos Estevam (2020),6 bem como sua amiga Bárbara Carine Soares Pinheiro (2020)7, expuseram em entrevista que Nair era muito mais que uma professora, caracterizando-se como uma verdadeira amiga dos seus alunos. Cardoso (2020) corrobora: “em uma linguagem muito simples, ela chegava junto aos alunos e, em muitos casos, como no meu, transformava-se em conselheira plena”. De forma análoga, Carvalho (2020) elucida: “tivemos a melhor convivência. Era uma das minhas conselheiras”. Não ensinava ameaçando com avaliação, fazia-o educando para a importância dos aspectos gerais e específicos da química orgânica, e para os novos desafios nas disciplinas afins do curso.
Dava-se muito bem com todos os alunos. E quantos alunos! Depois, pude verificar que essa forma de agir era com todos, desde os colegas professores aos funcionários e estudantes. Era uma pessoa atenciosa, conselheira e prestativa (PIMENTEL, 2020). Paralelo a isso, Carvalho (2020) explica que Nair “usava uma didática abrangente” e “uma metodologia de fácil assimilação”, sendo conforme expôs Pimentel, uma professora atenciosa, dedicada e sempre disposta a auxiliar seus alunos, seja no que diz respeito a disciplina ou a vida pessoal de cada um. Somente com o decurso do tempo e o amadurecimento sobre as questões sociais, estes discentes puderam compreender que em tempos remotos os negros não eram destinados aos locais como a sala de aula, tanto para o aprendizado quanto para lecionar. Estevam (2020) possuía a noção dos espaços destinados ao negro e diante disso, destacou que Nair fora sua referência, pois conforme descreve: “ter sido aluna de Nair na UFBA me mostrou que eu estava no lugar certo, que um dia poderia me tornar uma professora como ela”.
Além disso, explana: Nair era uma acadêmica exemplar, irreparável. Chegava cedo, sempre elegante, estava sempre na sala dela, se expressava muito bem. Ela foi um exemplo de profissional competente, séria e dedicada. Houve diálogos com pessoas de todo o Brasil, para que dessem informações de quem eram as mulheres negras doutoras para buscar o ano de sua titulação. Foi aí que um dos professores do grupo de química da UBA comentou: “olha, tem a professora Nair, mas eu não sei se ela era doutora”. Quando ouvi falar dela, eu entrei em choque e perguntei se a professora Nair era negra (PINHEIRO, 2020). Verifica-se mediante o relato de Pinheiro, a dificuldade em reconhecer professoras negras, bem como a omissão de mulheres como Nair na UFBA, até mesmo na contemporaneidade, considerando tratar-se do ano de 2017.
Ao saber que Nair era negra, Pinheiro deparou-se com novos caminhos que deveriam ser trilhados por ela, sobretudo, visando proporcionar a Nair aquilo que fora negado ao longo de sua trajetória, isto é, valorização. Por exemplo: [. negar a alfabetização às mulheres negras – e depois alegar que lhes falta os fatos para um julgamento com bom senso – ilustra outro caso de como se pode atribuir a um grupo um status inferior e depois usar esse status inferior como prova da inferioridade do grupo. Por fim, negar à mulher negra agência enquanto sujeito e tratá-la como o “outro” objetificado representa ainda uma singular dimensão do poder que constructos de oposição dicotômicos salvaguardam para a manutenção do sistema de dominação (COLLINS, 2016, p. O racismo a acompanhou ao longo de sua trajetória, inclusive em seus estudos.
De acordo com Bacelar (1994, p. Consoante a Joselina da Silva e Maria Simone Euclides [. vale mencionar que a universidade é um dos espaços onde não caberiam os(as) negros(as), uma vez que cultural e historicamente há todo um mito fundante na sociedade ocidental que atribui aos negros a falta de capacidade intelectual e de desempenho. Como resultante, a todo momento pessoas negras têm que provar que são capazes de exercer determinada função (SILVA; EUCLIDES, 2018, p. Evidenciando sua imensa capacidade, Nair não cessou seus estudos com a licenciatura, pois o anseio pelas especializações viera, concomitantemente, ao término de 1955, porém, a discriminação a impediu, ao menos, inicialmente, quando tentou o doutoramento na USP - Universidade de São Paulo. Conforme Nair (2017) relata: “[. Paralelo à essa conjuntura, Pinheiro (2020) narra que “a professora Nair não tinha muita dimensão que era a primeira professora negra, ela não era só a primeira negra, mas a primeira mulher, e não tinha muita dimensão de raça e gênero”.
É diante desse desconhecimento que Nair negava o racismo, conforme complementa Pinheiro (2020): “Nair diz que nunca sofreu racismo, mas as histórias que ela relata são histórias de racismo institucionais explícitos”. Em suma, o racismo esteve presente na trajetória de Nair em diversos segmentos, sobretudo, nos estudos, considerando que de acordo com Guimarães (2003, p. “a principal barreira para a integração do negro na sociedade brasileira, para o tratamento igualitário do negro, é a educação”. Desse modo, o negro é impedido de progredir em sua carreira, sobretudo, na docente, como sucedera-se com Nair. Assim, regressou a Salvador para lecionar na UFBA, devido a uma solicitação de retorno justificada pela ausência de professores. Consoante a Cardoso (2020), o fato de ser mulher e negra trouxe mais obstáculos para a vida acadêmica de Nair, e expõe que “o caso do doutoramento em São Paulo foi emblemático: teve de retornar para assumir carga didática”.
Pimentel (2020) aponta outra suposta problemática para o fato de Nair não realizar o doutoramento na USP: “era negra! Por isso, talvez, não tenha avançado na carreira docente com a obtenção de doutorado”. De forma análoga, Carvalho (2020) imagina determinadas expressões utilizadas em São Paulo, referindo-se preconceituosamente a professora: “‘E, chegou uma baiana, negra’. ‘Será que ela veio vender acarajé’. Sem dúvidas, a professora Nair seria a primeira doutora negra em química no Brasil, uma grande pesquisadora da área de química orgânica, mas infelizmente foi isso que aconteceu (PINHEIRO, 2020). De fato, o doutorado de Nair nunca fora alcançado, porém, em agosto de 1976, a professora defendia sua dissertação de mestrado em Química Orgânica na USP, a qual conforme elucida Oliveira (2018, p.
tinha o seguinte propósito: uma revisão dos processos de sínteses de nitrila a partir de aldeídos, surgidos na década de 60, envolvendo o uso de hidroxilamina, de amônia e de nitropropano. ” Durante os anos em que lecionou na UFBA, sua vida fora dedicada a essa instituição, considerando que Nair foi coordenadora de cursos do Instituto de Química, assim como pesquisadora da química orgânica nos laboratórios da UFBA. Assim, Oliveira (2018, p. A desistência do trabalho na Petrobras e a ausência de cargos de poder, efetivadas devido a sua raça, gênero e, concomitantemente, as funções destinadas a uma mulher no mercado de trabalho, não se caracterizou como um grande obstáculo que impedisse a trajetória de sucesso da professora Nair, a qual enfrentou o racismo e o machismo, mostrando que uma mulher negra pode ultrapassar os limites que a sociedade impõe a ela, mesmo sendo uma negra solitária, pois consoante a Pinheiro (2020), Nair vivia em uma solidão, tanto em sua vida pública quanto privada.
A depoente justifica: “Nair foi uma mulher que morreu sem companheiro, companheira, sem filhos. Tinha contato apenas com os sobrinhos dela. Sua história é um relato de solidão, socialmente construída a partir da intersecção de raça e gênero”. Ponderando sua solidão e todo o preconceito sofrido, seja em relação a sua raça ou ao seu gênero, a professora Nair foi destinada a invisibilidade e, sobretudo, ao esquecimento daqueles que poderiam reconhece-la enquanto estava viva, como a própria UFBA. Outro aspecto relevante no tocante ao seu gênero é relatado por Cardoso, ao passo em que Nair já se tornara uma mulher de classe média e adquiria bens de consumo condizentes a essa classe social: Nair também dirigia, há muito tempo, o que não era muito comum ainda para uma mulher.
Gostava de carros grandes, principalmente da Chevrolet, encomendava os carros. Depois da química, o meu passatempo preferido era conversar sobre carros e costumes de época. Teve vários modelos importados (facilitado por ter um irmão da Marinha, que permitia a importação dos veículos). Ficava surpreso quando ela falava em vidro elétrico e outros itens não disponíveis ou ainda inacessíveis à grande maioria dos consumidores nos anos setentas (CARDOSO, 2020). Conforme elucida Pinheiro (2020), Esse processo de trazer à tona no último ano de vida dela foi um reflexo grande do racismo na sociedade, como também do racismo que ela viveu dentro da UFBA, como os processos de negação do espaço, preconceito linguísticos no sentido de ser reconhecida como “professora”, [. tudo isso era de fato, o racismo institucional gritando, pulsando (PINHEIRO, 2020).
É diante desse racismo institucionalizado que Pinheiro (2020) expõe uma imensa indignação no tocante ao reconhecimento de Nair, seja atualmente ou durante sua vida: “me revolta ter uma mulher negra, sendo a primeira mulher graduada em química do Norte/Nordeste, a primeira mulher a ser professora de química na UFBA e o que vemos é o grau de esquecimento, de apagamento dessa mulher!”. Inconformada, Pinheiro buscou incessantemente reparar essa dívida histórica com Nair enquanto a mesma estava viva, porém, “[. ela faleceu, mas durante esse processo ela recebeu três homenagens da Universidade. Em seguida, conhecemos um pouco da vida da professora Antonieta de Barros, a qual tornara-se a primeira mulher negra a ocupar o cargo de Deputada Estadual em Santa Catarina, no ano de 1934. Por fim, foi a vez da primeira médica negra do Brasil, a Dra.
Odília, formada em 1909 na Bahia. Posterior a trajetória dessas mulheres, chegamos ao nosso foco, abordando sobre a professora Nair da França e Araújo, a primeira mulher negra a se formar em química na Bahia. Com o auxílio de sua entrevista concedida à química Raquel Melo de Oliveira, bem como as que desenvolvemos com seus colegas de trabalho, pudemos conhecer melhor sua trajetória. A Entrevista: O Início da Pesquisa. In: ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. ª Ed. Cap. Revista História, São Paulo, Nº 129-131, p. CARDOSO, Lafaiete Almeida. Entrevista concedida a autora em 24 de agosto de 2020. CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. CARVALHO, José Roque Mota.
Entrevista concedida a autora em 10 de junho de 2020. COLLINS, Patrícia Hill. Aprendendo com a Outsider Within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016. revistas. usp. br/sankofa/article/view/88817/91698. Acesso em 05 dez. DAVIS, Angela. Encruzilhadas da Liberdade: Histórias e Trajetórias de Escravos e Libertos na Bahia, 1870-1910. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. ª Ed. Disponível em: https://www. geledes. org. br/wp-content/uploads/2014/10/16465-50747-1-PB. pdf. XXVI SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA ANPUH: 50 anos, São Paulo, 2011. Disponível em: http://www. snh2011. anpuh. org/resources/anais/14/1308183602_ARQUIVO_ArtigoANPUH-Bergman. jun 2008. SANTOS, Mayara Priscilla de Jesus dos. A Talentosa Clínica da Médica Maria Odília Teixeira.
Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020. No prelo. ufba. br/files/1994. soares_cecilia_moreira. mulher_negra_na_bahia_no_seculo_xix. pdf. Falando de Gênero, Raça e Educação: trajetórias de professoras doutoras negras de universidades públicas dos estados do Ceará e do Rio de Janeiro (Brasil). Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. n. p. jul. Nº 2, 2019. UFBA. UFBA lamenta falecimento da professora Nair da França e Araujo. Disponível em: https://www. ufba. ANEXOS Anexo A Figura 1- Diploma de Bacharelado de Nair da França e Araújo tirado do seu arquivo pessoal. Fonte: Raquel Melo de Oliveira (2018) ANEXO B Figura 2-Lista de coordenadores do colegiado e vices: Fonte: Raquel Melo de Oliveira (2018) ANEXO C Figura 3- Diploma de mestrado de Nair da França e Araújo tirado do seu arquivo pessoal.
Fonte: Raquel Melo de Oliveira (2018) ANEXO D Figura 4- Atestado de especialização feitas na USP tiradas de seu arquivo pessoal. Fonte: Raquel Melo de Oliveira (2018) ANEXO E Figura 5: Nair em sua formatura na UFBA Fonte: Escola de Química da UFBA. ANEXO F Figura 6: Homenagem da escola de química a professora Nair.
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