Kant e o mal: a impossibilidade de uma vontade diabólica na natureza humana

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Área de estudo:Serviço Social

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Cinara Maria Leite Nahra NATAL/RN 2018 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes CCHLA Santos, Claudio Ananias Alves dos. Kant e o mal: a impossibilidade de uma vontade diabólica na natureza humana / Claudio Ananias Alves dos Santos. f. il. Maldade. Vontade diabólica. I. Nahra, Cinara Maria Leite. II. Aos meus amigos e colegas de trabalho e estudo. Do PPGFIL – UFRN e do Curso de Ciências da Religião – UERN, pelos freqüentes diálogos nos corredores do Setor 2 (UFRN) e no saguão do Complexo Cultural da UERN. Aos meus professores do PPGFIL: Cinara Nahra, orientadora e pessoa amiga (quem a conhece logo se encanta com sua personalidade).

Todas as orientações foram objetivas, efetivas e assaz relevantes. Professores das disciplinas que participei: Antônio Basílio, Joel Klein, Maria Cristina, Daniel Durante, Leonel Ribeiro e Cinara Nahra, por todos os ensinos úteis para esta formação. A fraqueza seria uma inclinação para uma ação que contraria às próprias máximas, sendo fraco e agindo inversamente à lei moral. A impureza está numa ação correta que, no entanto, não tem como fundamento a lei moral. A malignidade seria a decisão de fazer o mal, tendo as intenções e motivações egoístas na frente da lei moral. Mas, o quarto nível de mal, que para Kant não seria possível de existir, consiste numa ação maligna em que uma vontade puramente diabólica se estabelece.

O mal nesse sentido, diabólico, propõe sua querência a partir de uma corrupção natural da vontade. However, it indicates the concept of a fourth level that would not be possible, namely a diabolical will. Weakness would be a penchant for an action that goes against our own maxims, being weak and acting inversely to the moral law. The impurity is in a correct action that, however, is not based on the moral law. Malice would be the decision to do evil, having selfish motives and intentions in front of the moral law. But the fourth level of evil, which for Kant would not be possible to exist, consists in a malign action in which a purely devilish will is established. Anth Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (Antropologia de um ponto de vista pragmático) MAM Mutmaßlicher Anfang der Menschheitsgeschichte (Começo conjetural da história humana) KrV Kritik der reinen Vernunft (Crítica da razão pura A/B) KpV Kritik der praktischen Vernunft (Crítica da razão prática) RGV Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft (A religião dentro dos limites da simples razão) GMS Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundamentação da metafísica dos costumes) MS Die Metaphysik der Sitten (Metafísica dos costumes) ZeF Zum ewigen Frieden (A paz perpétua) Acrescento à lista o escrito pré-crítico de Kant, Ensaio sobre as doenças da cabeça de 1764 ENSAIO (Ensaio sobre as doenças da cabeça) 10 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Objetos da razão prática.

Quadro 2 - Comparação do bem e do mal com o prazer e a dor. Quadro 3 - Definições de propensão, instinto, inclinação e paixão. Quadro 4 - Relação entre razão, lei moral e inclinação. Quadro 5 - Onomástica das deficiências da cabeça – ENSAIO. O conceito de santidade. O bem e o mal como objetos da razão prática. Por que uma Lei Moral e não um fundamento para o mal?. O CONCEITO DE MAL EM IMMANUEL KANT. O problema do mal em Kant. Liberdade e intenção (Gesinnung). Razão e patologia. Graus mais leves da patologia. Graus mais pesados da patologia. A sensibilidade. O bem como derivado da lei moral, e o mal quando oposto a ela. Na Religião, o enfoque é distinto, pois o problema do mal se insere na análise da natureza do indivíduo, em seu caráter.

Visa identificar como é possível as ações serem tomadas, por que as ações são tomadas de uma forma ou de outra. Enquanto na KpV o foco está nas ações (ações boas ou más), na Religião o foco é o indivíduo (indivíduo bom ou mau). Ambas as análises estão interligadas, uma vez que a disposição para o bem gera boas ações, e a propensão para o mal gera ações más. Por fim, a última parte da pesquisa traz um capítulo que considera a questão contemporânea do mal e da moral, tendo em vista dois filósofos mais recentes que dialogam com a tese de Kant, embora discordando dela ou mostrando que a mesma não é suficiente para solucionar certas questões particulares que se evidenciam no contexto histórico mais próximo.

São os temas da banalidade do mal, com Arendt, e do fundamento da moral, com Tugendhat. A LEI MORAL COMO IMPULSORA PARA AS AÇÕES Na discussão sobre o mal na concepção kantiana, em seus níveis de fraqueza, impureza e malignidade (desenvolvidos na parte dois dessa pesquisa), que estabelece a impossibilidade de uma pura maldade na natureza humana, e que traz um referencial moral do homem tanto para as boas ações quanto para as ações más, o estudo da Lei Moral é importante na medida em que Kant estabelece a mesma como impulsora das ações:. Mas a lei moral é em nós motivo impulsor = a; por conseguinte, a falta de consonância do arbítrio com ela (= 0) só é possível como conseqüência de uma determinação realiter oposta do arbítrio, i.

e. O conceito de Lei Moral Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, Kant apresenta a necessidade de uma lei moral que possa referenciar universalmente as ações humanas, o que seria uma “pura Filosofia Moral” não sendo afetada pela influência somente empírica. E essa necessidade, de haver tal filosofia moral, conforme ele discorre, é evidente pela “ideia comum do dever e das leis morais” (GMS, 2007, p. A lei moral, portanto, é um princípio universal que não permite a sua contradição e cuja fórmula obedece a lei suprema que exige ações que possam ser universalizáveis. O princípio da lei suprema é este: Age sempre segundo aquela máxima cuja universalidade como lei possas querer ao mesmo tempo; esta é a única condição sob a qual uma vontade nunca pode estar em contradição consigo mesma, e um tal imperativo é categórico.

GMS, 2007, p. Conforme aponta Beck, conquanto a lei moral seja apresentada como um fato que aparentemente não pode ser deduzido, devendo fornecer as bases de uma dedução da liberdade, a lei moral, o fato da razão, é usado como “o prius para deduzir outra coisa, a saber, a liberdade que é sua ratio essendi” (BECK, 1963, p. tradução nossa). A interpretação dessa proposição de Kant ressaltará a conjecturada existência de uma lei moral universal e necessária. Assim, existe um princípio satisfatório, considerando que o imperativo categórico não pode ser deduzido, e não é compreendido da mesma forma que o são os fatos do mundo da experiência. Ademais, o imperativo categórico é um fato, como colocado, “fato da razão” que está presente na razão, por isso noumenal.

Uma vez que Kant identificou a liberdade como autonomia com a lei moral (33 [122]), talvez o segundo e o terceiro possam ser considerados como um só. Mas existe uma distinção prima facie entre a "consciência da lei moral", que certamente pode ser dito existir como um fato (quer que desejemos chamá-lo de "fato da razão" ou não), e a própria lei, da qual nós estamos conscientes (cuja "fatualidade" está sub judice). BECK, 1963, p. Mas, caso essa distinção prima facie seja válida, o argumento de Kant não se torna circular. E isso permite que o fato no primeiro sentido realmente exista, não implicando o “fato” no segundo sentido. É verdade que o fato da razão, considerado sob a perspectiva objetiva, deve se manifestar mediante a consciência a priori do dito princípio, pois este consiste em uma lei da liberdade, isto é, um princípio moral puramente racional, a priori, atemporal; logo não se trata de uma legislação que rege e determina os fenômenos – mas que deve determinar (ficando sempre em aberto se, de fato, a representação desta lei determina as ações humanas).

CHAGAS, 2010, p. Assim, pela distinção que encontramos entre a lei e a consciência da lei, o fato da razão pode nos indicar um princípio de validade universal como sendo a consciência empírica desse princípio moral – e não a própria lei que determina os fatos. Na explicação de Borges, Kant busca provar o fato da razão argumentando que a razão prática pode ser determinada sem os móbeis da sensibilidade, pela consciência da lei moral, sem dados que antecedem a razão. O fato da razão, portanto, é “a consciência da lei moral, a qual é denominada fato porque “não pode 22 ser obtida a partir de dados antecedentes da razão, por exemplo, pela consciência da liberdade, vista que ela não é dada anteriormente”” (BORGES, 2012, p.

Dessa forma, sua tarefa na segunda Crítica consiste em “afastar a razão empiricamente condicionada da presunção de querer fornecer sozinha, exclusivamente, o fundamento de determinação da vontade” (KpV, 2016, p. pois, enquanto o uso da razão pura é imanente, o uso da razão prática é transcendente, sendo “o uso empiricamente condicionado que se arroga poder absoluto. e se expressa mediante imposições e comandos que ultrapassam totalmente seu domínio”, (KpV, 2016, p. Dessa forma, a Lei Moral é estritamente 23 racional e universal, não estando restrita a preceitos de caráter subjetivo ou hábitos culturais ou sociais. É da racionalidade humana que se derivam os valores éticos, sendo os princípios da moral o tratamento do uso prático e livre da razão. A lei prática, no entanto, está definida nos imperativos categóricos (regras designadas pelo verbo “dever”) que “determinam apenas a vontade, seja ela suficiente ou não para o efeito” (KpV, 2016, p.

são regras corretas praticamente. Dessa forma, as máximas são princípios e a leis práticas imperativos. Como exemplos de ambas, temos dois casos: (1) Para as máximas, alguém pode adotar não receber nenhum insulto sem se vingar, isso se constitui máxima particular e não está em consonância com a lei prática; (2) Para as leis práticas, alguém pode adotar nunca fazer promessas mentirosas, mesmo isso se constituindo algo referente à 24 vontade privada dessa pessoa, o descobrimento dessa regra como correta praticamente a faz uma lei, por ser um imperativo categórico. No sentido de distinguir a lei prática da máxima, vemos que há dois aspectos da vontade (Wille), o aspecto legislador de onde procedem as leis, e o aspecto do arbítrio (Willkür) de onde procedem as máximas.

O prazer se torna prático somente porque a determinação da capacidade de desejar é dada pela sensação de agrado que o sujeito espera da efetividade do objeto. Assim, Kant insere a expressão faculdade de desejar inferior como o fundamento de determinação da vontade colocado nela (nessa faculdade inferior) pelas regras práticas materiais, mas já desfaz a possível noção duma faculdade de desejar superior que se fundamenta nas leis meramente formais da vontade, visto que esta última tem uma base apenas na intensidade, duração, 25 facilidade de aquisição e freqüência de repetição do agrado. Chega-se à conclusão que o princípio da felicidade própria, apesar de ser usado o entendimento ou razão, não teria outro fundamento de determinação da vontade que não o da faculdade de desejar inferior, sendo, portanto, a razão pura prática unicamente por si, podendo determinar a vontade unicamente pela forma da regra prática, ausente de quaisquer representações do que seria agradável ou desagradável, pois tais representações são condicionadas empiricamente.

Até aqui, Kant está evidenciando o fato de que o fundamento de determinação da vontade, ao ser empírico, não é possível considerá-lo uma lei, “pois essa lei, enquanto objetiva, tem de conter em todos os casos e para todos os seres racionais precisamente o mesmo fundamento de determinação da vontade” (KpV, 2016, p. Na sequência de sua abordagem, Kant apresenta essa evidência de forma cíclica e com acréscimo de outros exemplos e particularidades. Então, como a suposição se mostra falsa, concluímos que há uma primeira causa de cada acontecimento. E essa causa, na assertiva de Kant, é uma “espontaneidade absoluta”, iniciada por si mesma. Herrero escreve que Kant “mais tarde a chama de “começo absoluto”, e conforme sua nova terminologia da razão, “liberdade transcendental”.

Assim, o próprio conceito de causalidade segundo a natureza exige o princípio de uma causalidade por liberdade” (HERRERO, 1991, p. Ora, não seria o caso de explicar o “primeiro começo absoluto” do decorrer sucessivo do mundo, isto é, o começo temporal, na medida em que a causalidade por liberdade entra na tese como uma necessidade da compreensão, por parte da razão, da série do mundo, como o problema da primeira causa da origem ou começo dinâmico de uma sequência que, a partir dele, será limitada, e não de um começo temporal. O que deve ser não é a experiência que o determina, mas só uma razão que quer determinar a realidade da experiência por meio de ações, iniciar uma série de efeitos, fazer dos motivos do dever causas de uma configuração da realidade.

Por isso Kant pode dizer que “o conceito prático de liberdade se fundamenta nessa ideia transcendental de liberdade” (KrV B, 61), pois essa ideia deixa o caminho aberto à lei do dever” (HERRERO, 1991, p. Dessa forma, é no reconhecimento da possibilidade de escolha da regra válida para todos que Kant insere o problema da liberdade, pois a vontade livre que não dependa de uma base na experiência tem que ser determinável, encontrando um fundamento de determinação na lei. A conclusão a que Kant chega é de que liberdade e lei prática incondicionada se relacionam de forma recíproca. Mas, o conhecimento disso não começa pela liberdade, primeiro, porque o seu primeiro conceito é negativo e, segundo, porque não é possível inferi-lo da experiência na medida em que a experiência só fornece a lei dos fenômenos com seu mecanismo natural oposto à liberdade.

E a moral que se baseia na ideia de prêmio ou castigo também é heterônoma, sendo o móvel da ação posto na sensibilidade. Em contraponto a isso, a autonomia torna possível ao homem poder determinar as 28 normas de conduta, sendo livre de qualquer dependência que difere da razão. A realização pessoal, ou essencial ocorre na obediência à lei que é própria da vontade humana. Em síntese, teríamos três situações de existência: (1) o animal que é determinado pela sensibilidade; (2) o ser divino que só é determinado pela razão; e (3) o ser humano que é um ser híbrido, ao mesmo tempo razoável e sensível. Nesta condição, ele pode optar pelo procedimento que lhe aprouver, não estando restrito à um único proceder, como a condição do animal, mas, enquanto ser sensível, sua vontade lhe faculta a escolha de uma máxima que tanto pode estar de acordo ou desacordo com o princípio moral.

Assim ele expôs Também possuímos um poder de ultrapassar as impressões exercidas sobre a nossa faculdade sensível de desejar, mediante representações do que é, mesmo longinquamente, útil ou nocivo; mas estas reflexões em torno do que é desejável em relação a todo o nosso estado, quer dizer, acerca do que é bom e útil, repousam sobre a razão. Por isso, esta também dá leis, que são imperativos, isto é, leis objetivas da liberdade e que exprimem o que deve acontecer, embora nunca aconteça, e distinguem-se assim das leis naturais, que apenas tratam do que acontece; pelo que são também chamadas leis práticas (KrV, 2001, B 830). A lei prática, por conseguinte, indica a necessidade de a conduta humana estar subordinada a máximas morais.

Ou seja, como Kant explica: “o princípio objetivo (isto é o que serviria também subjetivamente de princípio prático a todos os seres racionais, se a razão fosse inteiramente senhora da faculdade de desejar) é a lei prática” (GMS, 2007, p. E, diferente de um imperativo conjectural ou hipotético, que traz a necessidade prática de agir conforme o que se quer, o imperativo que é auto definível e indubitável, ou na assertiva de Kant, categórico, “seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade” (GMS, 2007, p. Então, seu objetivo é investigar a possibilidade de um imperativo categórico, determinando quais princípios podem ser imperativos categóricos, caso haja algum. Uma vez que um imperativo categórico deve restringir a vontade sem referência a qualquer objeto de desejo, deve ser a priori, pois o prazer ou o descontentamento associados à representação de tais objetos fornece apenas motivos empíricos para a vontade.

Por uma razão similar, no entanto, um imperativo categórico deve ser sintético e não analítico. Esses princípios começam com o conceito de uma vontade que definiu um fim e extrai do próprio conceito dessa volição a restrição de que o uso dos meios necessários para o fim também deve ser desejado. Mas no caso de um imperativo categórico, nenhuma volição prévia de qualquer tipo pode ser pressuposta. E isso incide sobre a avaliação de que as pessoas não têm o direito de fazer julgamento sobre o que devem fazer ou não à sua maneira particular, nessas situações de confronto com essa consciência universal. Para a consciência comum, então, se exige uma verdade, uma verdade moral.

O problema do “fundamento da moral”, então, estaria no aspecto legítimo dessa verdade moral. A pergunta, então seria: o que é que define de maneira real a verdade moral? Onde ou em quê essa verdade estaria justificada? A moral, nesse caso, estaria fundamentada num sistema de regras que espera a conduta humana a partir do conceito do bem e do mal, mas esses preceitos seriam sistematizados no universal, numa exigência comportamental para todos, ou seja, “como todos os outros deveriam comportar-se em seu lugar, em suma, a exigência de universalidade” (CONCHE, 2006, p. A crítica a Kant está no sentido de que, aqui ainda não se está fundamentando a moral, se está colocando apenas a sua forma, que é o reconhecimento de que a consciência comum tem o direito de fazer juízos morais.

A forma da consciência comum é por toda parte e sempre a mesma a partir do momento em que há juízo moral, mas seu conteúdo é variável: a consciência comum pagã não é a consciência comum cristã, etc. CONCHE, 2006, p. É nesse sentido que vem a crítica à Kant, porque quando ele diz que “. nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade” (GMS, 2007, p. na explicação de Conche, Kant está analisando a consciência comum cristã ou uma que seja influenciada pelo cristianismo. A crítica que Conche faz de fundamentar a moral no imperativo categórico tem a ver com a questão de se máximas subjetivas não estariam sendo universalizadas com o imperativo categórico.

Então, seria preciso fazer a diferença entre forma (consciência comum, imperativo categórico, universalidade) e conteúdo (a igualdade dos homens enquanto pessoas, os verdadeiros direitos do homem). No entanto, essa é apenas uma evidencia crítica à tese kantiana do imperativo categórico, visto que em Kant o fundamento da moralidade das ações está na racionalidade, isto é, na autonomia da vontade, tendo por implicação o cumprimento do dever por dever, independente das disposições sensíveis. A vontade O conceito de vontade está ligado a determinação completa por princípios a priori e sem quaisquer móbiles empíricos, que Kant chama de vontade pura. A vontade, então, é a faculdade de escolher o que a razão conhece como 34 praticamente necessário, independente das inclinações.

Considerando a condição racional do homem, a forma de imperativo que a lei tem é decorrente de uma vontade pura, mas não santa (como se nunca entrasse em conflito com a lei moral) visto que está afetada pelas falhas e motivos da sensibilidade. Então, a lei moral existe para os homens como um imperativo absoluto por ser uma lei incondicionada. A vontade se relaciona com essa lei na 35 forma de dependência, como que necessitando dela, apesar da lei objetiva para a ação ter intrínseca as pretensões originárias das causas subjetivas, tendo a possibilidade de ser contrária ao fundamento objetivo de determinação. Consequentemente, informa Kant, ela precisaria de uma resistência da razão prática, “enquanto necessitação moral, resistência que pode ser designada uma coerção interna, mas intelectual.

” (KpV, 2016, p. Dessa forma, “a virtude é o firme propósito do homem de resistir a suas inclinações naturais” (HERRERO, 1991, p. A conclusão que se chega é que a liberdade interna só é possível na forma de virtude. O que parece a nós como bom e desejável é essa condição suprema, de forma que Kant chama a Virtude de “Bem Supremo”. HERRERO, 1991, 38). Mas, apesar da virtude ser esse propósito firme para com a razão prática, para com a lei moral, a posição de Borges quanto à sua eficácia está restrita ao primeiro grau de propensão ao mal, a fraqueza, se considerarmos que a virtude se coloca como necessária para o sentido moral. E os únicos objetos de uma razão prática são o bem e o mal.

O bem como um objeto necessário da faculdade de desejar, e o mal um objeto da faculdade de aversão, embora ambos ocorram conforme um princípio da razão. E, por ser princípio da razão, está descartado a derivação do mesmo da experiência, visto que a razão é quem julga a relação entre bom (meio para o agradável) e mau (causa do desagrado). Ora, para não haver confusão entre os termos, aqui Kant faz distinção entre bem e bem-estar, e mal e mal-estar. O bem-estar ou o mal-estar relaciona-se ao estado de agrado ou desagrado, isto é, referido no tocante à sensibilidade. Ou seja, é próprio da natureza humana ser constituída por uma propensão para o mal e uma disposição para o bem, no entanto, no que diz respeito à atualização (vinculada ao agir) de um desses dois modos de abordar a lei moral, cabe ao homem, livremente, escolhê-la e edificá-la.

SPINELLI, 2013, p. Como já observamos, a escolha do homem pela prática da lei moral ocorre em virtude da sua liberdade, sendo ela a razão de ser da moralidade. E esta moralidade é conhecida através da consciência da lei moral, sendo obtida pela concepção de ser racional. Mas, conquanto a razão prática tenha como objetos o bem e o mal, e, embora a disposição para o bem e a propensão para o mal estejam sempre originárias na natureza humana, a condição suprema de todo bem existe na vontade cuja regra de conduta está em conformidade com a lei moral. Uma vontade que age baseada em princípios estabelecidos pela razão pura prática é uma vontade que não apenas deriva ações de princípios (coisa que diz respeito ao uso lógico da razão prática e que todo ser humano faz), mas que age segundo os princípios da razão pura, e não segundo os princípios empíricos da felicidade ou do amor de si.

NAHRA, 2008, p. Por conseguinte, é apontado três tipos de objetos, oriundos da razão teórica, da razão prática e da razão pura prática. Para a razão teórica, os objetos são dados pela sensibilidade (que fornece intuições) e são pensados pelo entendimento gerando conceitos. Ou seja, a intuição sensível dá o objeto e a razão no seu uso teórico se relaciona com eles gerando o conhecimento. O acréscimo de um elemento em contraposição à essa lei e à esse dever, como o caso do mal radical, apenas propõe que, para a dinâmica da ação humana no uso da sua liberdade, se faz necessária a coexistência da lei moral e do caráter inato do mal radical.

Ao procurar agir mal, o homem o faz tendo consciência da lei moral. Na Religião, lemos que O homem (inclusive o pior), seja em que máximas for, não renuncia à lei moral, por assim dizer, rebelando-se (com recusa da obediência). Pelo contrário, a lei moral impõe-se-lhe irresistivelmente por força da sua disposição moral; e, se nenhum outro móbil atuasse em sentido contrário, ele admiti-la-ia na sua máxima suprema como motivo determinante suficiente do arbítrio, i. e. Ele contrapõe Kant afirmando que, quanto à prerrogativa do filósofo e do ético, há uma limitação de ambos no que concerne à ética, de forma que ambos devem contentar-se com a explicação e o esclarecimento do dado, com aquilo que é, com o que acontece realmente, a fim de poder chegar ao entendimento disso.

No caso de Kant, ele vai, além disso, fundamentando todo seu sistema ético antes de qualquer investigação, admitindo, a partir dessa petição de princípio, que existem leis morais puras. Por conseguinte, depois de estabelecer um primeiro conceito de lei, limitado à lei civil, Schopenhauer apresenta um segundo significado que se aplica à natureza, metaforicamente chamado leis da natureza, e explica que tal significado guarda uma parte bem pequena que tem a ver com o a priori, “e é isso que constitui o que Kant isolou de modo perspicaz e excelente e reuniu sob o nome de Metafísica da natureza” (SCHOPENHAUER, 2001, p. Por outro lado, Schopenhauer interpreta que na vontade humana há uma lei, considerando que o homem pertence à natureza, que pode ser demonstrável, mas que não necessita de um imperativo categórico, sendo uma necessidade efetiva.

Ele a chama de lei da motivação porque cada ação só se dá como conseqüência de um motivo suficiente. O questionamento, então, refere-se ao valor do principio, o que vale o próprio princípio? “Que seja verdadeiro, ninguém duvida. No entanto ainda é preciso estabelecer seu valor de verdade, e isso só pode ser feito por uma razão, não por uma causa. Porque a causa explica o fato, enquanto a razão estabelece o direito. ” (CONCHE, 2006, p. Mas, ainda assim, em Kant, diante do fundamento da moral na razão pura que é uma faculdade legisladora e que produz para si mesma sua lei moral universal, verifica-se que uma inversão moral da lei, ou melhor, no lugar da lei moral a existência de um fundamento para o mal que, ao invés de impulsionar o homem para o bem, o estimulasse para o mal, não poderia ocorrer, por vários motivos.

A respeito da obra A Religião, Caygill sugere que “O texto de Kant sobre teologia filosófica pode ser lido como suplemento a CRPr” (CAYGILL, 2000, p. Conforme chama a atenção Höffe, a filosofia da religião e da moral em Kant estão em consonância visto que “ele projeta um conhecimento filosófico de Deus que se funda no conceito de moralidade” (HÖFFE, 2005, p. É nesse sentido que, para Kant, Deus é um postulado da razão prática pura. E, ao apresentar essa religião da razão prática nas suas duas últimas críticas (na Dialética da Crítica da razão prática e na Crítica da faculdade do juízo), Kant amplia a abordagem na Religião, em que “O ponto decisivo é formado pelos conceitos do sumo bem e do mal” (HÖFFE, p.

Então, a concepção religiosa do sumo bem é refletida a partir da relação existente entre o princípio bom e mau presente na natureza humana. Objetivamente, o homem escolhe e decide pela moralidade, mas num determinado momento é fraco e age contrariamente à lei moral. A impureza está na ação correta mas não pelo móbil, não tendo como fundamento a lei moral. E a malignidade seria a decisão de fazer o mal, quando realmente se coloca as intenções e motivações egoístas na frente da lei moral (a inversão da máxima moral sugerindo a inclinação para adotar as máximas más). Como exemplo, alguém pode tornar-se homicida por querer o que a vítima possui, ou ladrão por desejar os bens de outro, assim, essa realização do mal é no sentido de desejar conseguir algo, não é uma ação maligna de um mal como uma vontade puramente diabólica.

Uma ação maligna nesse sentido seria o último mal, ou um quarto degrau da maldade, o mal diabólico, que em outros termos seria a querência do mal a partir de uma corrupção natural da vontade. ” (GOETHE apud Spinelli, 2013, p. Além disso, a admissão da existência de um mal radical na natureza humana poderia estar a ferir diretamente os princípios da Aufklãrung que Kant expunha com grandeza. Sobre isso, Spinelli puxa uma nota explicativa: “O iluminismo comportou várias abordagens ao longo do tempo, com efeito, todas conservaram as suas características originais, a saber: a confiança no progresso e na razão e o incentivo à liberdade de pensamento” (2013, p. Ainda sobre essa recepção negativa, Borges salienta em artigo sobre o mal e a coerência do sistema kantiano que a obra A Religião nos limites da simples razão.

acaba deixando descontentes tanto os religiosos, porque Kant racionaliza a fé, quanto os entusiastas do iluminismo, pois este texto parece ser um passo atrás de uma filosofia do esclarecimento. O problema do mal em Kant Discutir o mal em Kant é considerar também o caráter ou o estatuto teórico de sua tese. Se ela está no âmbito da filosofia transcendental, da filosofia pura, sendo uma tese a priori, de um juízo analítico, inserida na sua discussão da moralidade, da teoria moral, ou se trata de uma questão antropológica, uma tese a posteriori, de um juízo sintético, no âmbito das relações sociais, visto que somos seres sensíveis e finitos. Tal questão tem divido os comentadores de Kant. Como exemplo, vejamos o caso de Allison.

Comentando sobre a ideia da propensão para o mal analisada por Allison, o qual entende essa propensão como uma máxima num nível mais alto, ou metamáxima (uma forma de classificar os motivos nas máximas de primeira ordem), Borges (2017) apresenta a questão que se estabelece diante desse entendimento do mal ser essa meta-máxima: como se explica essa ideia de que há uma propensão para o mal e não uma propensão para o bem? Daí, a resposta que Allison apresenta é de ordem empírica: os exemplos 49 que a experiência nos apresenta das ações humanas. Por outro lado, Kant já insere sua posição de que não existe uma maldade inata no ser humano, na medida em que, segundo sua proposição, não se pode estabelecer com segurança, a partir da experiência, que o autor de certos atos maus seja um mau homem, pois para tal seria necessária uma máxima má como fundamento que levaria à um princípio geral de máximas más inerentes ao sujeito.

Dessa forma, ele expõe Assim pois, para chamar mau a um homem, haveria que poder inferir-se de algumas acções conscientemente más, e inclusive de uma só, a priori uma máxima má subjacente, e desta um fundamento, universalmente presente no sujeito, de todas as máximas particulares moralmente más, fundamento esse que, por seu turno, é também uma máxima. RGV, 2008, p. Tal assertiva é logo fundamentada no uso do arbítrio, pois para o fundamento da escolha do homem, ou pelo bem ou pelo mal, é indicada a sua liberdade, pois, caso contrário, não se poderia usar os predicados de moralmente bom e moralmente mau. E, ainda, o fundamento subjetivo de sua liberdade precede os fatos que são apresentados ao seu sentido. No último caso, o não bem pode chamar-se igualmente o mal positivo.

Em relação ao prazer e à dor existe um [termo] médio semelhante, de modo que é o prazer= a, a dor = – a, e o estado em que nenhum dos dois é encontrado, a indiferença = 0). Ora se a lei moral não fosse em nós um motivo impulsor do arbítrio seria o bem moral (a consonância do arbítrio com a lei) = a, não bem 51 = 0, sendo este a simples consequência da carência de um motivo impulsor moral= a x 0. Mas a lei moral é em nós motivo impulsor = a; por conseguinte, a falta de consonância do arbítrio com ela (= 0) só é possível como consequência de uma determinação realiter oposta do arbítrio, i. e. E, como dedução de sua asserção precedente, Kant escreve: “A razão pura é por si mesma prática facultando (ao homem) uma lei universal que denominamos lei moral” (KpV, 2016, p.

Apontada como lei universal, já havia sido apresentada na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, com um conceito referente à uma lei cuja representação determina a vontade para que esta possa ser chamada absolutamente boa e sem restrições. Valendo-se dos mesmos termos, ali está expressa: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal” (GMS, 2007, p. Essa lei, portanto, serve de princípio para a vontade, em conformidade com a razão humana que sempre está de posse desse princípio. A indicação de que esta lei é boa também se explicita nos termos “aquilo que deve ser moralmente bom não basta que seja conforme a lei moral, mas tem também que cumprir-se por amor dessa mesma lei” (GMS, 2007, p.

Em nota, Kant explica que 54 “Propensão é, em rigor, apenas a predisposição para a ânsia de uma fruição” (RGV, 2008, p. Ali, há o exemplo da embriaguez, e a inserção de outros elementos nessa dinâmica de propensão ao mal, a saber, o instinto e a paixão. No caso do instinto, ele está entre a propensão e a inclinação, sendo uma necessidade sentida de realizar algo cujo conceito ainda não está formado. Já a paixão, é uma inclinação que exclui o domínio sobre si mesmo. Na tabela a seguir, apresentamos estas definições: Quadro 3 - Definições de propensão, instinto, inclinação e paixão Propensão Inclinação (Fundamento subjetivo da possibilidade (Desejo habitual, concupiscentia) de uma inclinação) Instinto Paixão (Necessidade sentida de fazer algo sem (Inclinação que exclui o autodomínio) conceito formado) PROPENSÃO → INSTINTO → INCLINAÇÃO → PAIXÃO Fonte: RGV, 2008.

Em seu comentário, Stroud diz Como as predisposições para o bem, a propensão para o mal marca um traço da existência humana que pode, porém não necessariamente, levar à “má” ação. A principal diferença está na valência por detrás do incentivo. Como observa Kant, a propensão ao mal ressalta a probabilidade de uma certa experiência (álcool para um alcoolista, por exemplo) de, uma vez desfrutada, crescer e aumentar na qualidade de desejo habitual – uma inclinação é alimentada por esse ato. Tal inclinação para uma atividade específica não está inicialmente presente na sua forma plena, mas somente em potencial, no ser humano (STROUD, 2004, p. Ou seja, conforme apresenta Kant, a distinção entre a disposição para o bem e a propensão para o mal, que mostra a diferença entre o homem ser bom ou mau “.

Quadro 4 - Relação entre razão, lei moral e inclinação Razão A lei moral → Disposição para o bem Inclinação (concupiscência) → Propensão para o mal Arbítrio (adoção) Lei moral → Bem Inclinações → Mal Fonte: Spinelli, 2013. Em síntese: a lei moral ordena a ação pelo bem, mas a inclinação ou concupiscência sugere a adoção de máximas más. Cada uma das vertentes pode ser tomada pelo arbítrio a partir de uma colocação hierárquica. Ao adotar a lei moral, o bem se estabelece. Ao adotar o móbil das inclinações, o mal se estabelece. E mesmo que existam ações boas, ou legais, a maneira de pensar está corrompida na sua raiz (na intenção moral), e por isso o homem é designado como mau.

No entanto, esse estado corrupto do coração humano, mesmo como sugerido na expressão “o homem é mal por natureza”, significa que, mesmo conhecendo a lei moral, o homem acolhe ocasionalmente desviar-se dela. Não há uma dedução da maldade inata como conceito específico de sempre voltar-se para o mal por querer o mal pelo mal, o que se configuraria um quarto degrau de mal. A inclinação é considerada moralmente má e não como disposição natural da vontade. Nesse sentido, Kant diz que “podemos então chamar a esta propensão uma 58 inclinação natural para o mal, e, visto que ela deve ser, no entanto, sempre autoculpada, podemos denominá-la a ela própria um mal radical inato (mas nem por isso menos contraído por nós próprios) na natureza humana” (RGV, 2008, p.

E, uma razão maligna (uma vontade absolutamente má que se configuraria como um quarto degrau para o mal) “contém demasiado, porque assim a oposição à própria lei se elevaria a móbil (já que sem qualquer motivo impulsor se não pode determinar o arbítrio) e, por isso, se faria do sujeito um ser diabólico. – Mas nenhuma das duas coisas é aplicável ao homem” (RGV, 2008, p. A ideia do mal radical Seguindo a própria proposição de Kant, no que concerne à malignidade, e de que “Este mal é radical, pois corrompe o fundamento de todas as máximas” (RGV, 2008, p. Bassoli indica-o como o terceiro grau de propensão para o mal, sendo “chamado malignidade ou perversidade do coração humano, porque inverte a ordem moral dos motivos no arbítrio, corrompendo, em seu fundamento, a maneira de pensar, razão pela qual é chamado de mal radical” (2010, p.

Aqui, parece ser possível confundir a ideia do mal radical (terceiro nível) com a ideia de um quarto degrau de mal, ou seja, aquele mal posto na sensibilidade do homem ou em suas inclinações retirando a liberdade para uma ação boa. ao encontro da predisposição (Anlage) ao bem, constitutiva da vontade boa. ” (RICOEUR, 1988, p. Höffe explica que este mal “. tem também a propensão fundante de tornar as inclinações naturais fundamento determinante último de seu agir. Com isso, ele põe-se em contradição com a lei moral [. Quanto ao desdobramento dessa teoria do mal radical, ela se associa à noção do ser humano como um ser dotado de racionalidade e, por conseguinte, livre. Isto é, ele tem posse tanto da capacidade para o mal quanto da própria prática do mal.

Höffe indica ainda que a tese de Kant para o mal radical é oposta as respostas oferecidas a questão do sofrimento inculpado (que um Deus onipotente e bondoso poderia e deveria impedir o sofrimento), como apresentadas por Leibniz em sua Teodicéia, e pelos epicuristas e estóicos. E sobre a noção de que o mundo progride do mau para o melhor, quando Kant diz que tal opinião é “provavelmente apenas um pressuposto benévolo dos moralistas, de Sêneca à Rousseau, para incitar ao cultivo infatigável do gérmen do bem” (RGV, 2008, 23), para Höffe “A doutrina kantiana do radicalmente mau contém 61 uma crítica clara a um pensamento utópico de tal tipo” (HÖFFE, 2005, p. No entanto, não parece que a tese de Kant se opõe à crença de Rousseau na natureza boa que se corrompe, mas apenas Kant a referencia para demonstrar a morada do princípio mau ao lado do bom, visto que ele logo escreve:.

e, por conseqüência, segundo sua capacidade, está obrigado a se esforçar para livrar-se dela. Mas, acrescenta-se também que, conforme Höffe interpreta, a crítica de Kant atinge até a doutrina moral que coloca os aspectos maus ou negativos da existência humana como força de superação dos aspectos bons ou positivos, o pessimismo que degenera o homem no mal, visto que a origem do mal se configura na liberdade e que esta (liberdade) possibilita a superação do mal. Ora, como está na perspectiva de Kant, da luta do princípio bom com o mau pelo domínio sobre o homem, ele critica os “moralistas antigos, sobretudo os Estóicos” que procuravam para a liberdade uma independência do poder das inclinações com seu princípio moral de dignidade natural.

Porém, este mal “é um inimigo, por assim dizer invisível, que se esconde por detrás da razão” (RGV, 2008, p. E, enquanto esses filósofos colocavam a liberdade como independente do poder das inclinações, pois seu princípio moral é posto na dignidade da natureza humana, o erro reside na atribuição ao homem de uma vontade não corrompida que acolhe sem vacilação as leis morais nas suas máximas. dado ser imperioso aceitar o homem por natureza (i. e. tal como ele habitualmente nasce) como são quanto ao corpo, não há causa alguma para não o aceitar igualmente como são e bom por natureza, segundo a alma” (RGV, 2008, p. Referente ao segundo ponto, está claro em Kant que o conflito entre o bem e o mal moral se inscreve no contexto da liberdade.

Em seu texto Começo conjetural da história humana, ele indica que. E é nesse sentido que a propensão ao mal já se configura como o mal. Não o mal em seu sentido lato, mas o mal na possibilidade de desviar-se da lei moral, o que ocorre na admissão pelo livre arbítrio, nesse caso, como procedendo da liberdade. Como na Religião, a natureza está referindo-se ao “fundamento subjetivo do uso da sua liberdade em geral (sob leis morais objetivas), que precede todo o fato que se apresenta aos sentidos, onde quer que tal fundamento resida” (RGV, 2008, p. e, conseqüentemente tal fundamento subjetivo seja sempre um ato da liberdade, “uso ou abuso do arbítrio”, pois do contrário não se poderia falar em termos de moralidade ou responsabilidade do homem, tendo assim o conceito de natureza uma aplicação ampla para o gênero humano, o mal é entendido como uma realidade universal.

De forma que o mal é intrínseco à natureza humana, está arraigado nela como essencial, não podendo, portanto, ser erradicada. Ao tratar do tema O homem é mau por natureza, Kant procura esclarecer seu entendimento desse aspecto da seguinte forma: o homem tem consciência da lei moral, porém acolhe na máxima não respeitá-la. E essa inclinação considerada como moralmente má, justamente pela escolha, pode ser imputada a ele, pois são máximas do arbítrio contrárias a lei. É esta inclinação natural para o mal que, também devido ser sempre auto culpada, pode ser denominada de mal radical inato na natureza humana. Mas, de novo, não se deve confundir essa asserção com o caráter do que é maligno, o mal pelo mal.

Nesse caso, temos a perversão do coração, pois o mal radical sendo universal, faz parte da natureza humana, no entanto,em conformidade com sua limitação, visto que da mesma forma, a disposição originária para o bem não foi extinta. UMA VONTADE PURAMENTE DIABÓLICA Considerando que, conforme Kant, não existe uma maldade inata no ser humano, de maneira que não há como afirmar pela experiência que o autor de certos atos maus seja um mau homem, possuindo uma máxima má como fundamento que o direciona ao princípio geral de máximas más intrínsecas ao sujeito; considerando que a inclinação para adotar as máximas más não estabelece a ideia de uma pura malignidade, pois essa inclinação é a concupiscentia ou “desejo habitual”, essencialmente o seu conceito de propensão como “fundamento subjetivo da possibilidade de uma inclinação” (RGV, 2008, p.

sendo contingente para a humanidade em geral; considerando ainda que tal possibilidade de uma vontade puramente diabólica no homem o faria decidir-se racionalmente a buscar o mal pelo mal, a fim de nortear a busca por uma compreensão da noção kantiana para a não possibilidade de uma pura maldade na natureza humana, como sendo um quarto nível para o mal, analisaremos ainda três aspectos dessa questão que podem ser observados empiricamente e que, de forma habitual e em linguagem comum, se inserem nos termos dos vícios, da crueldade e da força maligna, e veremos como os conceitos de liberdade, intenção, racionalidade e sensibilidade podem ajudar nesse tema. Vícios, crueldade ou força maligna A maldade no mundo pode ser observada sob vários aspectos, dentre os quais, podemos indicar os concernentes aos vícios, aqueles que nos chocam como a crueldade, e as ações manifestas com certa aparência de força maligna sobrenatural ou, como algumas religiões costumam nomear, “possessão demoníaca”.

No que concerne aos vícios, que neste caso se diria “incontroláveis” por se adequar à noção de defeito, imperfeição ou deformação cuja alteração funcional traria conseqüências ruins, seria um mal ligado a possibilidade de sua execução como resultado da experimentação e repetição excessiva. Seria o mal que ocasiona tipos de dependência. STROUD, 2004, p. Assim, temos um primeiro aspecto do mal no mundo. E, diante dele, vale ressaltar que sua responsabilidade não é da própria inclinação, mas o homem livremente escolhe incorporá-lo em sua máxima (princípio subjetivo da vontade, neste caso a inclinação). É nesse sentido que o homem se torna mau. Ele poderá desenvolver a propensão, aumentando ou não sua capacidade de adotar a lei moral como principal incentivador para suas máximas, tendo assim um bom ou mau coração.

Os vícios que se enxertam nesta propensão podem, pois, denominarse também vícios da cultura; e no mais alto grau da sua malignidade (pois então são simplesmente a ideia de um máximo de mal, que ultrapassa a humanidade), por exemplo, na inveja, na ingratidão, na alegria malvada, etc. chamam-se vícios diabólicos. RGV, p. Mas, ainda que se chamem vícios diabólicos, é preciso estar atento ao significado dessa expressão, pois, em Kant, o mal pelo mal, ou o fundamento das ações morais na sensibilidade, não pode ser aplicado ao homem tornando-o bestial, e muito menos essa concepção duma razão maligna a qual se oporia à lei moral como motivo em sua máxima. Como vimos, para Kant, a falha humana ocorre por fraqueza, por impureza ou por malignidade (inversão da ordem moral concernente aos motivos do livre arbítrio), mas nunca ocorre por uma pura maldade.

Um quarto degrau para o mal Acerca da vontade diabólica, de uma razão maligna, há passagens da Religião em que Kant argumenta em favor da não existência desse quarto degrau de mal na natureza humana. Ele advoga que no ser humano não deve existir essa vontade absolutamente má, pois a mesma excluiria a vontade boa, deixando o homem na condição de um ser diabólico, pois seria uma razão liberta da lei moral, e a oposição à própria lei seria erguida como motivo ou causa “já que sem qualquer motivo impulsor não se pode determinar o arbítrio” (RGV, 2008, p. Assim, o homem pode ser mau diante da moralidade ao não agir de forma eficiente para com ela, por fragilidade, conhecendo os princípios que deve seguir mas sem encontrar forças para adotá-los, por impureza, tendo suas motivações confusas, maculadas e contrárias aos princípios que a lei moral estabelece, e por malignidade, em que o coração humano corrompido se afeiçoa de máximas que desprezam o motivo derivado da própria lei moral, aderindo aos motivos não morais e cujo máximo de mal são exemplificados por Kant na inveja, ingratidão e alegria malvada.

No entanto, o homem não pode ser mau no sentido de possuir uma razão maligna. Kant escreve:. que naturalmente não é exterminado pelas forças humanas, mas que não se constitui um mal diabólico ou uma razão maligna. Ainda se poderia falar no termo teológico de pecado original que, segundo Kant, tal doutrina é interpretada como o mal radical em nós, cuja tendência é a de nos impelir ao desvio da lei moral que é um fato da razão (a lei moral como mostrada na sua Crítica da Razão Prática). Mas, dessa inclinação para o mal, o homem poderia ser liberto usando sua liberdade para vencer essa inclinação básica, através de uma revolução na forma de pensar.

Dessa forma, para vencer este mal radical, o homem se colocaria perseverante para adequar sua conduta de vida com a santidade da lei, tendo a religião como um referente de modelo da perfeição moral. Ademais, sendo o bem fundamental para a conformação com a liberdade, a existência de um princípio contrário a ele, que tivesse êxito em extinguir essa relação entre bem e liberdade, indicaria a própria extinção da liberdade. Schopenhauer entende que só há um caso em que o valor moral pode ser impresso na ação. quando a última razão para uma ação ou omissão está direta e exclusivamente vinculada ao bem-estar ou mal-estar de alguma outra pessoa que dela participa passivamente. Portanto, a parte ativa no seu agir ou omitir só tem diante dos olhos o bem-estar ou mal-estar de um outro e nada almeja a não ser que aquele outro permaneça são e salvo ou receba ajuda, assistência e alívio.

Somente esta finalidade imprime numa ação o selo do valor moral, que, portanto, repousa exclusivamente no fato de que a ação aconteça ou não aconteça para proveito e contentamento de um outro. SCHOPENHAUER, 2001, p. SCHOPENHAUER, 2001, p. Mas, em Kant, até aqui, a partir de qualquer via, seja pelos vícios, pela crueldade, pela ação demoníaca, pela maldade humana na relação dos povos, pelo conceito de mal radical ou pecado original, uma pura malignidade, uma vontade diabólica ou a realização do mal como inversão absoluta da máxima moral (ao invés de haver a lei moral para o bem, no lugar dela haveria esse fundamento para o mal), é algo que não existe no homem, sendo impossível aos seres racionais possuir esta vontade puramente diabólica.

No entanto, haveria mais para ser colocado em relação a como ou porque essa vontade diabólica se configura impossível? 4. Por que este mal não seria possível? Ora, de um lado temos a admissão de uma propensão para o mal na natureza humana, assegurando a maldade por uma corrupção do coração; e, de outro lado, é negado a malignidade na natureza humana consistindo em ter o mal como causa para a máxima. Conforme Pinheiro escreve, Kant “se nega, porque se a maldade fosse concebida como uma disposição da natureza humana, o homem perderia em sua origem a sua conotação de divino convertendo-se em diabólico; teria a sua origem não propriamente em Deus (no bem), mas no diabo (no mal)” (PINHEIRO, 2007, p.

Tomando como referência a antinomia da razão no que concerne a liberdade e tendo o exemplo de uma ação má que compreende a prática da mentira, poderíamos substituir o exemplo da mentira pelo próprio mal (numa paráfrase de Vaysse sobre o verbete liberdade): poderíamos considerar o mal por dois pontos de vista, o empírico e o inteligível. Do ponto de vista empírico, uma ação má seria um efeito determinado por uma série de causas anteriores que remetem a uma causalidade que desculpa; mas, do ponto de vista inteligível, a ação má será considerada decorrente de um sujeito livre que, por seu ato, inaugura uma série de consequências que ele poderia prever, remetendo a uma causalidade que acusa.

Vaysse conclui: “A liberdade prática é, então, a liberdade efetiva própria do homem enquanto ser racional dotado de um caráter inteligível e capaz de fornecer a si próprio a lei de seu agir” (VAYSSE, 2012, p. Então, em sintonia com essa interpretação, não há espaço para a ideia do homem como um ser diabólico, pois o mal embora não proceda da animalidade, tampouco faz do homem um ser diabólico que procura o mal pelo mal. O fundamento do mal reside na tendência a enganar a si próprio por mentiras na interpretação da lei moral. tradução nossa) 2. Essa noção, no sentido em que está posta, vai coincidir como o que Kant chamou de vontade boa ou má, e tal conceito indica que um Gesinnung maligno não se torna problemático para Kant, pois ele vai introduzir os termos da justificação das máximas e da constituição moral dos agentes.

Isso já se torna claro no uso do adjetivo “radical”, que Kant expressa, não o grau de imoralidade ou a intensidade dos danos causados pelas ações dum agente, mas a localização da fonte ao nível da intenção (Gesinnung) do indivíduo, que seria a raiz invisível do mal. A intenção, 2 Texto original: “An agent’s Gesinnung is good or evil according to the principle of maxim-selection she has chosen, i. e. A partir daí, acolheu na máxima da ação os impulsos sensíveis acima do móbil derivado da lei, e, como resultado, cometeu pecado. E nesse sentido, Kant recorre a expressão bíblica: “Todos pecamos em Adão” (RGV, 2008, p. Razão e patologia Concernente a asserção de que a razão prática é determinada sem os móbeis da sensibilidade, sem dados que antecedem a razão, mas somente pela consciência da lei moral, e de que se acresce a esse dado o mal radical na natureza humana, conquanto seja inclinado a negligenciar tal comando moral em suas ações por vias que se colocam na condição de móbiles sensíveis do arbítrio, ainda poderíamos questionar: haveria abertura para inferir alguma situação particular em que a sensibilidade se evidenciasse na composição do mal? 79 Na Crítica da razão prática, ao introduzir o conceito de causalidade, cuja justificativa está na Crítica da razão pura, apesar de não poder ter apresentação empírica concernente ao conceito de liberdade, ele coloca que.

se nós podemos agora encontrar fundamentos para provar que essa propriedade pertence de fato à vontade humana (e assim também à vontade de todos os seres racionais), então com isso será exposto não apenas que a razão pura pode ser prática, mas que só ela, e não a razão restringida empiricamente, é incondicionalmente prática. KpV, 2016, p. Sobre esse ponto, há o caso da pessoa adotar alguma máxima para sua ação, ao mesmo tempo em que discerne que tal ação não estaria conforme a lei prática, mas apenas conforme sua máxima, no entanto, pode haver o caso de alguém que adota alguma máxima para sua ação sendo afetado patologicamente em sua vontade, mas que não discerne a lei prática, apenas a máxima.

De forma que, o que discerne, é um ser racional, e o que não discerne, é irracional. Sabemos que, conforme Kant demonstra, essa máxima particular não pode entrar em consonância consigo mesma em uma única máxima “enquanto regra para a vontade de todo ser racional” e, “Em uma vontade patologicamente afetada de um ser racional, pode ser encontrado um conflito opondo as máximas às leis práticas reconhecidas por ele próprio” (KpV, 2016, p. E, por isso mesmo, “A regra prática é sempre um produto da razão, porque ela prescreve a ação, como meio, em vista do efeito, como propósito” (KpV, 2016, p. Assim, na vontade patologicamente afetada de um ser racional, o conflito se estabelece colocando as máximas em confronto com às leis práticas que são reconhecidas pelo próprio ser.

Então, a identificação com aquilo que o faz ter consciência moral é o que permite a aceitação da punição como conseqüência de sua ação, havendo, portanto a possibilidade de uma não identificação a partir da ausência de senso moral. Quando esta falta de consciência moral surge na socialização, a psicopatologia a entende como, de fato, um fenômeno patológico. E, no que concerne especificamente a essa questão moral, o lack of moral sense não se concebe apenas como um acidente. Tugendhat explica, reforçando sua crítica a Kant: Compreendendo que a consciência moral é somente o resultado de um “eu quero” – naturalmente não imotivado -, superamos a posição feita por quase todas as éticas tradicionais – especialmente pela kantiana –, de que a consciência moral seria algo fixado em nossa consciência pela natureza.

Foi esta suposição que levou a querer de algum modo deduzir a moral, seja da “natureza” humana, seja de um aspecto dela, como a “razão”. É uma busca por compreender fenômenos distintos da psicose patológica numa relação paralela com o excêntrico da metafísica ou religião. Na introdução ao Ensaio de Kant, Panarra explica que “. a razão humana tem uma inclinação intrínseca para um estado que se assemelha ao delírio, o qual conduz à construção de doutrinas e hipóteses metafísicas sem sustentação racional e com uma natureza delirante” (PANARRA, 2010, p. Em seguida, ele resume a proposição kantiana nestes termos: A aproximação que Kant faz entre o delírio patológico e o delírio da metafísica dogmática.

é um prelúdio à consideração de uma espécie de patologia da razão, que dará origem ao diagnóstico que apresenta a razão humana como contendo em si própria elementos constitutivos ilusórios e delirantes, com uma importância tão decisiva que sem o seu concurso não haveria razão no sentido mais lato, nem razão enquanto faculdade particular, no sentido mais restrito. “A inversão é o princípio que tem a pretensão de apresentar a lógica de desenvolvimento da perturbação do espírito, seja do desarranjo, seja de qualquer outra forma de patologia” (PANARRA, 2010, p. Nesse sentido, questionamos se este conceito de inversão, em seu grau mais elevado, não poderia ser aplicado ao quarto degrau para a maldade, o mal diabólico, em que um ser estaria de tal forma afetado patologicamente pela adulteração do domínio da sensibilidade que agiria com base nessa condição? A fim de buscarmos o entendimento dessa possibilidade, conforme esse texto da juventude de Kant em que ele oferece uma lista de nomes para a designação das doenças da cabeça, vamos analisá-lo mais detalhadamente no que concerne à nomenclatura oferecida.

Kant já começa seu Ensaio indicando que um formoso véu de decoro pode esconder as deficiências ocultas da cabeça e do coração que geram tipos engenhosos e espertalhões, intrujões e tolos, dando uma aparência de sensatez ou decência que bem podem dispensar o entendimento e a retidão. Dito isto, para que alguém fale sobre a razão e a virtude não é preciso que seja instruído ou bem educado, uma vez que “. todas as pessoas anseiam muito mais pelas vantagens do 84 entendimento do que pelas boas qualidades da vontade” (ENSAIO, 2010, p. Segundo ele, nessas situações “o entendimento só intervém para avaliar a soma total da satisfação de todas as inclinações, a partir das finalidades representadas, e para encontrar os meios necessários para as concretizar” (ENSAIO, 2010, p.

Ou seja, o entendimento não fica comprometido mas também não pode superar o poder da paixão. Ele explica da seguinte maneira: Quando. uma paixão é especialmente poderosa, então o entendimento pouco consegue contra ela; pois a pessoa enfeitiçada não deixa de ver as razões contrárias à sua inclinação preferida, só que se sente impotente para as pôr em prática. Quando esta inclinação é boa em si e, se além disso a pessoa é sensata, sucede apenas que a inclinação prevalecente trava o desfecho que parece inevitável por ter em conta as consequências nefastas, então a este estado da razão agrilhoada chama-se insensatez (ENSAIO, 2010, p. A origem da estultícia está na soberba e na avareza, inclinações injustas e detestadas.

Quanto ao soberbo, esse ostenta um ar de superioridade sobre os outros, desdenhando-os. E acredita ser alguém honrado quando, na verdade, está sendo vaiado. Já o avarento, sente a necessidade de possuir muitos bens e, mesmo não podendo dispensar nenhum deles, os dispensa a todos pois não consegue desfrutar deles por sua mesquinhez. Outras diferenças entre a insensatez e a estultícia são: o insensato não é sábio, mas o estulto não é inteligente. Os infelizes que padecem dessa fraqueza nunca podem sair da condição infantil. Inversão ou ânimo perturbado – quanto a esse tipo de deficiência, Kant já informa que há uma variedade de categorias, mas ele as ordena em três divisões: (1) desarranjo, como a inversão dos conceitos empíricos; (2) delírio, como a faculdade de julgar posta em desordem pela experiência empírica; e (3) insânia, em que a razão se inverte quanto aos juízos mais universais.

Para essa classificação, ele explica Todas as demais manifestações do cérebro doente podem ser entendidas, no meu parecer, quer como graus diferentes dos estados referidos, quer como uma infeliz combinação destes males entre si, ou ainda como resultado do enxerto em paixões fortes, de maneira que as podemos subornar à classificação anterior (ENSAIO, 2010, p. Buscando compreender essas manifestações do cérebro enfermo, em seus graus diferentes, que também podem ser combinados ou enxertados em paixões fortes, vejamos cada uma das divisões: 87 Quanto ao (1) Desarranjo – todas as pessoas no uso de sua psique, mesmo em seu estado mais saudável, costumam representar imagens de coisas que não se fazem presentes ou então complementar às coisas presentes imperfeitas com imagens criativas por meio de algum traço fantasioso e poético inscrito na representação sensível.

Kant considera o caso da vigília e do sono, colocando ambos subordinados à mesma lei das impressões sensíveis. Mas Kant conclui que, no caso do desarranjo, a mente perturbada não atacou a faculdade de entendimento, considerando que o erro reside apenas nos conceitos, “e se quisermos tomar as sensações erradas como verdadeiras, os juízos podem ser corretos e até mesmo invulgarmente racionais” (ENSAIO, 2010, p. Quanto ao (2) Delírio – é o caso em que há uma perturbação do entendimento, e ele consiste no ato de produzir juízos de experiência de forma invertida. Mesmo nos juízos mais próximos da experiência, essa doença atenta contra as regras gerais do entendimento. Quem delira tem a lembrança dos objetos com a mesma certeza que qualquer pessoa com saúde, mas nesse caso ele vai interpretar o comportamento dos outros como relacionado a ele mesmo por consequência de uma ilusão.

Quem ouvir o delirante terá a impressão de que a cidade toda só se ocupa dele. Quando ele se baseia em um grande número de juízos de experiência corretos, mas sua sensibilidade se extasia pela novidade e pelo acompanhamento de efeitos apresentados por seu espírito, deixa então de atentar na correção da articulação lógica e produz a insânia. Tal desvario pode coexistir com um grande gênio na medida em que a razão em sua condição lenta não acompanha o espírito agitado. Quadro 5 - Onomástica das deficiências da cabeça – ENSAIO GRAUS LEVES INSENSATEZ ESTULTÍCIA GRAUS PESADOS IMPOTÊNCIA OU IDIOTIA INVERSÃO OU PERTURBAÇÃO Desarranjo Delírio Insânia Fonte: KANT, Ensaio sobre as doenças da cabeça, 2010.

Por fim, Kant conclui mostrando ainda duas distinções entre os que têm o espírito perturbado: (1) aqueles que deduzem representações corretas a partir de representações falsas; e (2) aqueles que deduzem representações incorretas a partir de representações corretas. Os primeiros são os lunáticos, cujo entendimento, no fundo, não sofre, apenas sua psique desperta os conceitos que a faculdade de julgar se serve para comparar posteriormente. Na Antropologia, há um capítulo sobre as fraquezas e enfermidades da alma em relação a sua faculdade de conhecer, em que Kant apresenta os defeitos da faculdade de conhecer em dois tipos: fraquezas ou enfermidades da mente. As enfermidades da mente ficam em dois gêneros: hipocondria e perturbação mental. Na hipocondria, o enfermo tem consciência de que o curso de seus pensamentos não vai bem, e sua razão não tem poder suficiente sobre si mesma para dirigir, deter ou impulsionar o andamento deles.

Nela, “certas sensações corporais internas não descobrem tanto um verdadeiro mal existente no corpo. só trazem apreensão a seu respeito, acentuando ou tornando persistente o sentimento de certas impressões locais” (Anth, 2006, p. Para a loucura tumultuosa ele apresenta a Amência, ou a incapacidade de colocar suas representações tão somente na conexão necessária para a possibilidade da experiência. Para a metódica ele apresenta a Demência (tudo o que o louco conta está conforme às leis formais do pensamento, mas em representações criadas por uma falsa imaginação), e a Insânia (perturbação do juízo que distrai a mente com analogias que se confundem com conceitos de coisas semelhantes entre si, a imaginação simula um jogo semelhante ao do entendimento).

E para a loucura sistemática ele separa a Vesânia, doença de uma razão perturbada. Esse doente psíquico sobrevoa a série inteira da experiência, busca princípios que possam dispensar totalmente a pedra de toque da experiência e presume conceber o inconcebível. Sobre a Vesânia. Para Kant, a maldade humana não se apresenta em demasia, como quer a pura noção teológica, mas se extrai da noção de ordem moral dos móbiles. Dessa forma, ele admite a existência da maldade na natureza humana, mas que a mesma não se ampara apenas nas inclinações. Por outro lado, o motivo humano de simples oposição à lei não é o único elemento explicativo para a adoção de ações más, como se o homem fosse diabólico.

Ele é propenso ao mal, mas nele também existe uma disposição original para o bem. A lei moral, por conseguinte, é que se impõe como motivo suficiente para o seguimento do princípio subjetivo do querer, as máximas. Então, nesse caso, como indicamos no tópico anterior, poderíamos inferir uma possibilidade para o mal a partir de uma determinação sensível, restringida à condição patológica. Conforme consta na KpV, Mas para um ser em que a razão não é unicamente o fundamento de determinação da vontade essa regra é um imperativo, isto é, uma regra que é designada pelo verbo “dever”, que expressa a necessitação objetiva da ação e significa que, se a razão determinasse totalmente a vontade, a ação ocorreria infalivelmente segundo essa regra (KpV, 216, p.

Mas, a razão não determina totalmente a vontade, pois os impulsos da sensibilidade estão presentes. Quando Kant indicou, na KpV, que a Lei Moral teria que determinar suficientemente a vontade enquanto vontade, independentemente de se perguntar sobre a capacidade exigida para o efeito desejado ou aquilo que seria necessário para produzi-lo, ele disse que essa lei deveria ser categórica e prática, e “independente de condições patológicas e, portanto, de condições que aderem de maneira contingente à vontade” (KpV, p. Ora, se “tem de ser independente de condições patológicas”, e as condições patológicas podem alterar a ação que seria decorrente das leis práticas, dos imperativos categóricos, temos aí a sensibilidade como fator determinante das ações, podendo estabelecer pelo menos o mal radical, 94 não o mal diabólico em que a oposição à Lei Moral se colocaria como motivo impulsor.

Dessa forma, mesmo enquanto a Lei Moral é uma lei que determina o agir em conformidade com aquilo que a vontade deseja que se torne uma lei válida universalmente, e todos os indivíduos portadores de uma vontade, que se torna boa exatamente porque ele escolhe seguir a lei moral, cuja regra que tem validade para todos, ao lado dessa configuração se apresenta a sensibilidade atrelada ao mal radical que tem a propensão de admitir máximas más. E, conquanto a consciência moral tenha amparo na Lei, os princípios práticos se estabelecem também como motivos para a ação. Parece então que, em tom de conclusão, embora não tenhamos em Kant uma indicação objetiva para uma possibilidade duma vontade diabólica, e isso se dá em consonância com o estatuto metafísico da sua teoria do mal, se formos pela via antropológica podemos inferir que tal possibilidade se estabeleça.

Apesar de sermos seres racionais, também somos seres sensíveis. E, se da razão pura se origina um sentimento único que nos faz seguir a lei moral, em respeito à lei moral, a sensibilidade também surge como fator determinante do mal, funcionando nos casos específicos: (1) fragilidade, em que o coração humano se ver debilitado ao observar as máximas; (2) impureza, cuja inclinação mistura os móbiles morais com morais; (3) mal radical, cuja propensão objetiva adotar as máximas más; e (4) mal diabólico, apenas nos casos da afetação patológica da sensibilidade, em que a oposição à Lei Moral se elevaria à móbil para as máximas. No livro Eichmann em Jerusalém, escrito em 1963, encontra-se uma alternativa para uma situação particular que, em primeira instância, teria a qualificação de crueldade.

Após testemunhar o julgamento de Adolph Eichmann, um dos responsáveis pelo holocausto judeu, a autora concluiu que o mal não seria oriundo da malevolência ou de um puro desejo de fazer o mal, porém, essa maldade deveria ser proveniente de um sucumbir às falhas de pensamento e julgamento. Conforme depreende ali, como há no ser humano uma tendência para essas falhas, os sistemas políticos opressivos tiram vantagens disso e possibilitam a aparência normal de certos atos que, em sã consciência, seriam considerados impensáveis. Dessa forma, considera-se todos como capazes de agir mal, uma vez que a banalidade do mal não priva os atos maléficos de seu horror, mas nos faz recusar a imagem daqueles que cometem os atos terríveis como simples “monstros”.

Ela lembra uma das falas de Eichmann nesse sentido, quanto à sua consciência: “ele se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam” (ARENDT, 1999, p. Ao comentar as colocações de Arendt para o mal, Souki escreve que (. não se trata de explicar o fenômeno focando-se na moral ou na antropologia, mas sim de compreender, num político, como um Estado pode ser capaz de produzir heterônomos que funcionam, tão eficientemente, como reprodutores de seus objetivos (SOUKI, 1998, p. questão enfoque agentes agentes Para Arendt, o nível estritamente factual de tal crueldade pôde receber esse tipo de resposta compreensiva. A biógrafa de Arendt, Laura Adler, realça essa interpretação ao comentar sobre a obra Origens do Totalitarismo: Tecido de questões existenciais, esse tratado do totalitarismo também é um mergulho na fábrica dos elementos do mal, uma tentativa, para além das categorias de verdadeiro e falso, de humano e inumano, de compreender: não condescender ou rejeitar, mas se eximir de qualquer preconceito para desenhar as linhas de força desse império do terror, em que a dignidade do homem foi manchada para sempre (ADLER, 2014, p.

Dessa forma, Arendt procurou decifrar a ruptura que o mundo sofreu a partir do totalitarismo e que provocou aquele nível de maldade debaixo de um império de propaganda. seria por demais superficial e insuficiente para dar conta da magnitude dos fenômenos contemporâneos. Por ser apenas a submissão da lei moral às máximas do amor de si, o mal em Kant seria demasiado fraco, sendo impotente para dar conta das figuras contemporâneas do mal, presente no genocídio, terrorismo e totalitarismo. BORGES, 2016, p. Porém, quanto ao entendimento de que o tema do mal em Kant torna possível a explicação das atrocidades contemporâneas, autores como Louden e Anderson-Gold vão mostrar que o amor de si não se iguala ao egoísmo, mas tem motivos amplos para as ações.

Borges apresenta o exemplo que Sharon Anderson mostra de que, “se entendemos o amor de si como um interesse de grupo, podemos dar conta inclusive do genocídio” (BORGES, 2016, p. Ernest Tugendhat Outra forma de discutir a questão do mal, e necessariamente a relação com a discussão sobre a moral, parte da perspectiva crítica que Tugendhat faz em relação a Kant. Assim como Schopenhauer, Tugendhat não só procura interpretar, mas propõe corrigir Kant, divergindo do seu fundamento para a moral unicamente na razão. Em sua critica a Kant, ele escreve Kant pensou poder solucionar o problema como o ovo de Colombo, ao propor fundamentar o juízo moral em uma premissa que simplesmente representa a própria idéia do estar fundamentado, a razão.

Seria possível resumir sua idéia do seguinte modo, caso sejamos racionais de um modo geral, então deveríamos reconhecer a validade dos juízos morais, respectivamente, daqueles juízos morais que Kant considera corretos. Veremos que esta idéia, que também é representada atualmente e uma forma modificada pela ética do discurso, é em verdade genial, mas é um equívoco. significando que “cada um tem de ser assim, como membro da sociedade, independentemente de se quer ser assim”. Em sua ideia, naquela relação do “eu quero” com “eu não quero” da consciência moral, A formação da consciência moral, segundo vejo a conexão, consiste em que o indivíduo, de sua parte, se queira entender como membro da comunidade. Este “eu quero” é naturalmente diferente daquele de que se fala no caso das capacidades especiais.

Nele está implicado, em primeiro lugar, que o indivíduo assume em sua identidade (isto é, naquilo com o qual ele se quer entender) este ser assim (So-sein) como membro da sociedade ou parceiro cooperador, a que pertence a escala do “bom” e “mau” entendidos de modo gramaticalmente absoluto; e, em segundo lugar, isso significa então que ele se entende como pertencente a uma totalidade de pessoas que, mediante a sanção interna da indignação e da vergonha, exigem reciprocamente umas das outras que estas normas constitutivas da identidade não sejam feridas (TUGENDHAT,1996 , p. Dessa forma, o ser humano assume na sua vontade de “querer ser” a noção de bondade associada ao seu desejo. TUGENDHAT, 1996, p. Outro exemplo dado é o da ética animal. Quando uma pessoa diz que os outros podem fazer o que quiserem com os animais, mas que ela não suporta que animais sejam maltratados, essa pessoa não está a defender uma posição moral, pois uma posição moral só é defendida na exigência de que os outros achem o mesmo – que os outros assumam o novo conteúdo em sua consciência moral.

Então, só quem não compreende a moral estruturada socialmente é que possibilita uma reforma. E para que uma atitude seja moral, ela precisa se situar na estrutura intersubjetiva da exigência. Assim, a tese do mal se encaixa na filosofia de Kant dentro do contexto da Aufklarung. No que concerne as situações particulares oriundas do mal, como os vícios, a crueldade e as ações com aparência de força maligna, bem como o conceito de vontade diabólica que para Kant não é possível, o entendimento é de que cada situação no contexto do mal, observada em seu todo, pode ter uma resposta pela ótica do sistema kantiano. No caso dos vícios, a explicação se insere na explanação da disposição originária para o bem na natureza humana, pois na animalidade podem inserir-se vícios próprios da brutalidade da natureza que, em seu desvio intenso, tornam-se vícios bestiais, dando-nos como exemplos, os vícios da gula, da luxúria e da selvagem ausência da lei (na relação a outros homens).

É a propensão para o mal cujos vícios são a inclinação ou “concupiscentia” que incide na paixão, a qual exclui o autodomínio. A crueldade poderia se adequar ao nível da malignidade, em seu alto grau, como na ideia desse máximo de mal que ultrapassa a humanidade. Nossa hipótese também se desdobra a partir da asserção de Kant de que na inversão, que estaria nos graus mais pesados da patologia, as manifestações do cérebro doente também podem ser entendidas como uma infeliz combinação dos males entre si, ou também como resultado desses males enxertados em paixões fortes, a combinação entre algum tipo da inversão (desarranjo, delírio ou insânia) e uma paixão forte.

Ou seja, supomos a probabilidade de um encontro entre a inversão da razão e a paixão que domina, quando tal condição fica irreversível e irreversível também os princípios da razão, conquanto a Insânia seja essa perturbação do juízo que distrai a mente com analogias que se confundem com conceitos de coisas semelhantes entre si, e que pode ocasionalmente cair num juízo perverso para ações más. Quando lemos na Antropologia o conceito de Vesânia, que Kant descreve como uma perturbação mental em que há uma desrazão, ou “uma outra regra, um ponto de vista inteiramente diverso, ao qual, por assim dizer, a alma foi transportada e desde o qual vê de outro modo todos os objetos” (Anth, 2006, p.

podemos supor que seria apenas nessa condição, em que o entendimento se transporta para outra regra, para um lugar distante do senso comum, que teríamos a evidência de uma possibilidade para a vontade diabólica. Mas aqui, a razão está patologicamente comprometida. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BECK, Lewis White. A Commentary on Kant´s Critique of Practical Reason. maio/ago. Para todo mal, a cura. Con-Textos Kantianos. International Journal of Philosophy Nº 01, pp. Noviembre, 2014. Beck, Guido de Almeida e Loparic: sobre o fato da razão. Revista Veritas, Porto Alegre, v 55, n. Set. Dez. p. O fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2006. HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. A paz perpétua: um projeto filosófico.

Tradução de Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. Crítica da razão prática. Tradução de Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2003. Começo conjetural da história humana. Cadernos de Filosofia Alemã nº 13 – p. – jan. Natal, RN: EDUFRN – Editora da UFRN, 2008. PANARRA, Pedro Miguel. Immanuel Kant: ensaio sobre as doenças da cabeça de 1764. Revista filosófica de Coimbra – nº 37, 2010. p. In: GAARDER, Jostein et al. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. PINHEIRO, Letícia Machado. Temple University Philadelphia, Pennsylvania/EUA, Tradução de João José Rodrigues L. de Almeida (Unicamp). Impulso, Piracicaba, 15(38): 23-33, 2004. SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Lições sobre ética. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. O problema da moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

VAYSSE, Jean-Marie.

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