GANHAR OU PERDER, MAS SEMPRE COM DEMOCRACIA:A TORCIDA CORINTIANA E O PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA

Tipo de documento:Projeto

Área de estudo:História

Documento 1

Entender a Democracia Corintiana no bojo da redemocratização da sociedade brasileira implica enfrentar os modos pelos quais esse processo foi habitualmente analisado pela historiografia, abandonando uma visão estruturalista e passando a focar nos sujeitos. Essa aproximação com o viés das subjetividades demonstra que tal democracia no clube surgiu a partir de outras mobilizações existentes nas arquibancadas do Corinthians, fortemente atreladas aos novos movimentos sociais dos anos 1970 e 1980, ligados à luta por direitos básicos. A metodologia tem como base narrativas dos que viveram o período, de jogadores a torcedores e funcionários anônimos, dialogando com um referencial teórico que contempla a nova historiografia, com nomes como Gohn (1995), Sader (1988), Bihr (1995) e Paoli (1995), além da revisão bibliográfica dos estudos relacionados ao episódio em questão, de autores como Florenzano (2009) e Santos (2004).

“O diferencial entre o Corinthians e outros times é que ser campeão é detalhe”. Trecho e ideia extraída do documentário Ser Campeão é Detalhe: Democracia Corinthiana: Dos diretores Caetano Tola Biasi e Gustavo Forti Leitão) INTRODUÇÃO No dia 14 de dezembro de 1983, quando se disputaria no estádio do Morumbi a final do campeonato paulista de futebol daquele ano, uma surpresa marcou a entrada em campo do time do Corinthians. Em outras palavras: a linguagem futebolística consegue alcançar a máxima expressão dos desejos nacionais de afirmação, parece refletir o sentimento político da época. Os jogadores que erguiam aquela faixa e representavam a Democracia Corinthiana conseguiram sintetizar o espírito e/ou anseios políticos de seu tempo. Tornou-se o microcosmo desse clima do processo da redemocratização no Brasil.

O entusiasmo de Juca Kfouri não era ocasional. Para aqueles que ansiavam por transformações políticas e sociais, os dizeres da faixa externavam o anseio de grande parte da sociedade civil pela abertura política. A participação dos atletas e funcionários através do debate e do voto resultou em conquistas importantes para eles, como o fim da concentração obrigatória dos jogadores casados. Nem as torcidas organizadas foram excluídas do processo democrático, pois participaram do Conselho Deliberativo do clube dois integrantes de cada uniformizada corintiana. Um dos motivos centrais que levou ao surgimento do movimento da Democracia Corintiana foi a tentativa de Vicente Matheus, então presidente do clube, de se perpetuar no cargo, ocupado por ele desde 1972. É o que mostra o testemunho de Sócrates, um dos protagonistas do processo.

Ele afirma que o Matheus, apesar de pouca disposição de manobras para driblar os estatutos e prosseguir à frente do poder executivo do alvinegro do Parque São Jorge, encontrou uma alternativa para ficar no comando: (. A distensão do regime iniciada no governo Geisel mostrava a progressiva falência do modelo de censuras e imposições. Era em meio ao anseio mais amplo por liberdade e democracia que se explicava, assim, o movimento ocorrido no clube. Não por acaso, personalidades ligadas à Democracia Corintiana, como Adílson Monteiro Alves, Sócrates, Wladimir, Juninho, Luís Fernando e Ataliba, participaram de manifestações cívicas como os comícios que pediam “Diretas já”. De certa forma, o clube autorizava a participação dos atletas, uma vez que o próprio diretor de futebol também o fazia.

Faixas como aquela pendurada pela torcida em 1979 indicavam, no entanto, que a Democracia Corintiana não estava restrita aos jogadores, embora tenha sido em torno deles que se concentraram a maior parte das análises sobre o fenômeno. De início, a interpretação dos sociólogos e cientistas sociais da penúltima e última década do regime militar a respeito de tal relação tratou de construir uma imagem frágil e inoperante sobre tais movimentos. Influenciados pelas derrotas que os movimentos sociais sofreram nos anos de 1964 e 1968, acadêmicos e pesquisadores tenderam a explicar ou narrar os movimentos sociais, ou as ações da sociedade civil, através da ótica desoladora de impotência. A suposta inoperância dos movimentos sociais do período, que tinha na situação política adversa dos grupos de esquerda sua base empírica, foi muitas vezes explicada pelos analistas como um fato quase inescapável.

Longe de ver em tal impotência e incapacidade de ação um fator conjuntural, muitos estudiosos interpretavam tal fato na perspectiva do estruturalismo, que define uma segunda forma de compreensão a respeito dos movimentos civis emergentes da década de 1970, como nota Eder Sader: (. nas) interpretações e narrativas desse momento quase nada encontramos a respeito das práticas dos trabalhadores. REFERENCIAL TEÓRICO Na contramão de concepções estruturalistas, surgiram na década de 1980 novos estudos acerca dos movimentos sociais e da sociedade civil como um todo. Tais estudos passaram a questionar as interpretações que definiam a passividade das ações da sociedade civil e a corrente estruturalista como detentora de um saber total. Assim, passou a ser questionado o papel passivo antes atribuído aos personagens que compunham estes emergentes movimentos sociais – pois eles teriam desenvolvido uma nova forma de pleitear seus direitos através de um modelo original de ação política.

É nessa linha que se pretende trabalhar, buscando pensadores que, a partir no final da década de 1960 passaram a defender novas propostas interpretativas para além do marxismo clássico. Dentre estes pensadores destacam-se os nomes de Foucault, Castoriadis, Deleuze, Guattari, E. ” (1988, p. O novo sujeito estaria, neste caso, intimamente ligado às ações travadas no cotidiano popular, nas conversas com seus iguais, onde tomava consciência dos seus direitos violados, da escassez de serviços básicos, da defasagem salarial, etc. Como consequência, tais autores passam a enxergar novos espaços de organização política em locais como as reuniões entre moradores das múltiplas Associações de Bairros e nos encontros entre membros das CEBs da Igreja Católica. Foi dentro desses novos espaços que, segundo Paolo (1995), teria se articulado um discurso “contra o Estado”, baseado na percepção de um “antagonismo radical” que fazia das demandas dos movimentos sociais um meio de que eles viessem a se pensar “de modo autônomo sem o pesado estigma de serem figurações passivas, ou clientelizadas, da dinâmica estatal”.

Ao focar sua atenção em movimentos de reivindicação mais direta frente ao Estado, tais análises acabaram por desconsiderar outros universos de ação que podiam assumir caráter igualmente político. Na época o pessoal que estava saindo do país veio pedir para a Gaviões porque eles aceitaram a ideia Gaviões. Eles disseram que ninguém tinha coragem de abrir uma faixa para cem mil pessoas: ‘vocês vão abrir’ e os Gaviões compraram a briga. Na época foi todo mundo para o banquinho do Doi-Codi. O presidente na época era o Julião e os policiais vieram aqui e pegaram todo mundo. Ninguém tinha feito isso na época da ditadura, então os Gaviões eram uma força diferente das outras torcidas”.

Dentro do elenco do Sport Clube Corinthians Paulista, podemos também apontar o descontentamento de alguns jogadores que viam na Democracia Corintiana um movimento comandado por dois ou três privilegiados. É o caso do goleiro Rafael, que comentara como ele percebia o funcionamento da Democracia. Vejamos a conclusão que Rafael fazia do movimento: “(. aqui três decidem e o resto tem que dizer amém (. Eu não sei onde está a democracia que tanto apregoam por aí. É possível, através de tais citações, perceber que a luta dos jogadores em muitos casos confundia-se com a dos torcedores. METODOLOGIA Para tentarmos compreender a participação e as experiências dos “novos sujeitos” do mundo esportivo no processo político dos anos 1980, pretendemos privilegiar, além dos jogadores, o testemunho de alguns participantes anônimos do movimento: os membros das torcidas organizadas.

Junto com os próprios atletas, foram estes que ajudaram a dar uma forma ao movimento, expressando um diálogo direto entre campo e arquibancada. Analisar as estratégias de parte da torcida organizada de disseminar os valores democráticos através de faixas com dizeres cívico-político, da participação de manifestações políticas, como no caso dos comícios das Diretas Já!, da interação com outros movimentos políticos, sociais e culturais e da interação com a Democracia Corintiana, nos diferencia de análises que não contemplam estes personagens na arena política da redemocratização brasileira. A opção em analisar o processo de disseminação dos ideais democráticos durante o processo de abertura política brasileiro através de torcedores de futebol se liga às mudanças ocorridas no âmbito da historiografia nas últimas cinco décadas.

Graças a essa virada em direção à dimensão cultural, a história do esporte, que antes era tema para amadores, tornou-se profissionalizada, constituindo um campo com suas próprias revistas - como a International Journal for the History of Sport. No Brasil existe um Laboratório de História do Esporte e do Lazer de atividade acadêmica intensa, coordenado pelo professor Victor Mello da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dentro dessa proposta, tentaremos analisar a participação da torcida no movimento da Democracia Corintiana através de testemunhos diversos – de modo a realizar o que o antropólogo Clifford Geertz (1989) define como uma “descrição densa”. Tais testemunhos serão buscados, de modo especial, no âmbito da imprensa escrita, que conferiu grande destaque ao movimento, e através do recurso à chamada “história oral”.

O recurso à imprensa, principalmente a jornais e revistas esportivas, tem por fim oferecer uma primeira porta de entrada para a compreensão do fenômeno social analisado. A utilização da História Oral possibilita assim que se confira visibilidade histórica a sujeitos cujos testemunhos não chegaram a ficar registrados em outros tipos de fonte. No entanto, o uso da história oral se fará com o cuidado de submeter as fontes orais aos crivos analíticos sistematizados em textos como os de Beatriz Sarlo (2007) e Pierre Bourdieu (2015). Três torcedores aceitaram de antemão dar entrevistas, são eles: Osíris, Daga e Dentinho. O último citado foi presidente da Gaviões nos anos 1990; Daga foi um nome indicado por vários componentes da Gaviões quando recolhemos, na sede da torcida, informações sobre um integrante participativo no processo de redemocratização; e Osíris, pelo conhecimento que possuímos de sua trajetória dentro dessa torcida.

A partir deles, no entanto, se pretende chegar a outros torcedores anônimos cujas histórias fizeram parte desse processo. Capítulo 4 No quarto capítulo, pretendemos mostrar os conflitos internos da Democracia Corinthiana com a ala conservadora representada por Leão, Biro-Biro e Waldemar Pires e a ala 'democrática', com a representatividade de Sócrates, Casagrande e Wladimir. No final desse processo histórico, as forças conservadoras do futebol destroçaram qualquer vestígio ou legado da Democracia Corinthiana. Em paralelo, conflitos internos da Gaviões da Fiel deixaram embates que, do mesmo modo, trouxeram avanço e recuo para ambos os lados. Porém, forças conservadoras “engolem a ala "libertadora do futebol" e colocam a "ala conservadora do Carnaval no patamar mais alto de uma torcida organizada.

Despolitização, carnavalização e modernização do futebol cavam a sepultura lenta e gradual de uma torcida que, para poder "Reivindicar o direito da fiel de torcer sem ditadores” havia chegado tão longe. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984. ARTURI, Carlos. O debate teórico sobre mudança de regime político: o caso brasileiro. Revista Sociologia e Política, Curitiba, n. BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. A Longa Duração. IN: Escritos sobre a História. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978. Campinas: Papirus, 1985. CASTRO, Celso; D´ARAÚJO, Maria Celina. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. CASTELLS, Manuel. Entre práticas e representações. Lisboa: DIFFEL, 1990. CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia:o discurso competente e outras falas.

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