PIM IV Curso Superior Tecnológico de Gestão de Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro -filme Questão de Honra

Tipo de documento:Produção de Conteúdo

Área de estudo:Outro

Documento 1

No filme, Tom Cruise - no papel do advogado militar Daniel Kaffee - investiga os envolvidos na morte de um fuzileiro em uma base militar em Cuba sob comando do coronel Nathan Jessep, interpretado por Jack Nicholson. Durante o processo de investigação que culmina com o julgamento dos acusados, os personagens interagem reivindicando face dentro de uma situação específica em que ordens são determinadas e devem ser cumpridas. Culpeper (1996) em seu trabalho sobre a impolidez com dados de uma base de acampamento militar americana discute que o trabalho de face neste contexto não busca a harmonia interacional (Leech, 1983; Brown e Levinson, [1978] 1987) e sim o desequilíbrio social, em que a orientação de face do participante é voltada ao ataque à face do outro, dentro de uma estrutura de poder hierárquica e desigual.

No discurso da corte (Penman, 1990), a desigualdade de poder nas relações interacionais também é observada como motivo para a não tentativa de preservação da face do outro. Como Penman observa, a testemunha tem “capacidade limitada para negociar os desejos de face positiva e negativa”, enquanto o promotor tem “capacidade quase ilimitada para ameaçar e agravar a face da testemunha” (1990: 34). As interações humanas seriam então orientadas por uma preocupação dos interlocutores com estar em face. Haveria, contudo, situações em que o indivíduo, por escolha de uma linha inadequada ou pela introdução de elementos alheios à sua vontade, se veria fora de face ou na face errada, situações estas que pro duziriam, por sua vez, sentimentos de embaraço e confusão. Estas são algumas das situações que Goffman enquadra como envolvendo ameaças à face, e que dão origem a um a sequência de atos reparadores, que visariam salvar a face do indivíduo.

O estar na face errada devido à escolha de uma linha de conduta inadequada pode ser exemplificado no trecho do filme a seguir, no qual os advogados tenentes da marinha Kaffee e Weinberg se dirigem à sala da também tenente e advogada da marinha Galloway, para se interarem do caso em que irão atuar na defesa. A tenente Galloway é advogada especial de Assuntos Internos e cumpre o papel de guiá-los no caso. KAFFEE: Só mais um e ganho um faqueiro. Nesta interação, Galloway questiona a capacidade profissional de Kaffee, em uma ameaça à sua face da competência (Lim e Bowers, 1991), em que suas habilidades/ aptidões não são reconhecidas pelo outro. Reivindicar a face da competência, segundo Lim e Bowers é reclamar para si - ou para o outro, como faz Weinberg em defesa de Kaffee - em função de realizações anteriores, a capacidade de realizar com sucesso ações futuras, e ameaçá-la é exatamente duvidar dessa capacidade.

As perguntas iniciais de Galloway questionam a face da competência de Kaffee. Além disso, as respostas de Kaffee atreladas ao fato de comer uma 2 As falas do filme expostas neste trabalho seguem as legendas em português da versão lançada em DVD no Brasil. A origem do conceito de face remete ao estudo feito por Hu (1944) na sociedade chinesa, em que, baseado em um julgamento de conduta, face revela dois conjuntos de critérios, pelos quais prestígio é adquirido e status é garantido ou melhorado. Face, então, seria o conjunto de mien-tzu, que representa a reputação alcançada através do sucesso e da ostentação, e a lien, representando a confiança da sociedade na integridade do caráter moral do self. A perda da lien impede o indivíduo de funcionar adequadamente dentro da sociedade; é uma sanção social para impor padrões morais e ao mesmo tempo uma sanção internalizada.

Segundo Hu (1944) “todas as pessoas que crescem em uma dada comunidade têm a mesma reivindicação de lien, uma ‘face’ honesta e descente” (1944:62). Por isso, como aponta Ho (1976), fala-se normalmente em perda de lien e não em ganho, pois não se pode ganhar o que supostamente todos já possuem. JESSEP: “Coronel”. KAFFEE: Como? JESSEP: (para o juiz) Faça-o me tratar por “coronel” ou “senhor”. Fiz por merecer isto. JUIZ A defesa deve tratá-lo por “coronel” ou “senhor”. JESSEP: (para o juiz) Não entendo que raio de tropa você comanda aqui. Esta assimetria somada à hierarquia militar presente no filme leva a uma orientação de face, nos termos de Penman (1990), voltada principalmente a dois movimentos de trabalho de face: ao desprezo pela face do outro, através da ameaça e/ou agravamento/ depreciação, e ao respeito pelo self, através de sua proteção e defesa.

Penman (1990) formula seu modelo de trabalho de face a partir de uma proposta de reformulação do estudo sobre a polidez desenvolvido por Brown e Levinson ([1978] 1987). Os autores tratam a polidez como o construto básico de análise dos trabalhos de face, o que é considerado um problema por Penman, visto que trabalho de face é uma categoria mais ampla que inclui polidez, mas não se restringe a ela. A autora, com base em Craig et al. defende a necessidade de uma teoria sobre os trabalhos de face que considere a sua multifuncionalidade, como uma categoria específica de metas, seja em relação aos desejos de face, seja em relação a seus efeitos. A fala de Jessep tem como orientação o desprezo pela face do juiz com o efeito de depreciação de sua face da competência.

Ao mesmo tempo, Jessep usa deste ataque à face do outro, uma tentativa de salvar a sua, uma vez que sua autoridade militar foi anulada na corte quando lhe foi dado anteriormente a ordem de sentar-se, em forma de reprimenda. A tentativa do coronel de salvar a sua face é realizada exatamente pelo ataque ao outro, demonstrando que ele permaneceria com a autoridade que reivindica, não se preocupando em tratar o outro com respeito pela posição ocupada. Esta ameaça não passa despercebida ao juiz que lhe exige um tratamento respeitoso, também em um movimento de salvamento de sua face agravada. Fica claro, então, que o trabalho de face nesta interação envolve diferentes metas comunicativas para causar diferentes efeitos – salvar o self e agravar a face do outro -, de forma simultânea e sequencial, o que confirma a proposta de Penman em considerar a multifuncionalidade dos trabalhos de face negociados no discurso.

Santiago teria morrido em consequência de problemas de saúde agravados pela punição, o que tornaria o coronel Jessep responsável direto por sua morte, já que os acusados não teriam outra alternativa a não ser cumprir a ordem recebida. A única forma de provar a culpa do coronel Jessep e com isso conseguir a absolvição de seus clientes é fazer com que Jessep confesse que dera a ordem para aplicar o código vermelho em Santiago. Com essa proposta em mente, Kaffee intima o coronel a depor confiando na sua capacidade de provocá-lo na corte a ponto de fazê-lo perder o controle e assumir a ordem dada. A estratégia funciona e por fim, pressionado por uma linha dura de interrogatório, o coronel acaba por assumir que dera a ordem.

A cena de análise A análise deste trabalho está centrada na cena do depoimento do coronel Nathan Jessep à corte militar que investiga a morte do soldado Santiago em uma base militar comandada pelo coronel. Kaffee, então, muda a linha de interrogatório e inicia uma série de perguntas de cunho pessoal, como: ▪ O senhor veio de avião para cá? ▪ Usou uniforme no avião ? ▪ Trouxe escova de dente , cuecas? ▪ Após ter sido intimado o senhor fez três ligações. Reconhece os números? ▪ Por que ligou para a sua irmã? Essas perguntas aparentemente irrelevantes ao julgamento possuem uma meta indireta na interação. Kaffee pretende desacreditar o coronel; pretende provar através da comparação com os procedimentos de viagem do coronel e a falta de procedimentos de Santiago que a ordem para a transferência nunca foi dada.

Na sequência, Kaffee compara os fatos: Kaffee compara os dois procedimentos de viagem mostrando ao júri evidências que comprovariam “a mentira” de Jessep, pois o soldado que espera ansiosamente ser transferido da base militar em que serve, quando finalmente consegue o que deseja há meses, não telefona para ninguém e nem prepara a mala, ou seja, não há indícios de que ele seria transferido. Kaffee agrava a face de Jessep apontando-o como mentiroso: O fato é que não havia nenhuma transferência, não é, coronel?. A face de Jessep estava ameaçada e agora a de Kaffee é que está, o que é mais serio, pois é ele quem tem a autoridade sobre a testemunha na corte. A sequência se torna uma negociação entre o salvamento da face do self e o agravamento da face do outro.

Ganharia essa disputa aquele em que, nos termos de Goffman ([1967] 1980), fizesse mais pontos para o self, a partir do defacement do outro. O fim dessa sequência marca pontos para o coronel e o deixa na cena com a face de vencedor desta disputa. Fase 2: o código vermelho Na segunda fase do julgamento, Kaffee tenta se recuperar da perda de sua face ocasionada pelo agravamento/ depreciação na fala do coronel. Fui claro? KAFFEE: Sim, senhor JESSEP: Fui claro? KAFFEE: Como cristal. Se deu ordens para que ninguém tocasse em Santiago, e suas ordens são sempre cumpridas, por que Santiago corria perigo? Por que era necessário transferi-lo da base? Após afirmar que suas ordens não são desobedecidas, Kaffee propõe ao coronel o seguinte questionamento: se o coronel dera uma ordem para que os fuzileiros não tocassem no colega, e se suas ordens são incontestáveis, qual a necessidade de transferi-lo? Por que o coronel deu a ordem da transferência? KAFFEE: Por que as duas ordens? Coronel? JESSEP: Às vezes, os homens querem cuidar sozinhos das coisas.

KAFFEE: O senhor disse claramente que isso nunca acontece. Cumpre ordens, ou pessoas morrem. Santiago não deveria estar em perigo, não é? JESSEP: Seu merdinha metido à besta! ROSS: Meritíssimo, peço um recesso! Esta sequência mostra claramente que a construção da face do coronel passa por um dilema, centrado em um paradoxo: após construir a face de militar cuja autoridade é incontestável, como o coronel poderia admitir que era necessário transferir o fuzileiro da base para protegê-lo? Sua ordem para que ninguém o tocasse não deveria bastar? Jessep então se vê em uma emboscada para construir sua face, ao ter que decidir que face reivindicar: ou ele admite que dera a ordem para o código vermelho e preserva a face construída em cima da incontestabilidade de seu comando ou perde a face na preservação da carreira e da liberdade, uma vez que a aplicação do código é ilegal.

Lindos sonhos, filho. KAFFEE: Não me chame de filho. Sou um advogado e um oficial da marinha e você está preso, seu filho da puta. Testemunha dispensada. A linha de conduta adotada por Jessep o leva a perder a liberdade e põe em risco a carreira. A honra é atrelada ao dever cumprido; se houve falha no cumprimento do dever, houve falha na honra. Os trabalhos de face construídos e negociados nas interações não só perpassam pela discussão da honra como também pelo mérito e prestígio, ambos atributos que formam o conceito de mien-tzu na definição de face, segundo os chineses. Como esse conceito é baseado em julgamentos de conduta, não só o mérito e o prestígio, mas também a honra são construtos extremamente valorizados na reivindicação de face no filme e são centrais nos trabalhos de face negociados.

A ameaça/ agravamento da face do outro e a proteção/ defesa da face do self são os principais movimentos executados pelos personagens do filme, transformando a interação em uma arena de competição, em que os participantes marcam pontos ao salvar o self ao mesmo tempo em que agravam a face do outro. Esses movimentos ocorrem com frequência de forma simultânea e sequencial no discurso, ressaltando então a necessidade, já apontada por Penman (1990), ao olhar para a construção de face na interação, de considerar a multifuncionalidade das metas comunicativas e seus efeitos interacionais, para só então identificar que trabalho de face está sendo construído pelo ator social. Bastos, C. R. P. Pereira, T. C. P. GOFFMAN, E. The Nature of Deference and Demeanor.

American Anthropologist. Nº 58, p. Interaction R itual. New York: Pantheon HARRÉ, R. Social Being. Oxford: Blackwell, 1979. HO, D. LEECH, G. The Principles of Pragmatics. New York: Longman, 1983. LIM, Tae-Seop; BOWERS, J. W.

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