LUGAR DAS CRÔNICAS E DOS CRONISTAS NA ESCRITA DA HISTÓRIA

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SOBRE O “HISTORIAR” MEDIEVAL: O LUGAR DAS CRÔNICAS E DOS CRONISTAS NA ESCRITA DA HISTÓRIA Odir Fontourai Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar como deu-se a escrita da história na Idade Média, bem como perceber como alguns cronistas medievais compreendiam a ideia de “verdade” e como, consecutivamente, viam a diferença entre “história” e “ficção”, até refletir, naturalmente, como por vezes são tênues as fronteiras entre essas duas noções no medievo. Também verificar-se-á como era a relação dos cronistas com o seu contexto e como lidavam as com as mais diferentes esferas do poder medieval: o rei, a Igreja ou as cidades. Também pretende-se introduzir uma reflexão historiográfica a respeito da posição em que as crônicas e os cronistas ocupam nos estudos contemporâneos de história medieval.

Palavras-chave: Crônicas medievais; Cronistas medievais; Escrita da história na Idade Média. Abstract: This article aims to analyze how gave up the writing of history in the Middle Ages, as well as understand how some medieval chroniclers understood the idea of "truth" and how consecutively saw the difference between "history" and "fiction", indeed reflect, of course, as they are sometimes tenuous the boundaries between these two notions in the Middle Ages. p. ISSN: 1519-6674. escrever sobre, principalmente quando trata-se de um romance históricoii, não é com estranheza que o leitor de O Nome da Rosa, principalmente se historiador, irá se deparar, em mais de uma vez ao longo da obra, com a insistência de Adso em legitimar a sua escrita que, ainda entre as páginas de um romance contemporâneo, reflete de modo muito pertinente o modus operandi de um típico cronista medieval.

A prática de escrita desses cronistas pode ser basicamente caracterizada em: 1) o registro de acontecimentos passados; 2) cujo o cronista pode ter presenciado ou não; onde 3) sendo episódios que, uma vez tidos como importantes e/ou memoráveis pelo cronista que registra; logo, 4) são dignos de serem deixados à posteridade através do registro escrito. Estes são alguns dos elementos que configuram o ofício do cronista medieval e que, aos historiadores da atualidade, suscitam importantes reflexões, por exemplo, a respeito da ideia de “verdade” na Idade Média, fazendo com que, portanto, tais temas estejam inseridos em uma discussão historiográfica contemporânea que procura verificar se esses cronistas, por fazerem obras de historia, podem ser chamados “historiadores”, bem como se suas crônicas podem figurar como elementos de uma tradição “historiográfica” uma vez que, se historiadores, fariam uma escrita da história.

p. ISSN: 1519-6674. “profecia” do presente. Deliyannis (2003, p. afirma: a historia foi um tipo de escrita que teve longa tradição na antiguidade clássica. Em Gervásio de Canterbury (1141?-1210?) vemos uma distinção no ofício de historiar na Idade Média: enquanto que o historiador deve ocupar-se da instrução da verdade, ou veraciter edocere, o cronista deve ocupar-se de calcular esse tempo decorrido, ou supputatione veraci, dos anos do Senhor e listar ali os eventos relevantes. Mas Gervásio insistia: a intenção de ambos era a mesma. Conforme Chris Given-Wilson (2004, p. “precisão e exatidão era o que os cronistas reivindicavam para as suas crônicas, confiabilidade era o que clamavam para si mesmos”. O cronista português Zurara, no prólogo da Crônica de 1419, pede ao Espírito Santo que ajude-o de modo que escreva suas crônicas de modo que “não pareçam falsidades”.

atenta que a Alta Idade Média já não era ignorante quanto à diferenciação de verdade e mentira. Cita Isidoro de Sevilha (556?-636) que nas suas Etimologias já distingue historia de fabula, o que revela ser uma relação de mão dupla, uma vez que, por mais que o discurso do cronista tenha suas reticências em relação ao mítico e ao fantástico, nem sempre deixa de assumir esses aspectos em sua escrita. Sob esse viés, é interessante fazer referência ao trabalho de Pablo Castro sobre as recepções e ressignificações da obra de Homero no mundo medieval: com o italiano Guido de Colonne (1215?-1290?), por exemplo, e sua Historia Destructionis Troiae, vemos a necessidade do autor de escrever uma crônica de forma verossímil e imparcial de um passado glorioso longínquo.

Para isso, critica a obra de Homero que teria utilizado vestígios “artificiosos”, alterando a “realidade dos fatos”. Conforme Guido, então, este não representaria uma fonte fidedigna para compreender a história de Tróia. O autor diz que existe uma “certa racionalização” quando Guido diz que esta foi feita por “sutil engenho”. De igual modo, em outro trecho da sua obra, Guido também registra que, em certa região montanhosa, de selva e bosques, dá-se a existência de sátiros, faunos chifrudos “e outras coisas maravilhosas”. Aqui ele reflete testemunhos que nem critica nem refuta. É assim que a obra de Guido de Colonne é exemplo não só de uma “fronteira entre o espaço cristão e o espaço pagão”, mas como ilustrativa da relação de mãodupla de como a ideia de “verdade” é complexa na mentalidade medieval.

Pablo Castro fala de uma ambiguidade do real e do irreal, mas atenta e define que a obra 122 Revista Labirinto, Porto Velho-RO, Ano XIV, Vol. O que não impede que também seja registrada a ocorrência de milagres e de eventos maravilhosos ao longo do percurso. A autora fala de um “quatro retórico” onde os feitos divinos são mostrados como se Deus estivesse do lado dos cruzados. Os infortúnios também são vistos como interferência de Deus ou para retratar a virtude dos cruzados. Aqui Ailes fala de um “diferente tipo de verdade da evidência factual” (AILES, 2002, p. Não podemos esquecer que a escrita da história foi feita de diferentes formas: através da música, em verso ou em prosa, em diferentes línguas, narrativas densas ou em curtas sentenças.

Também cita Poiron (apud AINSWORTH, 2003, p. o processo de escrita dos poemas surge da necessidade da preservação do esquecimento – o que indica as canções de gesta também como uma forma, ainda que rudimentar, de “fazer histórico”. Ainda em Ainswowrth, que estuda os Romans bretons e os romans d’antiquité, é possível verificar: a característica dominante dessas obras era com a história – o que não impede, naturalmente, a existência do fabuloso ou do fantástico, o que constitui, como já visto, um traço comum do imaginário medieval. É o caso dos romances arturianos em Chrétien de Troyes (1135?-1191?) e em Marie de France. O pesquisador também fala do Roman de Thèbes, o Roman d’Enéas e so Roman de Troie, que são trabalhos escritos cujos autores eram clérigos que queriam tornar acessível o conhecimento clássico àqueles que não dominavam o latim, escrevendo, assim, em vernáculo.

p. ISSN: 1519-6674. nacional e também para a memória dos feitos cristãos. Nesse sentido, a história de Portugal sob a pena de Zurara, confundia-se com a história da expansão e os nobres eram seus principais impulsionadores e patrocinadores FRANÇA, 2007, p. Ainda no caso português, vemos no cronista Fernão Lopes (1385?-1459?), o elogio e a legitimação da dinastia de Avis na sua Crônica de D. A autora menciona os registros a respeito dos maus auspícios que foram interpretados no dia da coroação do novo papa (um muro teria caído durante a cerimônia, matando 12 pessoas, inclusive Jean II, duque da Bretanha), fazendo referência aos escritos de Bernardo Gui (1261?-1331) e de Tolomeo de Luca (1236?-1327?) sobre o assunto.

Também cita Agostinho Trionfo (1270?-1328), de Nápoles, que, sendo uma autoridade na Igreja e próximo ao rei, tenta interceder para a volta de Clemente à Roma, única e verdadeira sede da Cristandade segundo seus pares. Menache também cita outros cronistas que, no entanto, concordam com a sede do papado em Avignon a fim de ilustrar a heterogeneidade dos escritos cronísticos medievais, mesmo a respeito das posições da Igreja. Revista Labirinto, Porto Velho-RO, Ano XIV, Vol. p. Escreveu em vernáculo, em um quadro de história universal; não obstante, sua história possui elementos do legendário e do romântico, ligando Florença à cidade de Tróia, alma mater de todas as cidades medievais. Ambos representam o novo tipo de cronista que apareceu na Península Itálica da Idade Média tardia: a referência desses autores já não era mais o scriptorium monástico, mas os arquivos das cidades (MENACHE, 2006, p.

Ora, estes exemplos vão ao encontro do que Gabrielle Spiegel define quando estuda a respeito do surgimento da prosa vernacular na França do séc. XIII: Para Spiegel, os textos não são vistos como produtos de um contexto, mas como produtores e formadores de uma realidade. As crônicas são formadas por autores e refletem ali verdades factuais também eventos históricos (SPIEGEL, 1997 apud AILES, 2002, p. Elas muitas vezes tratam do elogio ou da deturpação deliberada e sua composição está relacionada ou à vida no monastério ou aos clérigos seculares. As histórias “semi” oficiais são numerosas nesse contexto, sendo o tipo mais comum desse gênero na Inglaterra a crônica monástica, cuja atitude muitas vezes é independente do governo central.

Uma “história oficial” é definida quando esta é comissionada por uma pessoa que exerce autoridade. Cita, por exemplo, a crônica Flores historiarum, da abadia de Westminster, que começou a ser escrita em 1265 e foi continuada em 1306. A versão revisada desta última obra pode ter sido escrita em favor de Eduardo I ou ao seu comando, ou talvez por Eduardo II a fim de comemorar os feitos do pai. Denis para escrever as crônicas oficiais a fim de 127 Revista Labirinto, Porto Velho-RO, Ano XIV, Vol. p. ISSN: 1519-6674. justificar os seus atos. Cita as Grandes chroniques nesse sentido (GRANDSEN, 1975, p. Define que no séc. XX vemos uma mudança de perspectiva sobre a Idade Média: das “trevas medievais” vamos às “luzes” e “incertezas”, uma vez que desde o séc.

XVI sempre apontou-se para o distanciamento, o afastamento e a ruptura da Idade Média em relação com o tempo presente como uma forma de elogiar, quando não a modernidade, pelo menos o mundo clássico. Situa Jacques Le Goff (1980) como um dos grandes principais responsáveis pelo novo olhar e por uma verdadeira “reinvenção” do medievo. É nesse sentido que a autora propõe uma reflexão sobre como era feita a história no período medieval – e, através disso, defende que o “historiador” não é um produto do séc. XIV merecem essa designação. Mas se, por outro lado, por história se entende aditional criteria, como uma análise e uma aproximação crítica dos eventos passados, então as crônicas do séc.

XIV não parecem constituir um estágio de desenvolvimento da historiografia moderna (MENACHE, 2006, p. É na contramão de Menache que Gabrielle Spiegel (1983 apud DELIYANNIS, 2003, p. já alerta: “a historiografia medieval, conforme todos os críticos estranhos [a ela] é inautêntica, não científica, não confiável, ahistórica, irracional, incerta, e, pior ainda, não profissional”. quando escreve sobre o contexto ainda de Raul Glaber, diz: “não se deixa de reconhecer nele uma cultura refinada – que ele mesmo revelara ser reconhecida pelos seus pares”. Quando Given-Wilson (2004, p. Revista Labirinto, Porto Velho-RO, Ano XIV, Vol. p. ISSN: 1519-6674. É o caso do registro da Crônica Anônima que relata a fuga de Roger Lord Mortimer da Torre de Londres em 1323 onde menciona-se as diferentes e possíveis das formas em que teria dado-se a fuga.

Em relação à crônica Vida de Eduardo II, o autor fala não somente de ignorância, mas de “prudência autoral”. Em relação, por exemplo, à possível traição de Thomas de Lancaster, o cronista diz: “o que é verdadeiro ou não, eu não sei”, e completa mais adiante: mas “Deus sabe”. Ainda que isso não configure uma regra, em muitos cronistas, a prática de dar referências às suas fontes tornou-se um hábito. Isso é visto no capelão real que escreveu Gesta Henrici Quinti. identifica as definições de história que são encontradas tanto em Isidori Hispalensis, Gervásio de Canteburry e João de Salisbury. Aponta que a noção de fazer história em função da importância do registro da memória para a posteridade é comum à Idade Média e que, como tradição, remonta a Heródoto.

Richard Soutern (1970-2 apud DALE; LEWIN; OSHEIM, 2007, p. xvii) aponta três distintos temas que parecem caracterizar uma historiografia que, consolidada, pode ser encontrada ao longo da Europa medieval: 1) a historiografia real, baseada nas imagens clássicas da regência ao mesmo tempo secular e divina do monarca; 2) o discurso uma direção divina para uma história universal, como o faz Hugo de São Victor; 3) e ainda nesse sentido, a presença de uma história escatológica que ruma aos Últimos Dias antes do Julgamento. Cita nesse último aspecto a influência de Joachim de Fiore. Revista Labirinto, Porto Velho-RO, Ano XIV, Vol. p. ISSN: 1519-6674. Voltando à defesa de Menache, é importante ressaltar: para a autora, a diferença entre as crônicas medievais e a historiografia moderna é, além disso, não somente uma questão de semântica; mas uma questão essencial para a discussão do ofício do historiador.

Menache vincula essa reflexão à aproximação científica da análise histórica. A autora também fala da formação de um cânone medieval historiográfico: trata-se de um “lento, mas contínuo processo de construção de conteúdo factual e estratégias narrativas para expressar um entendimento enraizado e profundo da natureza da história francesa”. Vance (1998, p. faz uma analogia: acrescenta que a Bíblia, “cânone dos cânones”, também emerge lentamente e assume sua forma fechada também dessa forma. Néri Barros Almeida (2010, p. escreveu sobre o acesso que Raul Glaber tinha ao ambiente dos poderosos regionais, o que 132 Revista Labirinto, Porto Velho-RO, Ano XIV, Vol. A escrita da história na Idade Média foi feita através das mais variadas formas.

Ela por vezes foi cantada, como no caso das chansons de geste, depois escrita em verso como vemos nos romans e por fim, escrita em prosa, estética que perdurou. Essa história tinha por intuito deixar suas “verdades” para a posteridade, e essa verdade é uma verdade cristã de um mundo. A distinção entre historia e fabula já era conhecida pelo homem medieval, o que não impediu de que, por vezes, em suas narrativas, fossem inseridos elementos do maravilhoso ou do fantástico, mas ainda assim, um maravilhoso cristão. É nesse sentido que cabe ao historiador moderno ser cuidadoso o suficiente para não transpor nossas categorias modernas e cartesianas de “verdade” para a realidade medieval. Quem nega a relação da história científica moderna com o ofício dos cronistas medievais, naturalmente, recusa essa aproximação.

Trata-se, portanto, de um debate profícuo e que, longe de ser superado, envolve uma profunda reflexão a respeito de quais são as equivalências, no discurso medieval – se é que elas existem – para o que hoje chamamos de “verdade” ou de “processo” histórico. Para dar prosseguimento ao debate, portanto, que fiquemos com a reflexão de Boécio, oportunamente comentada por Umberto Eco (2003, p. nas palavras de Guilherme de Baskerville: “Nada é mais fugaz do que a forma exterior”. REFERÊNCIAS AILES, M. Org. Historiography in the Middle Ages. Brill: Leiden-Boston, 2003. ALMEIDA, N. B. “La tradición homérica en el mundo medieval: una aproximación a los elementos míticos y maravillosos en la Historia Destructionis Troiae de Guido de Colonne”. Porticvm, n. IV, p. Revista Labirinto, Porto Velho-RO, Ano XIV, Vol.

p. Introduction. In: IDEM (Org. Historiography in the Middle Ages. Brill: Leiden-Boston, 2003. ECO, U. Org. Romance in Medieval England, Woodbridge, 1991, p. apud AILES, M. “Early French Chronicle. History or literature?”. XV). São Paulo: Annablume, 2007. GIVEN-WILSON, C. Chronicles: The writing of History in Medieval England. London and New York: Humbledon and London, 2004. GRANSDEN, A. “Propaganda in English medieval historiography”. In. Journal of Medieval History, n. I, p. Brill: Leiden-Boston, 2003. LE GOFF, J. Os intelectuais da Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. Para um novo conceito de Idade Média. Journal of Medieval History, v. n. p. MENACHE, S. “Chronicles and historiography: The interrelationship of fact and fiction”. M. Introduction. In: IDEM (Org. Historiography in the Middle Ages. Brill: Leiden-Boston, 2003. n. n. apud DALE, S. LEWIN, A. W. M. Introduction.

In: IDEM (Org. Historiography in the Middle Ages. Brill: Leiden-Boston, 2003. “Early French Chronicle. History or literature?”. In. Journal of Medieval History, v. n. Introduction. In: IDEM (Org. Historiography in the Middle Ages. Brill: Leiden-Boston, 2003. NOTAS i Mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os intelectuais da Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

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