papel das ações afirmativas na manutenção do multiculturalismo no brasil

Tipo de documento:Artigo acadêmico

Área de estudo:Sociologia

Documento 1

A escravidão deixou marcas profundas na sociedade brasileira, repercutindo principalmente em uma estratificação social por cores, além de marcas profundas em sua cultura e economia. Os negros representam cinquenta e três por cento de toda a população brasileira, mas não possuem uma representatividade no acesso ao ensino superior, bem como o salário médio da população negra é menor do que o dos brancos. Não é apenas o acesso ao ensino superior ou a remuneração que difere, pois ainda que o Brasil não se identifique como racista é notório que a cultura popular exalta as características brancas e europeias em detrimento das negras e africanas. A partir da constatação das diferenças sociais gritantes e do racismo incrustado na sociedade, os tomadores de decisão sobre políticas públicas brasileiras começaram um movimento para implantar instrumentos que corrigissem tais diferenças.

Esse movimento, denominado multicultural, surgiu e propagou-se a partir dos países de língua inglesa, visando a representação de grupos e comunidades e sua inserção nas sociedades liberais democráticas. Globalização e fluxos migratórios A globalização pode ser compreendida como um processo multidimensional, causador de mudanças estruturais de ordem internacional. As principais características desse processo são a integração econômica, social, cultural e política; deflagradas pelas reformas econômicas dos anos 1980 e 1990 com a liberalização das economias nacionais e integração regional e mundial (MELLO, 1999). Os efeitos desse processo foram sentidos inicialmente na economia internacional, devido ao crescimento das transações comerciais e das conexões organizacionais globais, com o surgimento de empresas transnacionais que ultrapassam a fronteira dos países.

Assim, em seu estágio inicial, o debate principal ocorreu sobre a “globalização econômica” e seus efeitos sobre o papel dos Estados e das relações internacionais (MELLO, 1999; HIRST & THOMPSON, 2001) combinada com o efeito do liberalismo sobre a rapidez dos processos de integração econômica. De acordo com o FMI (2000), a globalização vem a ser caracterizada por quatro fatores chave: comércio e transações financeiras; movimentações de capital e de investimento; migração e movimentação de pessoas e a disseminação de conhecimento. Em contrapartida a este fato, os países ricos e desenvolvidos acabam aceitando estes imigrantes por necessitarem e se beneficiarem de sua mão de obra, devido ao fato de sua população estar envelhecendo e se tornando inapta a oferecer força de trabalho.

Portanto, somando-se a redução no número de cidadãos em idade laboral e o fato dos nativos não aceitarem trabalhos em setores onde não são bem remunerados ou tenham que fazer atividades braçais, de limpeza, entre outros, os países desenvolvidos acabam por se favorecer com este grande fluxo de imigrantes, uma vez que estes não estão em condições de recusar trabalhos que os próprios nativos não fariam, e que com isto acabam beneficiando a economia do país onde estão. Ainda que a América Latina tenha sido uma das regiões do mundo com maior intensidade de migrações internacionais no sentido Sul-Norte, cabe destacar que a América é historicamente um continente de imigrantes e seus descendentes (AVILA, 2005; 2007).

Na época das grandes navegações que deram início ao período colonial latino-americano, ocorreram grandes ondas de imigração no Brasil com o assentamento sistemático de invasores europeus, em particular os portugueses, mas também espanhóis, holandeses, ingleses e franceses, que começaram a ocupação das terras indígenas. Os índios foram escravizados pelos invasores, principalmente para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar. No entanto, ainda que esse autor reconheça que a miscigenação é um dos fatores preponderantes da diversidade característica do Brasil, que praticamente formou uma identidade nacional e criou uma cultura brasileira, ele faz críticas severas sobre essa formação. O país é marcado por uma forte estratificação de classes com grande desigualdade entre as classes ricas e as pobres, devido à exploração do trabalho de muitos e a concentração de riqueza para poucos.

No princípio da colonização o país era divido entre senhores e escravos, o que continuou acontecendo com a divisão da sociedade em superiores e inferiores, na qual entre a maioria dos inferiores estão as pessoas “de cor”: negros, índios ou mestiços e os pobres. Por mais que os brasileiros sejam um povo pacífico e que não haja choque com outras culturas, em geral, não se pode afirmar que existam características de uma formação multicultural na composição do Brasil, mas sim multiétnica desde a época colonial. O Brasil adotou uma cultura mais ou menos comum em sua sociedade, que se baseou principalmente no catolicismo e nos costumes ocidentais ibéricos, com a adoção da língua portuguesa. Como as condições econômicas que encorajaram a migração laboral mudaram, muitas comunidades de imigrantes começaram a se tornar o foco de ressentimento e hostilidade, o que se manifestou em racismo.

Em resposta a essas tendências, os pensadores liberais e igualitários começaram a chamar a atenção das questões diretas de não discriminação e igualdade civil para se preocuparem com o reconhecimento de grupos e de integração social justa. O discurso multiculturalista ganhou prominência relativamente recente e pode ser visto como a última manifestação do debate liberal versus comunitário que passou a dominar a filosofia política britânica e americana no final da década de 1970 e início dos anos 80 (FERES; JÚNIOR, 2014). Após a publicação de A Theory of Justice de John Rawls3 em 1971, e depois da publicação da resposta libertária de Robert Nozick a Rawls em Anarchy, State and Utopia, a filosofia política no mundo de língua inglesa dedicou-se ao desenvolvimento e crítica das teorias rivais da justiça social.

Filósofos políticos como Charles Taylor, Alasdair MacIntyre e Michael Walzer se debruçaram sobre o desafio comunitário em oposição à primazia do individualismo liberal que sustentava as teorias de Rawls e Nozick. O filósofo político britânico Bhikhu Parekh combinou ideias como o pluralismo socialista britânico em sua defesa da acomodação cultural de grupos de imigrantes. Kymlicka (1996) argumenta que os grupos culturais podem ser objeto de tratamento justo em termos de merecer proteção externa das consequências da dominação da maioria da cultura. Isto significa que o reconhecimento cultural pode se tornar uma questão da justiça distributiva em sociedades onde há pluralismo cultural e onde já existiam minorias nacionais significativas. O simples tratamento dos grupos culturais para Kymlicka exige tanto uma medida dos direitos de autogoverno, como também medidas para compensar as culturas minoritárias que estão sob a desvantagem pela cultura social dominante da comunidade anfitriã (VITA, 2002).

Isso significa transferir recursos da comunidade maioritária para sustentar práticas e instituições culturais através de acordos diferenciados de educação ou a proteção de línguas minoritárias por canais especiais de rádio ou televisão. Os liberais, como Barry, também argumentam que os indivíduos têm que ter direitos reais para que os grupos não possam impor práticas não liberais ou papéis culturais indesejados em indivíduos. As pessoas são livres para serem católicas ou muçulmanas, mas não são livres para impor deficiências civis e políticas a outras pessoas que não conseguem ser católicas ou muçulmanas. Sua crítica do multiculturalismo pode ser reduzida à afirmação de que os multiculturalistas podem ter tanta proteção cultural quanto compatível com o liberalismo, mas qualquer proteção cultural que exige mais do que o liberalismo igualitário permite deve ser descartada, pois isso sacrifica o status igual de cada indivíduo ao interesse da maioria (VITA, 2002).

Embora o multiculturalismo seja discutido principalmente por teóricos políticos normativos, preocupados com a recomendação de prescrições políticas e a distribuição de direitos, deveres e recursos, também apareceu entre os teóricos sociais que usam algumas de suas ideias para analisar questões de identidade grupal e movimentos sociais. Existe certa sobreposição entre essas duas vertentes da literatura sobre multiculturalismo, mas em geral, a teoria normativa do multiculturalismo permanece distinta da sua aparência na sociologia e na teoria social. A Índia foi o primeiro país a implantar as ações afirmativas, na década de 1940 ainda na época do domínio colonial inglês, depois estabelecida pela constituição de 1948 com o país já independente. Isto porque em seu território existe uma divisão social hierarquizada de castas, e o papel dessas cotas era garantir a disponibilidade de lugares nos ensinos, parlamento e outras funções publicas, para aqueles que fazem parte das castas ditas como inexistentes, como por exemplo os dalits4 ou os tribais (adivasis) entre outros.

Experiências semelhantes também ocorreram em países como a Alemanha e África, onde após os processos de independência do continente africano países como Gana e Guiné instituíram por decretos as políticas chamadas de “nativização” ou “indigenização”, utilizando cotas e outras medidas específicas com “o propósito de colocar a população nativa em lugar dos europeus nos postos de comando da sociedade” (. “para a formação de um quadro administrativo autóctone” (PEREIRA; ZIENTARSKI, 2011, p. No entanto, a expressão affirmative action (ação afirmativa) teve sua origem nos Estados Unidos a partir das reivindicações democráticas do movimento pelos direitos civis que exigia igualdade de oportunidades para os negros e brancos norte-americanos. Após diversas decisões da Suprema Corte, atualmente as ações afirmativas possuem a forma de bônus e de estimulo à contratação de candidatos negros (GEMAA, 2016).

Outros movimentos de contestações sobre discriminação seguiram na pressão pelos direitos de igualdade de oportunidades e de representação, como o movimento feminista e o homossexual. Com a queda do muro de Berlim, os movimentos multiculturalistas aumentaram e praticamente todas as sociedades do bloco comunista passaram a reclamar pelo respeito às diferenças, principalmente étnicas (LUCAS, 2014). Em suma, as ações afirmativas se firmaram como medidas para garantir a oportunidade de acesso dos grupos discriminados aos serviços públicos e oportunidades de trabalho, ampliando sua participação em diferentes setores da vida econômica, política, institucional, cultural e social dos Estados-nações, ainda que Pereira e Zientarski (2011) reiterem que maior ênfase é dada sobre as questões de raça e de gênero. No Brasil, a introdução das ações afirmativas raciais aconteceu somente depois de um fluxo de pressões que foram feitas sobre o governo por agencias e academias.

Assim, as políticas de redistribuição e de reconhecimento como práticas multiculturais começam a ser delineadas devido a forte aproximação entre o movimento negro e o Estado brasileiro, que colocou as questões raciais em pauta. Em 1996, como prova das mudanças globais, ocorreu o seminário internacional “Multiculturalismo e racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos”, evento este apadrinhado pelo Ministério da Justiça, que tinha como objetivo unir estudantes e civis para a discussão do tema citado. Já em 2001 em Durban, foi realizada a “Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial e a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância”, considerada como o ponto de inflexão definitivo das políticas para a implantação das ações afirmativas brasileiras (LIMA, 2010).

Ao final do governo FHC a política mudou radicalmente, o governo admitiu que o Brasil é racista e adotou a forma considerada mais usual para combater a desigualdade racial: cotas. Foi criado o Programa Nacional de Ações Afirmativas; três ministérios introduziram cotas para negros, mulheres e pessoas deficientes em suas contratações; o Programa Nacional de Direitos Humanos endossou cotas raciais; o Ministério das Relações Exteriores introduziu um programa para aumentar o número de diplomatas negros e alguns estados da federação aprovaram leis reservando um percentual das vagas oferecidas nos exames de admissão de suas universidades para afro-brasileiros. Considera-se que tais medidas irão gerar uma sociedade mais igualitária e multicultural, ainda que possam ser descontinuadas após determinado tempo e atingimento de metas.

A ação afirmativa é defendida geralmente como uma medida temporária que é necessária para nos levar mais rapidamente na direção de uma sociedade cega às cores [color-blind]. KYMLICKA 1995) A despeito da timidez inicial do governo brasileiro, muitos anos se passaram desde que o racismo foi colocado em pauta nas políticas públicas, a aplicação das ações afirmativas raciais está presente em praticamente todas as instituições federais de ensino superior atualmente7, ainda que cercadas de muitas críticas, declarações polêmicas como a recente manifestação do professor da Unicamp8, além de casos de sucesso sobre a sua efetividade. Em sua teoria do multiculturalismo Kymlicka (1995) identifica grupos cuja finalidade é a integração, mas que precisam de direitos especiais para que essa integração aconteça.

Considerando que: 1) Em pouco mais de quinhentos anos de história, o Brasil passou mais de dois terços como sociedade escravocrata, o que deixou marcas profundas em sua cultura, economia e estrutura social; 2) De acordo com os censos nacionais e outras estatísticas oficiais, os pretos e pardos9 sempre se estiveram nas camadas em vulnerabilidade social e aparecem como maioria absoluta, mesmo quando se considera sua proporção na composição da população; 3) O país se apresenta como profundamente estratificado por cores e cujo Estado, durante décadas, não fez nada para alterar a situação, mas apenas nos últimos 15 anos as políticas públicas começaram a modificar o padrão; ainda é cedo para determinar se a sociedade brasileira conseguirá dar o devido reconhecimento à cultura negra e afro-brasileira e integrar plenamente os negros em todas as oportunidades na sociedade.

HIRST, P. THOMPSON, G. Globalização em questão. A economia internacional e as possibilidades de governabilidade. ª ed. F. D. Migração, Globalização e Relações Internacionais: em Busca de Novas Interpretações Fundamentadas em Evidências Latino-Americanas Recentes. Universitas: Relações Internacionais, Brasília, v. n. O Brasil diante da dinâmica migratória inter-regional vigente na América Latina e Caribe: Tendências, perspectivas e oportunidades em uma nova era. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. n. p. Disponível em: <http://dx. Disponível em: <http://dx. doi. org/10. S0102-69092014000100007 >. Acesso em: 26/05/2017. br/assuntos/educacao>. Acesso em: 02/06/2017. FERES JÚNIOR, J. CAMPOS, L. A. iesp. uerj. br/experiencias-internacionais/?option=com_k2&view=item&layout=item&id=99&Itemid=218>. Acesso em: 02/06/2017. LIMA, M. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v.

n. p. Disponível em: <http://dx. doi. doi. org/10. S0034-73291999000100007>. Acesso em: 17/05/2017. PATARRA, N. PEREIRA, S. M. ZIENTARSKI, C. Políticas de ações afirmativas e pobreza no Brasil. Estudos RBEP, Brasília, v. Teoria crítica em relações internacionais. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. n. p. Disponível em: <http://dx. doi. org/10. S0102-64452002000100001>. Acesso em: 22/05/2017.

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